quarta-feira, 30 de novembro de 2011

não é solidão mas estou sozinho

Receito-me duas xícaras de café -
uma logo que amanhece o dia
e a última quando o sol

já quase morto [ou morno]
bate no fio de alta tensão
e atrai as andorinhas.

Ultimamente vigio-me
e aparto-me do vinho
e qualquer gênero
de fumaça.

Ando delicado em um território
que a mim pertence mas não conheço.

Sei que é forjado pelo fogo.
Fogo da lucidez e fogo da loucura.

Tenho flores para cheirar, mel para beber
e abelhas para ferroar meu rosto.

Quando se abre a porta
e revela-se outro paraíso,

digo-me sempre -
é bom ter cautela.

Duas xícaras de café parece algo bobo.
Mas se fossem duas xícaras de chá estaria doente.

Essas duas xícaras de café levam-me a sair do quarto.
Ouvir a cafeteira, visitar as plantinhas da varanda.

E é comum sentir na garganta um gosto diferente.
Não do café bebido mas da lembrança
do tempo em que o café
vinha acompanhado
de ópio

e giz
de cera.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

um olhar

O amor há de começar pela carne.
Pela jovialidade das marcas de nascença.

Meus cotovelos hoje sujos de um tipo de escama
pela monótona frequência de tantos banhos
pergunto-me para que me servem agora.

São tristes meus cotovelos por haver sumido
aquele verniz da mocidade.

Eu amava meus dentes e amava muito meus cotovelos.
Era tudo princípio e só existia para o meu deleite a carne.

O amor há de começar por aquilo que o tempo leva.
Que o tempo estraga e oferece depois outro sentido.

Justamente no tempo em que a medula range
quando nos curvamos para amarrar os sapatos.

E se não houver ouvidos destinados ao som da sabedoria?
E se o homem cansado mas vaidoso ainda ousar viver dos cotovelos da juventude?
E se os dentes amarelos por qualquer método de purificação estejam ainda mais brancos?

Creio então que o amor não se iniciou.
E se existiu foi breve e enfadonho.
Durou apenas o tempo
do espanto.

Vendo agora todos os dias meus dentes amarelos
e os cotovelos sujos de nódoas da existência
acredito que amei meu corpo
com intensa euforia.

Alguém que ame as rugas
das falanges dos seus dedos

como ama as ranhuras da sua estante
verdadeiramente amou a si e as coisas.

Esta minha fadiga tem nome -
é o amor exuberante
da minha carne.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

fim de temporada

Estou farto de poetas
pois já não me suporto -

esses olhos lacrimosos que escondem segredos
e não compartilham com as paredes
as últimas lágrimas.

Estou farto de bruxos que nunca beberam outra coisa
senão chá e café e limonada e de bruxas que nunca
fizeram fogo e queimaram as faces.

Estou farto da minha bebida, da minha loucura,
dos anjos que apunhalei e dos cadáveres
que andam presos aos meus pulsos.

Estou farto da minha xícara desfigurada,
das minhas botas tolas, da estante
de ferro, do teclado sujo.

Estou farto do meu cheiro no frasco de perfume
e do meu cheiro na minha pele e dos meus risos
e dos meus medos e da total ausência
de humanidade.

Estou farto da inocência dos golfinhos
que ainda morrem emaranhados
em redes de pescador.

Estou farto das estrelas, do meu pégaso
no telhado, do musgo, das águas-vivas,
das ondas, da poeira debaixo
dos meus tênis.

Estou farto das minhas cuecas no varal
e do vento que empurra o encosto
e me fere.

Estou farto de me sentir acompanhado
pelos pingos do chuveiro quebrado
batendo dentro do balde.

Estou farto da minha infância.
Estou farto da minha velhice.

Do meu sinal caindo pelo canto da boca.
Das costelas. Das minhas unhas roídas.

Estou farto de mim
que não me conheço.

Não ouço mais o que me diz a voz da fortuna.
Minhas mãos cambaleiam e nada trazem do jardim.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

cansaço

Dia a dia alimentamos nossa morte.
Nós nos divertimos tanto
e aproxima-se o fim.

Uma boa morte é alimentada
desde o início da tenra idade

com guloseimas, balões coloridos,
barquinhos de papel, pipas
e bermudões surrados.

Amo a tolice humana e amo a vaidade
oculta e tão óbvia no clarão
dos nossos olhos.

Você que é tão carente
noutros momentos
vivaz e eloquente

não aceita um drink
ou um chazinho
de hortelã?

