quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Jarro de flores

Já não tenho

o mesmo gás


para beber vinho

e escrever cartas.


Três taças 

levam-me

ao disparate


e cartas de amor

se não forem doces

têm de ser as mais loucas.


Doçura não existe

na minha língua

trôpega


e a loucura de Quixote

foge da minha embriaguez.


Já não tenho forças

para beber vinho


nem altura

para cartas

de amor.


Completude

Amanhã, vinte e quatro de dezembro,

cortarei as unhas dos meus pés 

e farei um antigo ritual: 


Adubarei as plantinhas da varanda

com os pedaços das minhas unhas.


Não farei nenhum pedido

nem rogarei por nenhuma graça. 


As dádivas que ocorrerem

serão expansões do meu vazio.

Os ardis

A voz do oráculo

é a tua mente,

poeta.


A única manifestação divina em  tuas vísceras 

é a lucidez que te faz observar teus pensamentos:


As vestes nunca serão a tua pele,

a tua pele jamais será o teu coração.


As vozes que te levam ao bom sentimento

também podem te seduzir ao egoísmo final.


A lucidez de fogo não promete outra energia

senão a poética singularidade de tua ausência.


Maçãs em dias de maçãs,

espinhos em dias de espinhos.


E o que te adoçou os lábios

já segue o perfume da lembrança.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

bilhete

Nem as suas melhores notícias quero ouvir.

Inadiável o nosso encontro, garota intempestiva.

Você é tão inexplicável em meio ao obscuro lirismo. 

É bom aprendermos com as situações mágicas da vida.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Candura

Precisamos 

um do outro

e todos de si.



Tua boca

é doutra 

textura.


A minha te beijou

no último sonho.


O mais recente,

o de ontem.

Bronze milharal

Cair na graça de Deus                                                                                                                                    é ser o bem querer de Deus.


Dizer a palavra Deus
é como se fosse 
um impasse 
moral.

Não crendo é mais fácil 
(e menos doloroso)
prosseguir.

Mas dizer em alto e profundo silêncio a palavra Deus
é gratificante quando a presença do todo revela as partes.

Seguir adiante
ser corajoso
sem pesar
mórbido.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Folheto dominical

O criador daquele pássaro preto

que faz círculos no céu

sobre a carniça


é o mesmo criador

da sua notável 

inteligência.


Se vai chover

ou se o sol castigará 

as gramíneas dos bisões,

se borboletas fogem de certas flores

e se as palmas dos coqueiros acenam para meus olhos -


não representam

casos isolados 

no universo.


A sua consciência é tão vulnerável

quanto o voo daquele pássaro preto

sobre a carne podre que o alimentará.

Cápsula do tempo

Não acredito que você ainda guarde mágoas

no seu baú, na sua mala, no seu alforge,

nos cântaros, nas ânforas, na gaveta

do oratório da sua avó.


Juro que não acredito 

que você não tenha visto

a outra margem, o outro paralelo,

a outra dimensão e não tenha transformado

a fúria obsessiva dos seus inimigos em potência espiritual.


Não acredito que você não tenha feito as pazes com seu filho,

a sua filha, os seus netos, os seus irmãos, o louco da encruzilhada,

aquele fantasma que ao assustá-lo forjou em seus músculos coragem.


Não acredito que você ainda creia em salvadores da pátria,

em pescadores de almas e não tenha oferecido de bom grado

os seus sonhos de grandeza e cinismo aos porcos e às serpentes.


Juro que não entendo

que você ainda cultive

o poema como válvula

de escape e bomba

de ópio e vaidade.


Não vê que somos tão cinzas e tripas

quanto as palavras são poeira ao vento?


Passaremos, e os passarinhos

nada sabem da nossa existência.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Astrologia

Agora que você conhece minha voz,

posso acordar caolho, coxo, surdo,

dentes quebradiços de burro velho. 


Espero meu skank

deitado na rede

da minha ex.

Feromônios

O gato passando

entre as grades

da janela


é tão furtivo e silencioso

quanto uma serpente.


A serpente pode 

morder o calcanhar.


O gato, entretanto, 

só quer chegar ao telhado

da grande paixão de ontem à noite.

Adorações

Morda sua língua,

quebre seus ossos.


Não existe caminho lá fora

que o conduza a você por dentro.


Quando estou apaixonado pela vida

como batatinhas e fumo o meu skank.



Helena

Estava relendo Kafka

mas na página trinta

fechei no dedo.


A sua imagem

sentada sobre

uma pilha

de livros


bagunçou

minhas

ideias.


Você dos pampas,

vasta, úmida, 

loquaz. 


No quintal vizinho

tem um coqueiro

de praia.


O céu anda tão azul

que doem meus olhos.


Claro que tento roubar das pessoas

todas as emoções ocultas e impossíveis.


Sou um furtador

de almas, Helena.

Onda de amor

Quando você virar a cabeça,

enlouquecer de vez, 


ultrapassar todas as margens

de um só pulo e suspiro,


estarei disposto 

a recebê-la


e plantaremos no nosso cercado

uma rocinha de amendoim,

abóbora e girassol.


Vou lhe ensinar uma receita dos templários

e faremos um elixir surpreendente.


Ficaremos ricos, loucos

e logo nos separaremos.


Você morrerá de velhice,

o poeta partirá de encantos.


E da nossa rocinha 

de amendoim, 


abóbora 

e girassol 


os corvos 

farão a festa.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Festins de olhos melancólicos

Sempre tive muito medo

dos poemas que seduzem.


A verdade é que me esqueci

de todos os grandes sedutores.


Comecei cortando meu pulso,

depois cortei  meu pescoço.


Por fim, já não seduzo as palavras 

e o que tenho de tesouro guardado

é a capacidade de ouvir as vozes


sem expectativas de que um corpo

pule da montanha ou uma alma mergulhe

em águas profundas à procura da minha companhia.


A solidão é suave

e ela não existe 

como não existe 

a minha morte.

Viramundo

Não sei outros poetas,

mas as únicas duas 

semelhanças


que tenho com os passarinhos

são meu olhar perdido ao horizonte 

em dias de chuva e meu bico bem doce

quando tento conquistar da minha janela

passarinhas felizes da vida à toa e sensuais.


De resto, baby,

sou totalmente distinto

dos passarinhos: asas, ninho, alegria.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Pedaços de nossas unhas

O sol ainda segue

os meus passos.


O que passa:

As sombras

das nuvens.


Contente-se com a caça,

o peixe e o fogo 

que fiz


em volta

da sua alma.


Mentiria se dissesse

que a poesia é ilusão. 

Entardecer

Quando aprendi a tocar gaita

o louco da encruzilhada


iludiu os meus amores

e cortou a minha língua.


A gaita hoje em dia quem cuida 

são os passarinhos das oitis 

da minha calçada.


Mas o blues ainda é herança

do poeta da encruzilhada.

Varanda

Não existe morte

nem para a carne


nem para 

o espírito. 


Não existe morte para a carne

pela natureza da transitoriedade

habitar a carne desde o princípio.


E para o espírito

a morte não existe


por este, suspenso,

acima da eternidade,


perdurar e conviver

com tudo o que é efêmero.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Telepatia de cães

As suas unhas

estão grandes,

Lola. 


Ao passear da sala ao quarto 

as suas unhas estalam

no piso de madeira.


Quem pintou

as suas unhas

de preto, Lola?


Seria dark

se não fossem

as suas unhas, Lola.


As suas unhas

são delicadas 

e tímidas.


Uma princesa

que vomita

quando 


come 

carne.



Alfazema

Nunca vi um passarinho 

arrancando as penas

das asas,


mas já vi um passarinho

ensaiando um blues

com o bico


entre os seios

da amada


brincando de cortesão

ao entardecer das oitis.

Cintilante

As lágrimas douram os meus olhos.

Desde a minha infância as lágrimas

mostram-se generosas aos meus olhos. 


Oferecem aos meus olhos

camadas de ouro 


e chuva

de sal.


A beleza maior das minhas lágrimas

é o quanto são fiéis à ausência

de palavras.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Conjunção astral

A ponta da minha cauda de escorpião

afaga docemente as dobras 

das minhas asas


encorajando-me

ao voo.


Quando você assistir aos meus excessos,

acredite, baby, há um tenro equilíbrio

entre as minhas costelas

e o meu olhar.

Alvorada

Conforme a sua intransigência,

à sua mesa sentarão os seus pares.


Ninguém estranho,

os mesmos sorrisos.


O cinismo e falácia

que você conhece

e adora.


Ninguém que lhe cause fúria

ou contentamento fraternal

há de sentar à sua mesa.


Quanto tédio,

meu velho.


À minha mesa,

ao contrário,


durante todo o banquete

sentarão ao meu lado

os mais bizarros

e loucos.


Aquele que menosprezar o próximo,

tentar roubar um pedaço de pão,

uma caneca de vinho


será posto 

para fora 

dos céus.


Os meus anjos

seguem minha ordem

e tudo o que ordeno é delicado.


Poético,

visceral.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Gasolina

O cheiro de gasolina

ainda desperta o amante.


Não há costume

esquecido pela carne:


Gasolina, patchouli,

pipoca, sorvete.


O que desatina a criança

ainda tem sabor de alegria.

Sobrevivente

O pensamento tal

como é constrói 

o caminho.


E não se sabe

até que ponto

a vida é real.


O que o outro pensa

sob luta incansável

é a verdade

do outro. 


O que você tem dentro do bolso são efígies do passado 

que você tramou entre fórmulas e reflexões das suas trilhas.


As margens opostas

não modificam 

a essência.


Seus pés levam-no

ao abismo de flores.

