sábado, 28 de novembro de 2020

Lola

O vento forte de sábado 

que me faz fechar os olhos


e as folhas de oiti 

caírem no meu peito


é uma forma maternal do universo me dizer

o quanto é ilusória e verdadeira a minha alma.


Lola suspira

encolhida

entre


as cadeiras

e o sofá.


Lola sabe muitos segredos

sobre os ventos de sábado,

sobre as árvores da calçada,

sobre a outra margem do universo.


E suspira

com os seus olhos

de puro mel de ternura.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Papiro

"Ainda que os seus olhos

sejam arrancados do rosto

e lançados ao abismo 

da compreensão 


é  tão natural a luta 

contra o desconhecido,


pois não há interesse 

em ver de perto

o fogo 


de uma nova 

chama.


E em tudo que você põe os olhos

só revela-se a ironia dos deuses."

Sexta

Diante do que não conheço

qualquer intervenção

mental


é um equívoco,

trapaça.


Estou sempre despido

em volta dos pensamentos

exaltando toda a minha fraqueza.


A força vem do recolhimento

da casa erguida nos ombros

e a cada passo queimo

a última palavra.


Este que fala,

este que come,

bebe e divaga


só é digno

desta vida

de sonhos.


A verdade que supera

os meus ossos e a carne

guarda-se para outro tempo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Suave

Não julgues a escuridão,

pois a luz é a outra face.


Lembra-te de quando eras réptil

e rastejavas o ventre pela terra.


Se hoje és pássaro,

se usas vestes de pássaro,

não te esqueças do cheiro do poço.


Se hoje és um ser alado

cujas asas brilham

em círculos,


foste um dia coxo

e mancavas pelo deserto.


Alegra-te pelo entendimento

de que és apenas uma ilusão

do réptil que te ensinou

a conhecer o céu.

domingo, 22 de novembro de 2020

Castanhos

No meio do deserto

tenho vontade

de peixes,


mas não dou um passo

além do que pressente

o coração.


Não sou idólatra

tratando-se de deuses,


mas transfiguro-me, 

ajoelhado, diante 

da mulher.

sábado, 21 de novembro de 2020

Fábula

Às vezes,

por pura vadiagem,

jogo pela janela da varanda


sementes de maçã 

e pedacinhos 

das minhas

unhas.


Antes que as formigas da calçada reclamem,

os passarinhos das oitis correm ao meu auxílio

e usando as asas em forma de conchas colhem

a minha sujeira balançando o bico em reprovação.


Voam aos seus ninhos

e reciclam meus cílios,

cabelos, pele e poemas. 

Os monges copistas

Se você olhar bem

as palmas das minhas mãos

verá calos da lavoura em que trabalhei


para matar a sua fome e das flores

que cultivei na entrada do seu jardim

para que você nunca desconfiasse das abelhas.


Se olhar com mais atenção

também verá navios fantasmas,

balões do século XIX e templários

cavalgando em meio a brumas e luzes.


As palmas das minhas mãos

são relíquias da eternidade

do seu silêncio.

Café

Tenho ossos fortes,

a carne fraca e um espírito 

curioso entre magia e racionalidade.


Ora, ora,

mas o que escrevo?


Não é a magia outro nível

(gracioso) da razão? 


A minha alquimia é praticada 

na minha caverna ou nas ruas

todos os meus santos dias.


Não há um dia

em que o sol


não entre por meus olhos

ou o orvalho da madrugada

não molhe os cabelos brancos.


Os meus cabelos brancos

por vontade das palavras.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Réquiem para os flautistas

Ultimamente, baby,

são os bem-te-vis 

os meus guias.


Durmo de janela aberta

e acordo com essas criaturinhas

assoprando flautas da minha infância.


Caminho léguas

e eles seguem

meus passos


trocando de partituras,

espantando maus-olhados.


Os monstros do pântano

e assombrações

do deserto


fogem dos seus bicos

e dos seus blues.


Volta e meia,

pulam diante

dos meus pés

e ordenam-me:


"Poeta, vira à esquerda,

pois é sal e doce


a dama

da outra rua."

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Encanto

O teu rosto é de uma camponesa

que acorda cedinho (fabuloso decote à mostra)

para colher maçãs - e os passarinhos que pousam 

nos teus ombros alimentam pensamentos apaixonantes.


Assim, baby, 

são todos os passarinhos


que também se encantam por uma sacerdotisa 

cuja alma dança na praia noturna em volta da fogueira.


São testemunhas

da tua magia

a lua,


as estrelas

e a tiara de flores

que adorna teus cabelos.


Se o mundo brilha

é por tua causa

e não pelos

versos.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Devaneios

Não durmo,

aflito, pensando:

Que fim você dará

aos seus batons, baby?