A cada prazer delicado e simples
é um preparativo para a boa morte
que se anuncia.

Você vive cego
ou é passageiro
esse andado
trôpego?

Depois de um dia de batalha
carregamos nos ombros
três ursos.

Um para o vizinho
que ainda dorme.

O segundo para
a nossa sombra
dentro das botas.

E o último é somente seu.
O mais carnívoro,

presas horríveis
e bafo de onça.

Quem já se viu -
um urso com bafo de onça.
Mas é simpática essa imagem.

Durma,
você está exausto
após um dia de doçuras.

Amanhã cedinho
acorde seus ursos.

Vire-se e pegue de volta
aquele oferecido ao vizinho.

Calce suas botas,
espante sua sombra
e traga para si o segundo.

Quanto ao último urso
[o mais louco e feroz]

deixe-o
bem guardado

na terceira gaveta da cômoda
onde estão o fósforo, a taça
e o seu conhaque.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

folhas secas ao vento

A minha xícara perdeu o sorriso.
Era linda como antigamente -

as duas fissuras tão finas
em torno da circunferência.

Tremi de susto
ao vê-la hoje

com mil olhos
e dentes.

Minha xícara [é mais que posse -
é um amor entre pele
e porcelana]

deveria ser única
na minha boca

e eterna sob
meu olhar distraído.

Mas alguém a deixou cair -
cozinha, sala, varanda,
sei lá onde.

O que me dói,
exaspera-me a alma

é que alguém antes a beijou
mesmo contra sua vontade.

Ela silenciosa
de um silêncio triste.

E eu morto de desilusão
embora sempre soubesse:

o que mais fere
é o encanto.

domingo, 13 de novembro de 2011

inefável mas se sente



Você já me viu chorar
mas esqueceu minhas lágrimas.

E eu não chorava pela perda
de um desejo antigo
destroçado

mas sim [como choro agora]
por essa possessão poética

do meu sangue
e ossos.

É como se não me pertencessem
as palavras que brotam
da minha unha

no entanto,
as ranhuras delas
foram todas minhas.

Você não mais existe
e deixou de existir a partir
do dia em que esqueci teu aniversário.

Não foi maldade [acredite]
eram muitas lágrimas
dentro dos meus olhos,

e um cego lacrimoso
esquece até do dia
em que se fez
sol -

um lindo dia 
de sol.

sábado, 12 de novembro de 2011

meus tênis e um sapato estranho

Não preciso de sapatos.
É tão natural a textura das nuvens.

Deem os meus tênis e mais aquele bico fino preto
[nunca usado] ao cidadão da esquina.

Ele precisa.
Sinto que ele anda pesado.

Os meus tênis por serem velhinhos
são algodões-doces que se desmancham
nas calçadas sobretudo nas calçadas
ainda molhadas do orvalho
de ontem.

O cidadão da esquina anda carregado de muito ouro.
Necessita com urgência da alma daquele passarinho
que um dia se abancou no ombro
de São Francisco.

O sapato bico fino preto [concluo agora]
não lhe ofereçam. Também é carregado
e só tem no solado terras por onde
não andei e não conheço
o dono dele.

Pressinto que o sapato bico fino preto
não é recomendável para quem
deseja andar nas nuvens.

O cidadão da esquina
caso calce esse sapato
pode matar alguém
por mais dinheiro
ou mais ouro.

De quem será esse sapato bico fino preto?
Chegou-me ao quarto nem lembro
como e qual motivo.

Então deem somente meus tênis.
Todos eles e digam ao cidadão da esquina
para fechar os olhos quando atravessar as praças.

Meus tênis embora velhinhos gostam
de correr atrás dos pombos.

E por falar em pombos,
eles usam nike vermelho.

Vejam, não há um pombo
que não use um tênis nike vermelho.

a candura do pequeno sátiro

Se o teu filho te pede um sagaz aperto de mão em sinal
de uma amizade sem fim e sem nenhum tipo de vacilo
não é que ele esteja com vergonha do pai
ao levá-lo à catequese,

é que lá onde se aprende coisas de deus
de santos, rezas e histórias sagradas
também habitam ao olhar dele
meninas e meninotas.

O teu filho não se sente razoavelmente um homem
ao pé da calçada contigo beijando-lhe a cabeça
e abraçando-o sob gracejos
e despedidas infantis.

Tu não vês mas as meninas e as meninotas
encaram teu guri com um riso de deboche.

Quando, enfim, tu partes
elas chegam a desconfiar
e indagam irônicas
se o teu rapaz
de fato
tem dez.