O ardil do pagão

Tudo é importante

nesta vida agora.


Um livro,

uma flor,

um jarro.


Adorar o instante

com a imensa força

que se adora a um deus.


Esquecer os julgamentos

que nos acompanham

dia após dia.


O mérito fabuloso

da poesia é fazer

o livro, a flor,

o jarro


uma só coisa

adorada.


 

Magia

Se o grande amor da sua vida

ajuda-a na hora de espremer 

os limões, então é sorte, baby,


O grande amor da vida

faz torta de mel e pêssegos.


Quem espreme os limões

sou eu com ajuda da clareza.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Cegueira

 O pão que me alimenta

é o mesmo pão que sufoca

meu peito e dilata os pulmões.


O meu reino na terra,

as migalhas deste pão.


Os corvos nunca foram tristes,

amam as sementes de girassol.


Enquanto outros pássaros

incertos da própria natureza

buscam algo perdoável no céu.


Não me falta pão na terra,

não me faltam migalhas deste pão,

nunca me faltará a sinceridade dos corvos.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O eu lírico é um embuste

Pior do que a tua gaveta vazia

é a tua gaveta com o último

frasco de teu perfume


sorrindo 

de maldade.


Se o poeta pular da janela

os passarinhos vão cair

na gargalhada


e fazer pilhéria

da minha fortuna.


Se o poeta cortar a mangueirinha do gás

e enfiar um saco plástico na cabeça

a respirar sôfrego 


propano 

e butano


os passarinhos

da janela 


tocarão seus blues

bebendo uísques


e não dirão

um ai nem ui.


Vai chover

e os passarinhos 

têm os seus problemas,

suas dúvidas, seus cansaços.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Avestruz

O poema não tem um fim,

senão a minha vaidade.


Mesmo nos dias tão sombrios

em que o poema era escrito

sonhava com teus olhos

sobre as palavras.


Escrevo poemas

para o mais vaidoso

dos fantasmas que beija


as palmas das minhas mãos

e gargalha às minhas costas.


Se sou esse fantasma,

baby, que mal existe

em meus delírios?


A névoa que te encobre

mostra a claridade

da minha tolice.

Fronteiras

A não-compreensão 

não significa dúvida. 


Nem é alimento

para o medo.


Além da ignorância

a seiva da verdade

parece bruma.


Aquele ponto desconhecido

que nenhum livro revela

e que nenhum vestígio

é dado por outro


você guarda e acolhe

no seu sangue.


Você também pouco sabe

do seu coração, vivo 

ou morto.


Ainda que fuja a sua voz,

a última palavra será a sua.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A nossa paróquia

A vida que imagina

é bem distante


da razão

amorosa.


E os frutos do banquete

enlouquecem os convidados.


A esperança o poeta guarda

dentro de um envelope

da década de 80:


Aquele bichinho verde

ressecado pelo éter 

da inocência


cujo broche

você pregou

no seu peito.

Cavalo-marinho

Se não houver escamas

do antigo réptil e asas

de passarinho 

que toca

gaita


não lhe será permitido

ver a porta e girar o trinco.


Mas o que sei da poesia

se me doem as costelas? 


Antes de escrever o poema

parece-me não existir

outra maneira

a escrevê-lo


se não for pelo mergulho,

dissolução e forjamento.


As costelas que doem

é o parto que se segue.

sábado, 28 de novembro de 2020

Lola

O vento forte de sábado 

que me faz fechar os olhos


e as folhas de oiti 

caírem no meu peito


é uma forma maternal do universo me dizer

o quanto é ilusória e verdadeira a minha alma.


Lola suspira

encolhida

entre


as cadeiras

e o sofá.


Lola sabe muitos segredos

sobre os ventos de sábado,

sobre as árvores da calçada,

sobre a outra margem do universo.


E suspira

com os seus olhos

de puro mel de ternura.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Papiro

"Ainda que os seus olhos

sejam arrancados do rosto

e lançados ao abismo 

da compreensão 


é  tão natural a luta 

contra o desconhecido,


pois não há interesse 

em ver de perto

o fogo 


de uma nova 

chama.


E em tudo que você põe os olhos

só revela-se a ironia dos deuses."

Sexta

Diante do que não conheço

qualquer intervenção

mental


é um equívoco,

trapaça.


Estou sempre despido

em volta dos pensamentos

exaltando toda a minha fraqueza.


A força vem do recolhimento

da casa erguida nos ombros

e a cada passo queimo

a última palavra.


Este que fala,

este que come,

bebe e divaga


só é digno

desta vida

de sonhos.


A verdade que supera

os meus ossos e a carne

guarda-se para outro tempo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Suave

Não julgues a escuridão,

pois a luz é a outra face.


Lembra-te de quando eras réptil

e rastejavas o ventre pela terra.


Se hoje és pássaro,

se usas vestes de pássaro,

não te esqueças do cheiro do poço.


Se hoje és um ser alado

cujas asas brilham

em círculos,


foste um dia coxo

e mancavas pelo deserto.


Alegra-te pelo entendimento

de que és apenas uma ilusão

do réptil que te ensinou

a conhecer o céu.

domingo, 22 de novembro de 2020

Castanhos

No meio do deserto

tenho vontade

de peixes,


mas não dou um passo

além do que pressente

o coração.


Não sou idólatra

tratando-se de deuses,


mas transfiguro-me, 

ajoelhado, diante 

da mulher.

sábado, 21 de novembro de 2020

Fábula

Às vezes,

por pura vadiagem,

jogo pela janela da varanda


sementes de maçã 

e pedacinhos 

das minhas

unhas.


Antes que as formigas da calçada reclamem,

os passarinhos das oitis correm ao meu auxílio

e usando as asas em forma de conchas colhem

a minha sujeira balançando o bico em reprovação.


Voam aos seus ninhos

e reciclam meus cílios,

cabelos, pele e poemas. 

Os monges copistas

Se você olhar bem

as palmas das minhas mãos

verá calos da lavoura em que trabalhei


para matar a sua fome e das flores

que cultivei na entrada do seu jardim

para que você nunca desconfiasse das abelhas.


Se olhar com mais atenção

também verá navios fantasmas,

balões do século XIX e templários

cavalgando em meio a brumas e luzes.


As palmas das minhas mãos

são relíquias da eternidade

do seu silêncio.

Café

Tenho ossos fortes,

a carne fraca e um espírito 

curioso entre magia e racionalidade.


Ora, ora,

mas o que escrevo?


Não é a magia outro nível

(gracioso) da razão? 


A minha alquimia é praticada 

na minha caverna ou nas ruas

todos os meus santos dias.


Não há um dia

em que o sol


não entre por meus olhos

ou o orvalho da madrugada

não molhe os cabelos brancos.


Os meus cabelos brancos

por vontade das palavras.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Réquiem para os flautistas

Ultimamente, baby,

são os bem-te-vis 

os meus guias.


Durmo de janela aberta

e acordo com essas criaturinhas

assoprando flautas da minha infância.


Caminho léguas

e eles seguem

meus passos


trocando de partituras,

espantando maus-olhados.


Os monstros do pântano

e assombrações

do deserto


fogem dos seus bicos

e dos seus blues.


Volta e meia,

pulam diante

dos meus pés

e ordenam-me:


"Poeta, vira à esquerda,

pois é sal e doce


a dama

da outra rua."

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Encanto

O teu rosto é de uma camponesa

que acorda cedinho (fabuloso decote à mostra)

para colher maçãs - e os passarinhos que pousam 

nos teus ombros alimentam pensamentos apaixonantes.


Assim, baby, 

são todos os passarinhos


que também se encantam por uma sacerdotisa 

cuja alma dança na praia noturna em volta da fogueira.


São testemunhas

da tua magia

a lua,


as estrelas

e a tiara de flores

que adorna teus cabelos.


Se o mundo brilha

é por tua causa

e não pelos

versos.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Devaneios

Não durmo,

aflito, pensando:

Que fim você dará

aos seus batons, baby?


Nesse tempo de treva

a sua boca vive oculta 

dos bárbaros e flautistas

e me dói a dor dos rivais.


Acredite, baby, prefiro aquele ciúme de outrora quando os cavalheiros

cortejavam o seu beijo atraídos por seus lábios fatais dos batons líquidos.


Até sonho com você sem máscara

assoprando delírios de luxúria

aos mercadores de Veneza.


Ah, baby, não jogue ao lixo

os seus batons de mil batalhas,

incríveis loucuras e doces vitórias.


Haverá o dia da marca do seu batom 

na minha última carta, ou eu cegue.

domingo, 15 de novembro de 2020

As oitis da calçada

A sua luta é vã

mas entendo

o anseio,


já caminhei por essa margem

e senti na cabeça o sol

desse deserto.


Trago cicatrizes

no meu pulso.


E um espírito firme

por tantos giros

em volta


do próprio

corpo.


Entendo o seu medo 

e a sua vaidade.


Os meus pés também foram queimados

pela margem desse deserto e meus olhos

cegos pelos pontos luminosos desse céu.


Trago entre minhas costelas

um coração leve e astuto

que só treme

ao vê-la.


Entendo a sua distância

e a triste lembrança

que você suspira

da minha voz.

sábado, 14 de novembro de 2020

Mosteiro

Mas nunca desejei o paraíso

se tenho clara noção do quanto

é duvidosa a salvação de um cara

que passa a vida a escrever poemas.


Chega a ser jocoso

o desejo celestial

se a minha carne

arde pela existência.


E não há outro alimento

para quem ama a terra

senão os frutos da terra.


A maçã e a sua serpente,

as uvas e a embriaguez

da camponesa.