Nesse tempo de treva

a sua boca vive oculta 

dos bárbaros e flautistas

e me dói a dor dos rivais.


Acredite, baby, prefiro aquele ciúme de outrora quando os cavalheiros

cortejavam o seu beijo atraídos por seus lábios fatais dos batons líquidos.


Até sonho com você sem máscara

assoprando delírios de luxúria

aos mercadores de Veneza.


Ah, baby, não jogue ao lixo

os seus batons de mil batalhas,

incríveis loucuras e doces vitórias.


Haverá o dia da marca do seu batom 

na minha última carta, ou eu cegue.

domingo, 15 de novembro de 2020

As oitis da calçada

A sua luta é vã

mas entendo

o anseio,


já caminhei por essa margem

e senti na cabeça o sol

desse deserto.


Trago cicatrizes

no meu pulso.


E um espírito firme

por tantos giros

em volta


do próprio

corpo.


Entendo o seu medo 

e a sua vaidade.


Os meus pés também foram queimados

pela margem desse deserto e meus olhos

cegos pelos pontos luminosos desse céu.


Trago entre minhas costelas

um coração leve e astuto

que só treme

ao vê-la.


Entendo a sua distância

e a triste lembrança

que você suspira

da minha voz.

sábado, 14 de novembro de 2020

Mosteiro

Mas nunca desejei o paraíso

se tenho clara noção do quanto

é duvidosa a salvação de um cara

que passa a vida a escrever poemas.


Chega a ser jocoso

o desejo celestial

se a minha carne

arde pela existência.


E não há outro alimento

para quem ama a terra

senão os frutos da terra.


A maçã e a sua serpente,

as uvas e a embriaguez

da camponesa.


Não, baby,

nunca contei

com a serenidade


mesmo nos tempos

de meditação transcendental

em que sonhava aventuras místicas.


Sou carne,

sou ossos

e vapores.


O que em mim há de celestial

é a única adoração pelos pássaros.

Postulados

Os cãezinhos

recém-adotados

e os passarinhos

debaixo da chuva,

 

quem há de negar-lhes

os íntimos pensamentos?


Ou você imagina

que um cãozinho

deitado no tapete


ou um passarinho esperando

a chuva passar entre as oitis

não se perdem em divagações?


Lembranças particulares

de uma memória etérea

de quando foram gente


e agora,

bem-te-vis

e vira-latas.

Os pássaros e as serpentes

A solidão é um bálsamo

para quem adora criar

as próprias formas

das sombras


e reconhece

que sua mente

tem um parafuso

a mais e outro a menos. 


O inferno dos meus desvios

só ocorre e me fere

quando fujo


da natureza

de poeta:


Um ser perdido

de solidão e multidões

que encontra sentido no poema.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O último toque de recolher

Há séculos e séculos

conheço o fogo

do seu sorriso:


Uma chuva

de estrelas cadentes

que atravessa a sua rua


e cai na minha varanda

iluminando o meu peito.


O meu doce e pobre

coração de passarinho

nunca mais será aquele

frágil e louco coração 

de passarinho,


pois acomodo

entre os ossos

das minhas costelas

a sua alma encantada.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A Corte Dos Corvos

O meu guia

é um beberrão

enquanto o outro

(também meu guia)

é um sábio arrogante -

ou seja, vivo perturbado.


Só você, meu doce,

com seus cabelos

de almíscar

e alecrim


para me salvar

desse barco

furado.


O pior

(nem lhe digo)

existe outro guia

que ouve os dois

(o louco e o pedante)


e vive sorrindo

em profundo silêncio

do poeta e das sombras.


Penso até que é ele mesmo

o verdadeiro fantasma

a plantar na minha

mente de corvo


migalhas de pão

e de girassol.

sábado, 7 de novembro de 2020

Cálido

O cego que enxerga

a verdadeira escuridão

da sua alma


já possui

então


a metade

da luz.


Mas aquele cego

que vive sonhando

com uma luz suprema


apenas para ser melhor 

do que os outros cegos 


é um cego tolo

e arrogante.


Ah, cego tolo,

ah, cego irritante,


desça dos céus da sua vaidade

pelos degraus dos ossos

do seu esqueleto


e beije a terra e sinta a seiva

da terra debaixo dos seus pés.


Essa terra 

será a sua cova,

mas também será

a sua plantação de trigo.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Gafanhotos

Quem se importa

por um poema

senão aquele

ser inocente


entre as palavras

e a vontade de morte. 


O poeta alegre

é patético

e se vive

triste


é tão tão

ridículo.


O mundo gargalha

do poeta trôpego

pelas ruas 


distribuindo dinheiro

e dizendo para as pessoas

o quanto são puras e doces.


Ah, quanta loucura

e quanta dor.


E o cego busca uma luz 

onde o campo de girassóis

já sofreu da última tempestade.