Tu não imaginas o sufoco
do teu garoto.

Ridículo explicar aqueles teus efusivos beijos na cabeça
e abraços desesperados de quem vai pra guerra
ou retorna de outra mais longa.

Todas as meninas e meninotas coloridas de batons e esmaltes
metralhando teu filho com olhares e risinhos
e o teu pivete lá sem graça
um ódio louco de ti.

Sem mencionar os outros caras que vão sozinhos
dignos cavaleiros altivos e silenciosos
sem pai para beijá-los na cabeça
e sufocá-los em abraços.

Despede-te com bom senso,
faz o que te pede teu rebento:

um aperto de mão esperto
desses de mano
e só.

Deixa que beijos e abraços
ultimamente o teu filho
almeja das meninas
e meninotas.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

o crepúsculo é uma lenda

Agora é assim, qualquer esforço humano
meus pulsos doem e os nervos latejam.

Escrever é humano,
diga isso aos meus tendões
melindrosos
e frágeis.

Agora é assim, mal amputo meus dedos
sobre o teclado e nem se vê o sangue
meus pulsos já doem e latejam.

Como faço então meu amor para escrever cartas.
Sabe, essa manha das minhas mãos é herança
daquele tempo em que eu morria
em uma olivetti studio 45.

Batia a máquina mil cartas de amor e todas iam ao lixo.
Naquele tempo eu era jovem portanto podia morrer
quantas vezes quisesse - e todos riam da loucura
da minha língua que passava horas
fora da boca feito eu um lunático.

Valeu, hoje sinto-me um bom moço
por ter sido um amante exemplar
da minha velha máquina
de escrever.

E foram tantas voltas em torno da lua
usando rolos de fitas e léguas e léguas
de papel ofício.

No final [como agora] todas as cartas de amor iam ao lixo.
Isso não mudou, mas como doem hoje meus pulsos.

Haverá o dia em que só de olhar pras minhas mãos
elas se levantarão de dentro dos bolsos
quentinhas sem nenhum nervo delicado,
sem nenhum nervo mocinha,
reclamando de inflamação
nos tendões.

Mas tu sabes que te amo
e te amo mesmo sem nunca
haver trocado uma ideia contigo
nem trocado os lençóis juntos.

Te amo mesmo com os pulsos doídos
inchados e creio também
que estou nada bem
da garganta.

Garganta, pelo menos dela
eu tenho a voz que não muda.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

no ardor de uma tosse

Se tu nada fizesses agora
o dia todo sem mexer as mãos
nem um sequer piscar de cílios

que cor teria teu céu
e quais as fisionomias
das tuas nuvens?

Mas se tu matares uma serpente
e beijares enlouquecido uma andorinha
certamente

tua manhã será de um júbilo
e de uma alma florida
dentro da tua

que só mesmo o espanto
e a fúria do esquecimento
para enfraquecer o milagre.

velhinhas

As velhinhas me acham bonito.
Meus cabelos grisalhos
e o sinalzinho acima
do lábio direito.

Mas estou cansado de iludir as velhinhas
e empurrá-las da escada só pra que elas
quebrem as pernas ou a bacia
e prostrem-se entediadas.

Eu adoro isto -
alimentá-las na boquinha,
pentear-lhes os cabelos,
perfumá-las a alfazema.

Sim, sou um altíssimo santo maldoso
pois desejo para meu conforto
cuidar das velhinhas

que mesmo deitadas na cama
ou estiradas no sofá ainda que
desdentadas e suadas de apatia

querem-me bem,
acham-me bonito
e têm uma queda

por meus cabelos grisalhos
e pelo sinalzinho acima
do lábio direito.

Sempre ouvi falar em amor
jovial e dilacerante

mas não existe outro
tão rico e palpitante
quanto o que sinto

por minhas velhinhas de sorriso puro
depois de todo o pecado da juventude.

bruxas

Só as mulheres deveriam escrever poemas
e os homens escutar com os olhos atentos.

Os homens deveriam cuidar do fogo
e dos bichos ferozes atrás da montanha

enquanto as mulheres no seu dia atarefado
[couro secando ao sol e roupas enxutas no varal]
preparavam versos e não alimentos para seus homens.

Os homens que se mantivessem vivos atrás das montanhas
comendo a carne suculenta do animal ainda quente

e chegando gordos e exaustos a casa
lá estariam as mulheres com seus poemas.

Sentem-se homens tolos e frescos e ouçam os versos
das suas mulheres que além de cuidar do sótão,
da masmorra, da fornalha no quintal

tiveram tempo e delícias
para escrever poemas.