Não, baby,

nunca contei

com a serenidade


mesmo nos tempos

de meditação transcendental

em que sonhava aventuras místicas.


Sou carne,

sou ossos

e vapores.


O que em mim há de celestial

é a única adoração pelos pássaros.

Postulados

Os cãezinhos

recém-adotados

e os passarinhos

debaixo da chuva,

 

quem há de negar-lhes

os íntimos pensamentos?


Ou você imagina

que um cãozinho

deitado no tapete


ou um passarinho esperando

a chuva passar entre as oitis

não se perdem em divagações?


Lembranças particulares

de uma memória etérea

de quando foram gente


e agora,

bem-te-vis

e vira-latas.

Os pássaros e as serpentes

A solidão é um bálsamo

para quem adora criar

as próprias formas

das sombras


e reconhece

que sua mente

tem um parafuso

a mais e outro a menos. 


O inferno dos meus desvios

só ocorre e me fere

quando fujo


da natureza

de poeta:


Um ser perdido

de solidão e multidões

que encontra sentido no poema.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O último toque de recolher

Há séculos e séculos

conheço o fogo

do seu sorriso:


Uma chuva

de estrelas cadentes

que atravessa a sua rua


e cai na minha varanda

iluminando o meu peito.


O meu doce e pobre

coração de passarinho

nunca mais será aquele

frágil e louco coração 

de passarinho,


pois acomodo

entre os ossos

das minhas costelas

a sua alma encantada.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A Corte Dos Corvos

O meu guia

é um beberrão

enquanto o outro

(também meu guia)

é um sábio arrogante -

ou seja, vivo perturbado.


Só você, meu doce,

com seus cabelos

de almíscar

e alecrim


para me salvar

desse barco

furado.


O pior

(nem lhe digo)

existe outro guia

que ouve os dois

(o louco e o pedante)


e vive sorrindo

em profundo silêncio

do poeta e das sombras.


Penso até que é ele mesmo

o verdadeiro fantasma

a plantar na minha

mente de corvo


migalhas de pão

e de girassol.

sábado, 7 de novembro de 2020

Cálido

O cego que enxerga

a verdadeira escuridão

da sua alma


já possui

então


a metade

da luz.


Mas aquele cego

que vive sonhando

com uma luz suprema


apenas para ser melhor 

do que os outros cegos 


é um cego tolo

e arrogante.


Ah, cego tolo,

ah, cego irritante,


desça dos céus da sua vaidade

pelos degraus dos ossos

do seu esqueleto


e beije a terra e sinta a seiva

da terra debaixo dos seus pés.


Essa terra 

será a sua cova,

mas também será

a sua plantação de trigo.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Gafanhotos

Quem se importa

por um poema

senão aquele

ser inocente


entre as palavras

e a vontade de morte. 


O poeta alegre

é patético

e se vive

triste


é tão tão

ridículo.


O mundo gargalha

do poeta trôpego

pelas ruas 


distribuindo dinheiro

e dizendo para as pessoas

o quanto são puras e doces.


Ah, quanta loucura

e quanta dor.


E o cego busca uma luz 

onde o campo de girassóis

já sofreu da última tempestade.

sábado, 31 de outubro de 2020

Sábado

As oitis da minha calçada

são centenárias e amigas

dos passarinhos e lagartas.


Depois que me conheceram

sempre na varanda e à janela 

passaram a me desejar sorte


e acompanham nas manhãs e tardinhas

as minhas viagens e os meus poemas.


Os passarinhos

e as lagartinhas


também ficaram curiosos

e vieram  à minha companhia

saber um pouco mais do sujeitinho

que escreve versos e adora filosofia.


Todos os dias

seguro a xícara

branca de café

e faço um brinde

à saúde das oitis,

dos passarinhos

e das lagartinhas.


A propósito,

as lagartinhas

não reclamam


quando um bem-te-vi

desajeitado atravessa-lhe

o abdome com seu bico frio.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Correntes

Faz parte

da existência

a suposta realidade

das suas ações e pensamentos. 


Por mais íntimo

do seu sangue

você verá

um dia


que a coagulação

da sua vontade

são desejos

de outro.


As suas ações,

os seus pensamentos,

o caminho trilhado por suas pernas -

acredite, são ilusões de outro espírito

que o seduz, ilude e lhe oferece a vida.


A mesma vida

que confunde,

que desperta,

que o ergue.


As seduções 

de quem o possui

também geram amor


na intimidade 

do seu sangue.


E você jura

para si próprio

que a vida é única.


Que a vida

é só sua.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Ana Cañas Canta Belchior • LIVE

Odisseias

Já ganhei tantos sabonetes

no meu aniversário


que farei uma escultura

da minha primeira

namorada


fugindo

com outro.


Das minhas crueldades amorosas

ah, paguei juros exorbitantes.


Estamos quites,

o poeta, as musas

e os pais das virgens.


Dos mil sabonetes

farei então uma escultura

do meu coração doce e tranquilo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Candeeiro

Se da minha fonte

borbulha azeite,


ah, que belo,

assim não faltará

luz na minha mente.


Não se alegre

por mim, baby.


Mas pelas sombras

a quem darei vida


sob o esplendor

de todas as suas formas.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Cadeia alimentar

O único vínculo

que o escorpião

tem com baratas

é na hora da ceia:


chega a iluminar o banquete

com a luz de uma vela

na sua cauda. 


As baratas não resistem

à ilusória sedução


e se oferecem 

ao seu senhor

como alimento.

sábado, 24 de outubro de 2020

O Tormento de Lola

A cadelinha Lola

parece de alma atormentada

por uma lembrança apocalíptica

das florestas sombrias de cães órfãos.


Pensei até em acender a luz

pra ver se encontrava

a cadelinha


debaixo 

da mesa


ou de uma

almofada

indiana.


Por vezes, 

Lola some (encanta-se)

fugindo da própria sombra.


A sua alma deve ter convivido

com delirantes profetas e místicos

que lhe davam ossos de fantasmas

e tentavam enlouquecê-la de pavor.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Magzim

Quem envelhece

espera a morte.


[espera 

a morte

chegar]


Por isso que você não ouvirá

aquilo que o coração não pensa.


A lua tem poder

de brincar conosco.


Com a nossa alma.



 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A janela aberta e as plantinhas da varanda

Se você puder guardar um poema

não o faça por força do hábito

como muitas vezes estrago

as linhas do coração

escrevendo

o vazio.


Ao vazio

cabe o nada.


A palavra oculta,

desde manhã oculta.


Não estrague o seu dia

(como faço muitas vezes)

escrevendo um poema do nada.


Exuberante poema

é o nada em toda a sua forma.


Não acabe com o seu dia

colhendo uma maçã

que ainda não foi

bichada.


Deixe na macieira

a maçã e os seus desejos.


Ao poema do nada

cabe o vazio do inseto

que ainda não tocou a maçã.

Clima

Por meus caminhos

alimentei pássaros

cuidei de serpentes

sem assombros 

e pavor


nas manhãs

de pura epifania


por meus caminhos

adocei água

de beija-

flores


mudei a ração

dos cães de rua


sem julgamentos

e fúria


por meus caminhos

fui mágico, louco,

tocador de viola,

atirador de facas

e pétalas


sobre o dorso

de elefantes


por meus caminhos

ainda acordo

forte, sadio

e feliz,


como diria

a xamã vovó.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Gravata

O meu laço

nunca será 

perfeito,


pois há

entre os extremos

um nó incognoscível -


e por isso

[justamente

pelo meio

do caminho

haver um nó

incognoscível]


não busco perfeição,

mas do meu laço

entendimento.

sábado, 17 de outubro de 2020

Arrebóis

Não há o que decifrar

no canto dos pássaros

e nos seus trejeitos

campestres,


ainda que pássaros

de calçadas de bares


as nuvens têm cheiro

de crianças soltas.


Que os pássaros cantem

e conversem entre si

o que minha mente

suporta e delira.


Não há conflito,

dores de cabeça,

maus presságios.


Sei que não sou o que a Verdade

pensa dos meus botões e me acolhe


em sua suprema

simplicidade


(ou indiferença?)


Os pássaros se bebessem vinho

acordariam dos seus sonhos

e o mundo em volta

seria trágico.


A poesia equilibra

os meus voos


e me faz mendigo

dos meus passos.

Campanário

Por fim

chegamos

à clareza


e todos os passos tortos

tocaram-me o coração

pela sutileza 


do cajado 

de nuvem. 


Os passos tortos e loucos

eram apenas as vozes

do pequeno homem

que suspirava

aos céus.


O reino que se abre

não julga as vestes

do miserável sábio.


O caminho é de lucidez

e chama a loucura ao mundo

a sensatez da doçura e coragem.


O rei, o miserável, 

o homem e o rato 

nunca da estrada

fugiram de medo.


Guarda teu segredo

como moeda de troca

no último sopro de dúvida.


Eia, eia, eia!


Os teus passos

agora são de nuvens

que queimam a sombra

da triste memória e fraca.


Acorda contigo

os teus anciãos

e moços da aldeia,


desfruta o banquete

com a fome de leão,

fantasma e crianças.


Eia, eia, eia!


O dia é a noite

dos que não dormem

e pelo caminho cantam

pássaros e sorriem cobras.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Peter Brook's Mahabharata - Diálogo entre Khrisna e Arjuna

Poesia bela


I
Claro que já disseram
que você é uma princesa.
Atenciosa, sensível, digo-
lhe, então, que agora você 
é tudo isso e mais linda e forte
do que um anjo que pisca o olho.

II
Amar os próprios sonhos e passos.
Ou encantar-se na névoa do caminho.

III
Não, 
ninguém
saberá de ti 
mais que tu.

pra Bianquinha  

Sublevações

O conhecimento é uma virgindade outonal

a nos alimentar pela pesquisa da mente.


A poesia não morreu

de espanto pelos olhos

de quem vê e entende,

mas pelo cuidado doce.


Vontade de fazer

uma tatuagem 

no meu peito

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Dialética

 Já fui cético, místico, 

hedonista, cínico e sofista,


mas hoje em dia

voltei à infância 


e passarinhos que chegam à minha janela

não perdem a viagem e me chamam

de sonso.


Ah, os meus queridos passarinhos

são os únicos que conhecem


a minha alma infantil

e as ideias transcendentais.


Nunca guardaram mágoas

do meu tempo de infernal loucura

da minha falta de caráter e crueldade.


Vivia pensando no deserto

como torcer-lhes o pescocinho.

domingo, 11 de outubro de 2020

Santuário

A verdade que tenho 

um caso profundo

de amor,


até ontem não sabia

até hoje não sei.


Mas arde

um caso

de amor


quando dou um passo,

quando três passos 

adianto.


Tenho sim um caso de amor

frenético e sutil e amistoso

com a vida.


E do que se trata a vida,

senão de uma eterna amante?


Arde meu peito

e sangue.


Meus olhos

derramam-se

em suaves lágrimas,

e isso não é bom, meu filho?


Viver encantado

pela lucidez

até o fim.


Saber que não existe fim

para quem é apaixonado

pelo caminho que brilha.



sábado, 10 de outubro de 2020

O Instante

O passado você já deixou para trás, agora só falta livrar-se da fantasia

dos seus sonhos. As ideias estão vivas, mas é você quem as põe de pé.


Dentro do porão do navio fantasma há ratos

e você nunca percebeu o quanto eles adoram 

o pirata bêbado praguejando contra céus e terra.


Bebeu café?

Molhou as plantas?

Vai ler os seus livros?


Muito bem, joia,

mas não se esqueça

de adorar o seu deus

escrevendo versinhos.


Não existe outro caminho

para a sua existência, 

meu velho.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Sanguíneo

A minha salvação
foi ter comido
do fruto

da Árvore
da Filosofia,

caso contrário
o monstro

que me
habita

já teria
devorado
meu coração

e feito dos miolos
do meu cérebro
uma sopinha
de ervilha.

Mas comi
do fruto

da Árvore
da Filosofia

e posso até sentir
o ciúme entre os meus dentes
os meus cabelos e a minha pele de santo

a queimar e arder a sobra
que alimenta o monstro.

A Outra Cor do Deserto

Se tu sonhas
com o tesouro
fora de ti, malandro,

então podes medir tua cova
conforme a tolice do mundo.

O rei ainda que sereno e sábio 
é um rei angustiado por sonhos.

Não acredito
em fábulas.

Livros que enlouquecem
e que nos arrancam a pele.

O rei ainda que sábio
perdeu a vontade natural
quando viu de perto o céu.

E o céu, malandro,
não é o que tu pensas.

Vais precisar
nascer mil
vezes

dentro
de ti

e perdoar e entender e amar 
o vazio e o transbordamento.

Salomão pensou
em outra vida
e desejou
a luz?

Tu que o dizes,
ó malandro.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Lua Cheia de Outono

Corvo que aproveita a vida

adora cantar um blues

bebericando um copo

de uísque


na ponta

do bico


entre as névoas

do pântano


e a clareza

da intuição.


Passa séculos lendo romances psicológicos 

escrevendo os seus poemas obscuros

acariciando as próprias penas.


Vê em tudo estupidez

e nos olhos dos amigos

uma inocência patética

que pode matá-lo de tédio.


Entende bem a loucura

de quem ama e foge

do ringue.


Oferece às fêmeas grãos de girassóis

mais pele e carne e ossos de jacaré.


Qualquer cretinice que o irrite

voa para longe e se esquece

do pântano, das névoas,

da lua cheia de outono.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O Sax de John Coltrane

Você pode andar
com as próprias
pernas e portanto

poderá cair em um
poço escuro cavado
diante dos seus olhos.

Mas você não viu
por andar tão louco 
das pernas trôpegas 
de rum ou de cocaína.

Volte então a andar
com as próprias pernas
e bem diante do poço escuro
cavado a um palmo do seu nariz

dê um pulo,
ultrapasse
o poço
triste

segurando-se no rabo
de uma arara gigante.

E não se esqueça das gargalhadas
de criança ou das gargalhadas de Deus.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Substancial

A poesia tímida

receia entre


partículas

e cheiros.


Mas da mente abstrai

o frasco de perfume

do primeiro

amor.


Fiel depositária

do território

do encanto


a poesia tímida

bebe um cálice

de licor com

John Locke.


As asas e as folhas

na minha varanda

são ideias relativas


dos pássaros e árvores

que sempre vejo ou que sonho.

domingo, 27 de setembro de 2020

Semente de mostarda

O conhecimento

do que se contempla

não necessita de palavras.


Não é manchado

de tristeza e vazio

a fonte de fogo e luz.


Além dos pensamentos

existe o que se contempla.


Além do que se contempla

morrem todas as ideias.


E somente pela entrega

do que não se possui

seguramos o fio


que circula o princípio

e que não tem fim.

sábado, 26 de setembro de 2020

Tertúlia

Singelos passarinhos

que me visitam sem

a janela eu abrir 

ou baterem 

à porta,


Se danos cairão sobre

os seus ombros,

voam.


E você me pergunta

se já matei passarinhos.


Enterrei

apenas

um.


Aquele da infância

na caixa de papelão.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Âmago

Escrever poemas

cabe àquele


que nunca

do amor

fugiu.


E o amor

tem muitas

faces e flores.


Por vezes

é de espinhos

que nos abrem a mente.


Sabei, meu filho,

o ganho será eterno.


Pois o que se ganha 

será repartido com a matéria 

em proporções extraordinárias:


Da terra amanhecem sementes,

dos céus nascem sol e sombras.

Lagunas

De madrugada

o galo canta


e as novinhas

acordam felizes:

já colheram maçãs

e nenhuma envenenada.


A natureza da carne

são experiências

indizíveis.


Os segredos, se envelhecem,

perdem a graça, mas o que morre

é a vontade de se querer encantado.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Os sonhos têm sabor de baunilha

A eternidade já juntou todos os búzios

e todas as pérolas em sua homenagem.


A única magia

que enlouquece

o meu coração

é a sua dança


segurando uma latinha de cerveja

de camiseta preta sem escrúpulos

branquinha, sapeca, sacerdotisa.


Digo-lhe que a eternidade

já fez do seu olhar pagão

a minha crença noutra vida:


O seu corpo de fêmea

é a ponte de pétalas

para o encanto

da carne.

domingo, 20 de setembro de 2020

Amores

Não tenho sede de viver sufocado 
pois das mil fontes tenho bebido 
ah delícias, ah infernos 

e em todas as margens 
encontro passos de fantasmas 
que mudam orquídeas de janelas

conversando com seus botões mágicos
que por ora morrem e que por ora acordam. 

Pássaros não se cansam
das suas penas nem
os seus olhos

da terra
e nuvens.

Ah delícias,
ah infernos.

A razão pura
tem o fim 
supremo.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Mandala

Será você o espaço entre o vazio e as formas. Não fugirá do ser o que ao ser é dado por existência e fluidez. Os animais que voam e os que se escondem sabem do profundo caminho. Os peixinhos de riacho e os de corais dão voltas dentro da casa de quem vive no aquário. Conhecem as maravilhas das águas que seguem e dos corais que brilham. Entendem e amam os que dormem.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Salto

Cazuza, Cartola, Cartola, Cazuza cantam a mesma angústia de Kierkegaard. Arboredos, chapadas, nascente. Volte, boa memória, da natureza de Rousseau: sanduíches, cachoeira, baseados.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Cintilante

Transferir o amor

para o filho e todas

as consequências

extraordinárias.


Pensamentos

e ações.


Matéria e espírito,

razão, doçura.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Tocador de Alaúde

Escrever poemas é a forma mais rápida 
de ter uma overdose de ternura e lucidez. 

Dos amigos fantasmas 
que já me habitaram, 
hoje, todos são livres.

A poesia supera-se 
a cada ventania. 

Até sempre, 
como nunca.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A Gnosiologia do filho

 Mães que envelheceram,

pais que seguiram adiante.


E o pêssego de suave destino

convive com delícias.


Estação que não muda,

tempo que é bênção.

Cítaras

 Acredito que existe uma troca

e que essa troca é justa 

entre o hóspede 

e o senhorio.


Se o servo (ou se o espírito)

não entender a nobre façanha

de quem ocupa e de quem cede

só haverá enganos, dor e ilusões.


O daemon é tão importante

quanto a consciência aberta.


A vigília da criança

que não perdeu o juízo.


A mágica do ancião

que conservou a infância.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Visões Sob Reflexos

Lança-se o fogo

pelos versos

e agitam-se


os fracos

e os tolos.


Há comida para todos,

pensam os últimos ratos.


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Canção Lusitana

Se você perde

o frescor da carne

o coração pesa


centenas

de cadáveres

tão sonhadores.


A lua encontrou um lugar para dormir

entre os galhos das oitis

da minha calçada.

Das Janelas Abertas

Quando a outra parte do universo

suplica por um pouco de luz


o poeta apresenta

o escândalo da ternura.


Não tardará, baby, aquele antigo fantasma

acorde bebendo na taça da justiça e coragem.


Os ossos de todos os vermes

viram pó na primeira mentira.

Primavera

A sua pele de serpente

precisa de sol e joias.