Ouçam bem, homens tolos e frescos
com os olhos atentos do coração
pois não há outra forma

de amar suas mulheres
suas belas e corcundas mulheres
que escrevem poemas fabulosos.

Vão pra montanha depois.
Pra lá das montanhas têm bichos ferozes
cacem e pelem e destrinchem todo o animal.

Comam da carne que é a mesma vossa,
homens tolos e frescos.

Não tentem escrever versos porque
só as mulheres o fazem
com perfeição
e suicídio.

uma guitarra melancólica

Ninguém me assombra
ou me causa leve desejo.

Aonde lanço o olhar são os ossos que voam
e se juntam às folhas secas da minha calçada.

O livro posto e esquecido é mais uma costela
sobre a estante criando uma alma de palavras.

Os corais vivem do sangue dos peixes desatentos,
digo eu, dos peixes destemidos que se ferem
e deixam peles das escamas em oferecimento
ao celestial brilho de quem se afoga.

Como eu, baby
como eu agora.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

mulheres

Quantas mulheres passam por meus olhos
e não me veem a criança doida por chocolate.

Sujar os meus dedos de chocolate
para que os lábios dessas mulheres

deem-me  beijinhos
e sorriem mansinho.

Quantas mulheres passam ao meu lado
triscam em minhas mãos e não se sujam.

Mas eu sei que elas ao entrarem no banheiro
percebem um cheiro de almíscar leve e amargo
nos pulsos e elas cheiram os pulsos e não entendem.

Pensam mil coisas
menos em um homem
com os dedos sujos
de chocolate.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

o tristonho dos tristonhos

Ai de quem não ama.
De quem não perde a tarde inteira
olhando pro teto e sonhando com aqueles olhos.

Ai de quem não ama e deixa de lado o leite no fogo
e as cuecas há semanas de molho
e o café já frio na estante.

Ai de quem não ama e não remexe as gavetas
à procura de somente uma carta perfumada.

Ai de quem não ama e não dá dois passos de volta
na calçada de uma floricultura embora sem grana
apenas para admirar aquela rosa.

Ai de quem não ama e quando a amada esquece
os chinelos de florezinhas debaixo da cama
o menino homem passa a noite abraçado
e cheirando os pezinhos da santa.

E não há de ser santo o amor.
Espero que um dia não o seja.

Ai de quem não ama e lê um livro
ou ouve um jazz e supõe felicidade.

Ai de quem não ama
e ainda escreve versos
pras andorinhas.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

compulsivo

O vinho abre a porta do inferno
e eu um diabo manco e caolho
desço as escadas espumando
no canto da boca loucura.

Mas como pode um infortúnio
em uma alma de santo?

Vinde então cruéis carrascos
decepai minha cabeça
e lançai aos porcos.

Doravante andarei apenas com o tronco.
Lúcido e delicado com o coração vivo
na concha das mãos.

E quem beber do meu sangue
beberá da vitória do mendigo
que acordou um rei -

um rei manso
que colhe flores.

fraqueza

Os mortos quando partem
não se refugiam no céu
nem no inferno -

prostram-se ao nosso lado,
nos nossos calcanhares,
nas nossas mãos,
na nossa nuca

e ai dos fracos que não suportam
o peso desagradável do morto
que não consegue fugir
desse vazio ridículo.

De tanto nos pesar nos ombros
e de tanto nos arrastar pelos calcanhares
e de tanto dizer palavras por nossas bocas

há momentos em que a nossa salvação é simples
como é natural um gatilho leve e uma forca perfeita.

Mas, faça-me o favor,
ser igual a um deles depois de morto
sorvendo a vida dos tolos que vivem feito fantasmas,

não,
isso não.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

ausência

Eu não fiz amigos durante a caminhada pelo deserto
nem quando cruzei o mar pescando.

Eu não fiz amigos enquanto caçava borboletas
ou quando deixava meus barquinhos de papel
tomarem o rumo da água da chuva
pelo meio-fio.

Eu não fiz amigos no telhado olhando as estrelas
nem sequer dentro das paredes naquele tempo
em que eu procurava um tesouro.

Eu não fiz amigos no funeral das minhas formiguinhas.
E estavam todos lá - minhas botas, minha xícara
e minha flauta doce.

Eu não trouxe nenhum amigo comigo
para tomar chá nem ouvir um blues.

Continuei só no quarto
olhando pras migalhas.

Um quarto sem formiguinhas
é um quarto triste
e sujo.