A sua face de santo

suspira de mansidão.


O inferno some

por seus olhos


e as palavras

queimam o céu.


Não existe outra forma

de sinceridade senão

pelas palavras.


O silêncio

é a derrota

do corpo,


enquanto as palavras

alegram o sangue


das serpentes

e dos pássaros.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Infância

Dos muitos insultos 
que os fantasmas vociferaram
contra a minha vida e meu destino

egocêntrico
era o mais
comum.

Mas que mal pode
ruir sobre minha cabeça
se nuvens de rostos somem
diante da clareza quando acordo?

Se nem
durmo.

domingo, 26 de julho de 2020

Engenho

Os passarinhos respiram
quando estão cantando.

Quando não cantam
estão a meditar sobre
as lagartas e humanos.

Se querem uma fruta
voam até lá e bicam-na.

Se têm sede
mergulham
em poças.

Se preferem um menu excêntrico
(a parasitas e outros insetos)
fazem uma assepsia

no lombo
de um burro velho.

sábado, 25 de julho de 2020

Costelas de Éter

Você dirá que acabou
a minha obsessão poética
a loucura em cortar o pulso
para ver o sangue e admirá-lo

em breves suspiros 
pelas paredes.

Creio que de fato chegou ao fim
o cilindro de oxigênio desse cadáver.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Cabide

Com o tempo,
na leveza e doçura,

os objetos começam a ter
a importância de um cabide

para a toalha 
de banho.

Coisa simples,
fato simples

(meio que 
sem vontade
de ser escrito).

terça-feira, 14 de julho de 2020

Nescau

Agora você sabe
que não terá fim
o nosso encanto -

útero, língua,
palavras.

O que dissermos, filho,
a eternidade propaga,
queima e joga

debaixo
da ponte
as cinzas.

Os peixes
conhecem
a temperatura
dos nossos sonhos.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Bolachas

Voltei a ser um bom camarada
com aquelas formigas
da toalha de mesa.

Não limpei
os farelos.

Que engordem
na disciplina
de faquir.

Em outra tarde
deixarei poças

de sorvete
e creme.

sábado, 11 de julho de 2020

Burgo

Os frades tão fragilizados
por terríveis orações 
aos céus

e mil pensamentos 
da carne

enquanto caminham ao mercado sofrem de pânico:
A nuca das camponesas exala o inferno, sonham.

Pulsações Aromáticas

Quando começamos a esquecer o caminho de casa
oh, meu querido, é que já estamos prestes a cair
no poço e dormir na escuridão.

O disfarce e ardis
da patética loucura

é tocar trombetas do efêmero
julgando eternidade aos sons.

As flores hipnotizam borboletas
mas também ferram as abelhas.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

O Lusitano Caolho

Para um míope
paquerar da janela
é desastroso, docinho.

Embora a vista
seja um profundo

encanto feminil
cheio de magia.

Da janela do quarto
escrevo versos e vejo

o profundo encanto feminil
em sensuais gracejos de candura.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Ligações Aéreas

O preço da tua lucidez
é a clareza que não escapa

nem por entre teus cílios
nem pelo abismo dos dedos.

Areia, orvalho,
vapores e brumas -

nada se esconde
da tua mente.

O coração é um observador
do estado da alma e o que diz
é da conta apenas das vértebras.

O coração não conversa
com as vozes da mente.

Oferece
às vértebras

o testemunho
do sangue.

Basta-me o sangue
que não é frívolo
para festejar
a vida.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Café

Já fui crucificado, baby.
Não guardo mágoas
nem aquela coroa
de espinhos.

Dentro da minha caixa de sapatos
só cabem moedas antigas, uma
florzinha de pétalas murchas
e as tuas últimas cartas.

Fiz um mapa
até tua casa.

Quero te mostrar
o som de um trompete.

Pois olha, meu bem, 
aprendi a tocar 
o instrumento
do diabo.

Antes só vivia
de flauta doce
feita de bambu

debaixo de tua janela
e tu morrias de tédio.

Agora, meu bem,
as mulheres do diabo
requebram ao meu solo.

Mas tu, incrédula,
detestas o delta
do Mississippi.

E satirizas o meu coração
com tuas agulhas de acupuntura.

Vaidade e Sigilo

Magnífico mesmo
é o não-encontro:

a fantasia 
e quimeras

roendo-se
de vontades.

O meu corpo
que não verás
admiro todo dia.

A minha gargalhada
e o riso silencioso

que nunca
tocarás

alegram os objetos
da casa de minha mãe.

Sabemos que nossas mentes
fertilizam-se pela distância.

As nossas mãos permanecem
mãos de náufragos brincando
com garrafas vazias e gravetos.

Subterfúgio

Ora, ora, ora -
você ainda pensa
em cortar os pulsos
por vacilos gramaticais?

Palavras, seres e objetos -
tudo é graça, meu doce.

Se troco vocábulos masculinos
por femininos é que na minha cabeça,
alma, espírito, psique e paralelos ocultos -

tudo, baby,
é feminino.

(bela desculpa,
hein, Sophia?)

Desfile

Adoro as oitis
da minha calçada.

Os pássaros
que tocam
gaitas

e tudo
mais.

Entretanto, enlouqueço 
quando uma camponesa

de short branco estiloso
caminha pela outra calçada
e não posso desfrutar do Éden:

Os galhos (como garras de um inimigo)
impedem por zombaria o encantamento.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Vinicius

A força é suave
e remove peixes
podres do caminho.

Só peixe fresco
de olhos luminosos
alimentam o espírito.

Vendedores de peixes podres
vivem envenenando as multidões.

As multidões preferem
peixes podres fáceis de engolir
a peixes frescos luminosos ocultos.

Oh, quanto dó
das multidões
enlouquecidas.

Prendem o oxigênio
arrebentam os pulmões
e escolhem o céu duvidoso.

Não conhecem o perfume
do mar repleto de peixes
frescos e luminosos.

Entregam a alma
aos vendedores

de peixes
podres.

Oh, quanto dó
dos fracos e tristes
que vociferam bobagens

e dormem prontos 
para a violência.

domingo, 5 de julho de 2020

Ciranda

Morro de carinhos
pela senhorita Lola

e depois
vou lavar
minhas mãos.

Sei que a senhorita Lola
(a cadela adotada)
é bem limpinha, 

mas 
sabe-se lá

dos pensamentos
das pulgas apaixonadas.

sábado, 4 de julho de 2020

As Oitis

Você põe fé que existe
uma dor de cabeça 
boa, meu amor?

Aquela, meu docinho,
fruto da total lucidez.

Acredita que até minha erva
perdeu o glamour jazzístico?

Adoro a minha cara de bisão
e a doce alma de passarinho
à espera de nada e ninguém.

Dos galhos das oitis
as criaturinhas dos céus
fizeram flautas e bandolins.

Nenhuma andorinha
nem bem-te-vi foram
acusados de vadiagem.

Ato

Antes de dormir
apago um poema.

Não vacilo
entre versos
fracos e tristes.

São armadilhas
para a loucura
que espreita.

E morde
a língua

o vento
da noite.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Estrondo

Faz um tempo que recorro ao vazio
e os ossos uivam e a carne (exuberante)
encontra o entendimento na febre do espírito.

Somos peregrinos da grande surpresa
que provoca luz ao útero -

antigamente,
de barro e fábulas
e desgraçado pavor, baby.

Veja o que foi alterado
dentro da sua cabeça

e os seus pés
agora voam.

As ideias
têm mãe
e pai.

Se dormem ao relento, oh,
é só por magia, meu docinho.

Nir-bana

Então, baby?
A iluminação
é algo corriqueiro.

Deveria ser comum
e entrar no calendário
das pessoas mais fortes.

Sabe quando
o anel no dedo
é um presente?

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Das Levezas

Já escrevi poema
sobre o apito
da chaleira.

Sobre a timidez
e o medo de Lola.

Sobre meu espírito
e as minhas bolas.

Sobre o meu bigode
e a metafísica dos objetos.

Já escrevi poema
sobre as cicatrizes
do meu pulso esquerdo.

Sobre os passarinhos
das árvores de oiti.

Sobre a camaradagem
do meu bermudão surrado.

Já escrevi poema
sobre o meu primeiro amor 
e sobre a magia negra do cinismo.

Já perdi alguns dentes.
Já perdi meus óculos.

Já escrevi poema
sobre as romãs
da clínica 

e sobre a psicóloga
os cílios postiços
e seus sapatos.

Já escrevi poema
sobre a morte
do louco.

Sobre a chuva,
sol e festins.

Já escrevi poema
sobre fantasmas
da infância.

A dor, a doçura
e a fatalidade.

O apito da chaleira
é só uma súplica

da água 
fervendo.

Navegante

Raspei a cabeça, baby,
do jeito que tu gostas
e tu queres

que enfrente
os ávidos.

As minhas armas
são perigosíssimas.

Uma bala soft, baby,
engasga o apaixonado.

Cresceu o poeta, minha querida,
e de cocaína degusto hoje em dia

o melhor café
da paróquia.

Minha mãe diz
que morrerei
com fama

do mais talentoso
fazedor de café
da Colômbia.

Tragédia Consumada É Tão Patética

O poeta que não escreve versos
é aquela espécie de pescador
que se cansou de pescar

e vive debaixo de um barco velho protegido 
da chuva abraçado a uma garrafa de conhaque.

As sereias e as serpentes marinhas
também já se esqueceram da sua voz.

E não existe saudade
onde não há desprezo.

Pudico

Raramente
depilava-me

mas ao conhecê-la
é agora um doce hábito.

Compro um sabonete especial
e um barbeador de última geração
e relaxo sob os seus sonhos e cuidados.

Sei da sua sensibilidade
no terreno das minhas bolas.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Partituras

Não lhe confessarei os meus segredos obscenos, baby.
Se fosse você minha potranca de crina encaracolada 
seria minha alma a de um cavalo de dote irresistível.

Mas sou um ser etéreo,
carnal e distante.

Não convém que eu atice
a sua imaginação e febre.

A minha língua
que reza poemas

é aquela mesma língua bifurcada 
que idolatra salgadas margens 
das grutinhas de caboclas.

terça-feira, 30 de junho de 2020

Bugigangas

Não é sacrifício
evitar o passo em falso
aquele andado meio trôpego
e a fatídica exceção a uma tolice.

O que lhe falta,
moço?

Você tem o que comer
o que beber e o dinheiro

do lúdico e também
das responsabilidades.

Seguir sob a luz da leveza
não é sacrifício, moço.

A essa altura
do campeonato
não deveria, moço,
existir dor de cabeça
por um reino de néscios.

Séculos 80

Já usei tantas vezes
fórceps e hashi
para extrair
poemas

da minha
cabeça.

Os poemas do coração
utilizo teu perfume
eau de l'arc.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Sannyasa

Até a muriçoca percebe quando
estou contemplativo de eternidade 
e evita passar perto das minhas orelhas.

Esconde o violino de cordas quebradas
e some pelas paredes da área de serviço.

Delta Do Mississippi

Nunca tive biquinho de trompetista
mas faz alguns dias que perdi a manha
de beber café - ou a minha xícara branca
vive de mal dos meus lábios: Inevitavelmente
pingos de café caem no meu peito e no bermudão.

Sujeito-me a beber meu café
lambendo a boquinha 
de porcelana

em movimentos 
circulares.

Acredito que minha pequena descobrira uma forma
intensa e rápida de chegar a orgasmos múltiplos.

sábado, 27 de junho de 2020

Apresentadora

Basta um corte
de meio palmo
na saia da mulher

para que o poeta 
enlouqueça e pule da janela 
com o jarrinho de orquídea na mão.

Magias

Seus ossos são da matéria
dos seus pensamentos
e as nuvens 

das suas
ações.

O caminho
não cai sobre
os seus ombros.

Você que escolhe e segue
cada passo e cada trilha.

Os tombos e os sustos
servem para mostrar a casa
que você abandona ou que já habita.

O tesouro
que brilha
lá fora é triste.

Colha as suas romãs
e divida com passarinhos.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Idealístico

Claro que você meu caro terá importância
para os olhos de quem se oculta aos outros

mas revela-se
ao seu coração.

A força será tanta
que seus passos
vão brincar

de voos
repentinos.

Por pouco
você sumiu
e agora é vasto.

Ninguém próximo ou distante entenderá
a energia que das multidões se reguarda

mas deixa seus ouvidos
atentos e limpos
aos pequenos
das oitis:

Os pássaros
sempre foram
amigos do peito.

Hereditariedade

Estava lavando
a minha máscara

quando resolvi alimentar
todo o meu povo e família.

Fiz uma salada de laranja, 
mamão e melão fatiados.

Ao meu filho
com nescau.

À minha mãe
salada pura.

Depois, o mesmo chocolate 
que servi ao meu filho
servi-me (seu pai), 

ou melhor,
seu coroa.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Quinta

Você não entende
os passarinhos
do pé de oiti?

Converse mais com Lola
(que não tira os olhos
da janela).

A cadelinha
conhece bem

as vozes dos
passarinhos

que saltitam
na calçada.

O Entendimento Não Regressa

A superstição só indica
a sua dúvida sobre
o caminho

que vai seguir
ou que já segue.

As cinzas demonstram
o quanto o fogo é gentil.

As nozes caem dos céus
embora seus pés na terra.

Quem sabe do olhar fiel
é aquela namorada 
cúmplice.

A luz que acende e apaga
não é a luz da eternidade.

sábado, 20 de junho de 2020

Turmalina

O eterno não se encontra
no que os seus olhos veem.

Mas naquilo
que o coração
guarda e protege.

A mudança de ares
não transformará
a sua alma.

O perfume de pétalas raras
e o cheiro forte de peixes mortos
não curvarão a luz que sobe e some.

Os três laços de amor que você deu 
na sua última vértebra ainda é pouco.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Cadelinha

A poesia jamais desaparecerá da natureza psíquica do poeta.
O poeta que alcança outro nível de obsessão e perde a graça.

Lola já não se requebra
quando ouve a minha voz.

terça-feira, 16 de junho de 2020

A Vizinha Do Térreo

Uma mulher fatiando abacaxi
observada do alto é um encanto.

Não queiras conhecer
os pensamentos da mulher.

Basta a inocente segurança 
da mulher fatiando um abacaxi

com a mesma faca 
que fatiará teu coração.

Saibas, meu poeta,
que apaixonado
o monstro

fugirá da caverna
e buscará carne
pelo caminho.

domingo, 14 de junho de 2020

Taifeiro-Mor

Comprarei para minha ex-mulher
um jogo de panelas tramontina.

Entendo a sutil degeneração dos objetos
sob a ausência de quem escreve poemas.

Aquele arroz soltinho
e aquele peixe frito

terão novos
cúmplices.

sábado, 13 de junho de 2020

Pétalas De Ontem

Depois dizem
que o poeta
não tem
a força

de evitar 
tragédias.

Pois da minha janela livrei com o pensamento forte
que uma donzela escorregasse na calçada 
molhada da chuva repentina.

Salvei do tombo a musa
que ainda deu um gritinho 
para o seu anjo da guarda.

O seu anjo 
fez-se de surdo.

Mas o jovem senhor
que escreve versos
largou a pena

e cuidou
da situação.

Afinal, o anjo da musa
é seu demônio predileto.

Matinal

A garota Lola
passará uma longa temporada
sem ver o rostinho da menina do pet shop.

A única causa
foi você ter
passado
a mão

na cabecinha
da minha cadela.

O seu carinho tão tenro 
e o perfume da sua mão,
digamos, de sacerdotisa,

inundaram meu espírito
de fabulosas sensações.

Lola passará séculos e séculos sorrindo vaidosa 
sem tomar banho com o perfume da sua mão
na cabeça e orelhas.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Suave

O inferno do outro
não me sensibiliza.

Já tive os meus
e com frequência
acordava enlouquecido.

O fogo que consumia
o meu ventre pela volúpia

agora é um fogo que pela volúpia
eleva os meus sentidos ao entendimento.

A volúpia
é redentora.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Escaravelho

A miséria nunca esteve presente no corpo.
O corpo sempre se soube corpo e não há ilusão.

Miséria existe em grande potência no espírito 
que não entende de que matéria é formado.

Cego, ataca a si através do corpo
em frescor ou na velhice.

Perde-se e afoita-se
contra o que desconhece.

O corpo sempre se soube
passageiro por natureza.

As flores que o corpo planta secam 
e morrem quando a sua seiva finda.

O espírito, cego e tristonho,
enlouquece e afoga consigo
a imagem do corpo que some.

Passarinhos

Um grande poema ou um poema medíocre
qual a importância para quem já morreu?

A poesia será ficção
enquanto o poema
não for escrito.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

As Vestes Que O Fogo Não Queima

A poesia é a ponte de rompimento
com o pacto ilusório do homem
pelo homem. O poema nunca 
caminha sozinho: Existem
duas pontas da corda,
uma que está no alto
e outra no fundo 
do poço.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Sementes De Laranja

O meu primeiro amor
fazia aquele tipo de tranças
com bobes de ferro e produto alisante
(embora seus cabelos de mel fossem plumas)

mas fazia 
e encantava-me.

Natural que ao ver uma mulher
com aquele penteado de trancinhas
em ondas de espirais caindo pelos ombros 
da minha janela eu chore e suspire aos céus.

sábado, 6 de junho de 2020

A Dócil

A melancolia de Lola
chega a ser mística
debaixo da mesa
pensando 

naquele tempo
de abandono.

Lola aproveita-se da metafísica de sua tristeza
e não me ouve suplicar por sua presença na sala.

A cadelinha sabe
que tenho na minha mão
a seringa para seus remédios.

Sussurra alguma coisa mágica
e tapa os olhos com as patas.

Dark

A minha pele é muito sensível,
sobretudo das minhas bolas.

Cuidado com o piercing
de cobre na sua língua.

Como lhe disse um dia,
ainda tenho muitas
terras férteis pra
fecundar, baby.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Canções

Você acredita
que já fui cantor?

Mudava o timbre
sem que notassem.

Daí, chamaram-me
desafinado, um horror.

Parei de cantar
e continuei escrevendo.

Canções, baby,
escrevo canções.

Pois, a cantar
sou triste astro.

Sabedoria Na Casa De Mãe

Liberdade
é transitar
entre dois
lugares,
ou mais,
e não
dizer.

Poemas são duros de escrever
quando não querem ser ditos.

Mas, ó-lá-lá,
se querem,
gostam.

Diga, filho,
qual novidade?

O amor
é digno.

Siga,
filho,
amando.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Engenhos

Observando Lola
lambendo-se

medito sobre
a vida dos cães.

Em particular,
a vida dessa
cadelinha
Lola.

Quatro anos de solidão,
e há três meses adotada.

Ração das boas,
água e esporte.

Sem falar da perfumaria,
medicina veterinária,
laços vermelhos
e ciganos.

Lambendo-se
Lola não reflete
sobre sua existência.

Mas decerto sente
que a vida mudou
de espinhos para
flores aquáticas.

Vendo Lola
lambendo-se

concluo que alguma força
observa as minhas ruminações
e ama minha cabeça maluquinha.

Litoral

Dentro da minha gaveta
(a um braço de onde estou)
guardo cartas antigas, moedas
de ouro e um bom punhado de erva.

Mediante o clima do ritual,
utilizo as líricas lembranças
das cartas de amor, a temperatura
das moedas de ouro e a fluidez da erva.

A cada passo,
segurança.

Esqueça as armas do passado,
a fúria e os desejos de pântano.

De onde estou
estiro o meu braço
e toco minha gaveta.

O coração,
ouve?

Dante Alighieri

O meu nariz
é simbólico.

Já entrou em frias
pra chuchu, baby.

Cheirou pelos, pó, éter,
axilas, nucas e virilhas.

Quebraram-no
duas vezes.

A primeira,
na infância

por um soco
de uma criança
bem mais velha.

A segunda,
na mocidade

por outro soco
ciúme louco
de rival.

E veja só,
o meu nariz
é um sobrevivente.

Ares epifânicos,
místicos, galantes.

Ultimamente
senhor de si.

Não entra em ciladas
tampouco é levado
a sério

pelas camponesas
que continuam 
colhendo 
maçãs

usando decotes
magníficos.

Dia Dos Bruxos

Ainda sou um menino mau
e jogo carocinhos de laranja
pela janela da minha varanda.

Antigamente
era perverso
e jogava

cartas
de amor.

Algumas vizinhas
passaram a me odiar
por meu romantismo.

Até o dia em que cheguei
com uma xícara na mão
pedindo açúcar

à porta
de cada
uma delas.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Deleite

Agora que você não tem nenhum vínculo
com os antigos demônios quem o espera?

O banquete está posto
na sua nova casa
e as moscas
fugiram.

Alimente-se
da sua voz

e cave
um túnel
para guardar
os seus poemas.

Secreto

Não há a menor chance
nem a mínima possibilidade
de agouros funestos perturbarem
a sua cabeça e causarem enjoos ao seu coração.

O entendimento
é um suave
fogo.

A volúpia é doce,
a coragem é delicada.

Acredite, foi o vento
que derrubou a sua fotografia
e a mariposa que entrou no quarto
só queria lhe agradecer o seu presente.

Tabelião

Os meus segredos eu só confesso
em transe consciente, ou seja, 
escrevendo meus poemas.

Jamais ouvirá da minha boca
embriaguez irritante e patética.

Principalmente
porque parei
de encher
a cara.

De cheirar
e fumar.

A fantasia também
tem um fim, filho.

E o que planto 
é a verdade.

Óbvio, a verdade do meu ponto de vista.
Do seu ponto de vista é a sua verdade.

Precisei parar de ficar bêbado,
cheirar cocaína e fumar pedra
pra acreditar no meu mistério.

Meu mistério
que se expande
para você, filho.

Nada de outro mundo,
enlouquecedor e obscuro.

Transformações

Depois que entendemos
que o estímulo das multidões
é a ignorância, passamos então
a amar a solidão e adorar os objetos.

No meu caso, sobretudo 
a xícara branca de café.

Já se foi o tempo em que fazia
negócios com a poesia e o mundo
girava em torno da minha obsessão 
por sombras que lessem meus poemas.

Quem hoje em dia vier à minha casa
saberá que em cada palavra 
existe um transtorno.

Não há outro meio particular de ver o sol
dentro da bota engolindo a meia
ou de uma flor debaixo 
da escrivaninha

se não for
pela poesia.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Gênios

Quando o meu filho me diz:
"Relaxe, pai, relaxe."

Entro em meditação profunda
encho garrafas de areia colorida
e vamos vendê-las em Jericoacoara.

Mas sob essa sombra pandêmica
eu e meu filho resolvemos plantar
abóboras e aproveitando as sementes
alimentamos todos os tipos de passarim.

O meu rapaz
menciona que
os meus olhos
são de graúna.

Fico feliz,
mas permaneço
em meditação profunda.

Floricultura

Já escrevi alguns poemas para ti,
acredito que chegada a hora
de beijar os teus lábios.

Por favor,
não sejas tímida,
tu sabes a que lábios
eu me refiro: um palmo
abaixo do teu umbigo, baby.

Onde nascem flores
em riacho sagrado.

Missionária

Amor eterno
ou amor que finda
são distrações da sua cabeça.

O amor, em si,
é o selo da eternidade
e não faz parte dos suspiros
dos corações ingênuos e vulgares.

A propósito, estive pensando
como despertá-la dessa loucura.

Mas é tão fascinante
vê-la eufórica e febril

entre multidões 
e na cama.

Pareço-lhe esnobe?
Você não viu meu fantasminha.

Pássaros e Oitis

Acabou de chegar o meu suplemento proteico BCAA.
Hei de fortalecer meus braços e as costelas a fim
de suportar a sua alma ninfomaníaca, baby.

Entretanto, acredite, 
na hora de escrever
não quebro o lápis.

Seguro a pena
com a brandura
de um ser etéreo.

E a minha voz é doce de alfenim
com um ácido debaixo da língua.

Rajadas

Você parou para pensar
que o último poema
é este?

O último poema
sempre será aquele
que acabou de escrever.

Uma mulher de luto
passa pela calçada
e me chamam
atenção

seus cabelos ruivos,
a gravidez recente,
os óculos.

Até esqueci
o que escreveria
sobre o último poema.

Vacaria

Anjos que tocam trombetas
anunciando minha vinda,
aviso-lhes, vão ficar
de castigo.

Silêncio,
meus amores.

Desejo o mundo
do jeito carnal
que somos.

Não ousem tocar suas trombetas
invocando a minha luminosidade.

Ninguém morrerá por meus olhos
nem por minha poesia, meus amores.

Tampouco aos céus
do reino fabuloso
serão salvos.

Amo o mundo
do jeitinho carnal
de que tenho na memória.

Por favor, não toquem suas trombetas
anunciando os meus versinhos diários.

Ninguém é maior nem menor 
que a própria sombra, meus amores.

O tamanho exato,
abstrato e fictício.

Oh, juro,
meus amores.

Agora, sigam
e toquem um blues.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Avivamento

O bom Sátiro
nunca se esquece
dos seus cascos de bode.

Afinal, caso esquecesse,
onde escreveria seus versos?

Não há tábua ou papiro
mais reconfortante.

Craterdã

As mulheres 
que você comeu
e as centenas seduzidas
por sua voz de espantalho

já sorriem
para estranhos.

Aliás, as mulheres
só amam enquanto
sentem atração pelo
ocultismo da palavra.

Depois que você se mostra
capaz de ser um covarde
calculando a sua grana,

então, meu amigo,
é hora de plantar
ópio na varanda.

Você precisa de contatos
que transem a sua fortuna.

Veja a cotação da papoula
do Cratinho de açúcar, hein?

Candelabro

Não leia poemas
como se fosse
uma louca.

Poesia é uma espécie
de demônio equilibrado.

Se você ler muitos poemas
como se fosse uma louca
perderá a sensatez
do delírio.

Esquecerá a voz
que guia cegos.

Tentará voar
com chumbo
nas costas.

Não leia poemas
como se quisesse
matar a sua fome.

Poesia é o mundo exausto 
de bem-aventuranças.

Ou 
sei lá 
o quê.

Ouça-me, 
não leia poemas
como se fosse mágica.

Arranque uma unha
com seus dentes

e assopre da janela
o seu último prazer.

Ou 
sei lá
o quê.

domingo, 31 de maio de 2020

Confissões De Xamã

Já lhe contei
que um tempo atrás

adubava as plantinhas da varanda
com as unhas que roía pensando em você?

Uma cresceu tanto,
muito linda, cabelos
amarelos esverdeados.

A minha melhor amiga
e adora quando eu leio
para ela meus poemas.

Voz De Passarinho

Se ninguém viu uma folha seca
que caiu do topo de uma árvore

é um equívoco pensar então
que o instante da queda
não existira.

Mas, convenhamos,
se apenas você contemplou
a folha seca caindo do topo da árvore -

acredite,
você é um deus.

Pentecostes

Agora que estou vacinado
contra os males do ciúme

até que você poderia vir
de vestido rasgado
nas costas

e aquelas sandálias de dedo 
mostrando os tornozelos brancos.

Juro que a última bala do meu scolt
atirei na cabeça de um pombo coxo.

Fiz uma boa ação
e mandei pro céu
dos passarinhos
um pombo coxo.

Não fiz
uma boa
ação, baby?

Oferendas

Que tal oferecer ao mundo
o que ao mundo pertence?

O seu bermudão, as botas do trabalho,
as clavículas do seu primeiro amor.

As orquídeas que morreram na janela
tiveram seu tempo de fama e magia.

Os latidos da garota Lola
animam os seres mágicos
que vivem na minha casa.

Alguns sorriem
criando círculos
com dedos azuis.

Meu Diário

Bebendo meu café
degustando um croissant
fazendo afagos na garota Lola,
diga-me, como ter saudade de ontem?

Já lhe falei
inúmeras vezes
que o passado não tem sal.

Céus, escrever poemas
nunca foi arte, meu bem.

Arte é só o instante do trabalho de carpintaria
em que se pensa seriamente que a morte chegou.

sábado, 30 de maio de 2020

Vapores

Depois que a poesia se recolhe
(não me pergunte o palácio)
eu fico só a casca.

Não há peso,
também não há leveza.

Depois que a poesia se recolhe
(não me pergunte a caverna) 

os insetos retornam
pra levar de volta
a casca.

Sábado

Um dia você acorda
e ninguém dará corda
girando à toa sua cabeça.

Você pensará apenas 
por seus próprios neurônios
e pelas linhas do seu coração.

Você saberá como andar sobre o fogo
sendo sua alma um poço de água transparente.

Nem um nem outro ponto extremo
atrairá o seu humor e sua clarividência.

Só você (desperto)
será o senhor das suas dúvidas
como também dos seus esplendores.

Entenderá que o jogo
não é jogado pela vaidade,
mas por amor a uma força maior.

E você caminhará sobre o fogo
sendo a sua alma uma folha de jasmim.

Bichinho Verde

As últimas chuvas de maio
convidam-me a fazer barquinhos
de papel e lançá-los da minha janela.

Se por acaso
algum barquinho
de papel chegar à sua casa,

leia a minha mensagem
dentro da garrafa de náufrago:

"Mergulhe, debaixo das ondas
os corais são mais sedutores."

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Espião

As pessoas que amo
estão protegidas.

As idiotas
tenho pena.

As que odeio
já sumiram
do mapa.

A poesia é uma arma branca,
escura, que faz sangria
e tira os pontos.

Após os primeiros versos
as suas mãos jamais serão
as mesmas mãos de outrora.

Ainda que você queime
as provas do crime.

As fumaças entrarão por seus olhos
e você verá longe do que é comum.

Bodas De Brumas

Ah, sentirei saudades das minhas cabeçadas
e do cheirinho do meu café debaixo do chuveiro.

Você me promete que assim
que escrever meu último blues
você tocará trompete pelas ruas?

Dê o meu bermudão
ao meu primo do interior
e os meus livros (os remanescentes)
faça doação à biblioteca da comunidade.

As botas do meu trabalho
jogue ao terreno baldio.

Mas, por favor,
com delicadeza.

Lembre-se que o meu último blues
escreverei dormindo sobre seu colo.

Diabinhas

A propósito,
segunda-feira
é o dia do salário,
entenda-se, do pecado.

Já fiz minha toalete
e você dará gritinhos
de louvor à minha pureza.

Sabemos que a nossa volúpia é dourada 
e cingida à nossa alma uma coroa de louros.

Espere-me que chegarei
com aquele rosto em fagulhas.

O mesmo bermudão,
o mesmo andar trôpego,

mas agora (surpresa) 
um bigode cigano.

Pólen

Quando retornar ao seu templo,
por favor, devolva minhas bolas.

Sei que você adorou
o perfume de almíscar
e os campos de girassóis
que contemplou lá dentro.

Mas tenho que fecundar
muitas terras férteis, baby.

E as minhas bolas
são preciosas, hein?

Resguardam
quimeras.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Códigos

Se porventura você acordasse
com a sua capacidade cognitiva
na ponta de um diamante translúcido

seu caminho seria iluminado
por uma potente luz?

E nesse caso, a antiga verdade
seria oculta ou dispersa?

Caberia a quem
o novo homem?

Ao morto ser
ressuscitado?

Ou à ressurreição
que você desconhecia?

Os ratos, elefantes,
leões e pássaros
teriam outros
nomes?

Em que espécie de encanto
você entraria, meu poeta?


As Chaves

É tão comum as pessoas
para não morrerem de saudade
empalharem os seus amores eternos:
Aves, cães, gatos, cobras, coelhos, cavalos.

Por minha vez,
fui mais além

e desenterrei
tua clavícula.

Passo horas e séculos
acariciando o teu osso
sobre minha escrivaninha.

Filosofia

Será muito curioso
tirar a casa das costas
do caracol e ainda assim
querer que o caracol não sofra danos.

O caracol e a casa
são o mesmo ser.

Embora, meu doce,
você possa vislumbrar
vários ângulos e profundidade
sobre o destino metafísico do caracol.

Inclusive negar 
as existências

do caracol
e da casa.

Mas separar o caracol da sua casa
sem que o caracol não sofra danos
será de um ação mística espantosa.

Exuberância

Acredito que neste minuto
meus filhos tenham nascido.

Em cada ponto do planeta
um filho meu berra e abre
os olhos faminto por vida.

Acredito também
que minhas mulheres
estejam todas radiantes.

Lágrimas,
risos, tremores
no ventre e alma.

Céus, como amo
as minhas mulheres
e como adoro meus filhos.

Em cada ponto do planeta
um filho meu berra e abre
os pulmões sedento por ar.

Ah, e as minhas mulheres
como devem estar em êxtase
relembrando meus gestos e palavras.

Enviarei a cada mãe uma carta lírica
e um ramalhete do meu próprio jardim.

Vou colher agora,
agora mesmo.

Talvez consiga
uma borboleta
de olhos lilases.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Bravura

Claro que escrevi muitos poemas
para impressionar meu capitão
que debaixo de uma lona
traçava rotas de fuga.

E eu não parava de escrever
sujo de lama e sangue
entre cadáveres
na trincheira.

O capitão não deu outro passo,
uma granada estraçalhou seus planos.

E você me pergunta
se escrevia poemas
pensando na morte.

Ah, meu doce, escrevia poemas
pensando na curva da sua virilha.

Botija

É bom escrever poemas como naquele tempo
em que não ia à escola e bebia chá de cidreira,
xarope e refrigerante morrendo de febre e tosse.

A luz da manhã
bate direto no rosto.

E as árvores da minha calçada
são minhas amigas de longa data.

Talvez até exagero e disparate,
mas as árvores da minha calçada
são bem mais minhas confidentes
do que amigas dos seus passarinhos.

Dos seus besouros,
das suas lagartas,
da sua chuva,
do seu sol.

Os pés de oiti
da minha calçada
conhecem minha noite.

Durmo de janela aberta
para que os seus galhos
não arranhem a vidraça
imitando meus fantasmas.

Espere um segundinho,
que fantasmas são esses?

Já não existe mentira
entre nossos corações.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Óleos

Sabe, meu docinho,
às vezes a sua alma durona
de uma filha de um cossaco durão
impede que o meu coração romântico
expanda-se em nuvens abstratas e patéticas.

Guardo a pólvora e o láudano
dentro das minhas ânforas
e jogo fora os cachos
dos seus cabelos.

Por séculos
aguardei 
a carta.

Esfolei muitos pombos
que chegavam à minha janela
embriagados de conhaque e vodca
e mentiam explicando o seu esquecimento.

As estepes da sua terra são encantadoras,
mas dentro da minha cabeça o deserto é florido.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Deidades

O que me arrebata
não é a cor do olho
nem a formosura
da boca,

mas o que diz 
a alma da mulher.

Os seus segredos
dentro da bolsa
de estimação

no fundo
da gaveta.

As marcas dos dedos
naqueles chinelos antigos.

Os frasquinhos de esmalte
perdidos debaixo da cama.

Cântaro

Sardas no rosto
e a voz do encanto:
Ah, céus, como é fácil
uma poeta entrar na minha casa.

E chega assim
cheirando a sândalo
com os tornozelos nus.

Os versos que saem da sua garganta, menina,
trazem-me um frenesi medonho ao meu silêncio.

Só de bem,
vou molhar
uma plantinha.

domingo, 24 de maio de 2020

Selos

O poema após limpar o próprio corpo 
e a própria alma passa a ser o próximo.

As escamas não cheiram mal
e todo o acúmulo de sujeiras
é queimado pela clareza
da própria memória.

O poema passa 
a ser um ente liberto
que abençoa ou que revolta
em sua forma transformada.

Mas o poço permanece lá,
a água permanece lá.


sábado, 23 de maio de 2020

Fogueira

Quando criança
já admirava os arrebóis 
contemplando as asas da joaninha.

Só não imaginava
que as cores dos céus

também
voassem.

Peixinho Dourado

O princípio de toda
elevada ação é interior
e propaga-se a energia
por camadas superiores.

Qual o ser 
que confuso
segue evoluído?

Confusão
como mentira
são folhas secas
que nascem para ser 
consumidas no vento.

O desejo comum
é caminhar cego
entre mortos:

Envaidecer-se,
enfurecer-se,
morrer
bruto.

O Primeiro Sopro

A verdade de cada qual
é um véu sagrado
de cada um.

Os cadáveres entendem
a nostalgia do perfume
das flores dos túmulos

e procuram fugir
das lembranças.

Cada um com seu véu sagrado
de ilusões, fúria e esperança.

Os meus peixes
não servem para
matar a sua fome.

Pesque seus peixes
com as suas mãos.

Comovida, minha xícara
chora lágrimas de café
por seu rosto branco.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Filho

Quem de fato
trilhou o caminho
usando minhas pernas?

Quem pisou nuvens,
terra e lama calçando
os meus miseráveis pés?

Quem sangrou meus inimigos
com espadas e adagas de luz?

Quem me trouxe
esse entendimento
de que nunca morrerá
minha nobre consciência?

Quem beijará meu corpo
quando algo em mim tiver
partido do meio dos mortos?

Algo de mim
que não sou
e que morre.

Harpa

Acredito que hoje será a manhã todinha de chuva.
Essa chuvinha fina que as lagartas-de-fogo adoram.

As botas do trabalho
suspiram encolhidas
com as meias dentro.

Já fiz e bebi
o meu café
de lei.

Você sabe
que o meu café
é o mais saboroso
de todas as galáxias.

Conquistei muitas mulheres
conversando sobre a vida mística
das lagartinhas-de-fogo bebendo meu café.

Algumas entravam em epifania
relembrando a infância de garotinha, 

enquanto outras de vestidinho e saínha a cruzar 
e descruzar as pernas levaram-me à demência.

Hoje, imagino,
será a manhã todinha
com esses ares espirituais
de conforto e chuvinha fina.