domingo, 31 de maio de 2020

Confissões De Xamã

Já lhe contei
que um tempo atrás

adubava as plantinhas da varanda
com as unhas que roía pensando em você?

Uma cresceu tanto,
muito linda, cabelos
amarelos esverdeados.

A minha melhor amiga
e adora quando eu leio
para ela meus poemas.

Voz De Passarinho

Se ninguém viu uma folha seca
que caiu do topo de uma árvore

é um equívoco pensar então
que o instante da queda
não existira.

Mas, convenhamos,
se apenas você contemplou
a folha seca caindo do topo da árvore -

acredite,
você é um deus.

Pentecostes

Agora que estou vacinado
contra os males do ciúme

até que você poderia vir
de vestido rasgado
nas costas

e aquelas sandálias de dedo 
mostrando os tornozelos brancos.

Juro que a última bala do meu scolt
atirei na cabeça de um pombo coxo.

Fiz uma boa ação
e mandei pro céu
dos passarinhos
um pombo coxo.

Não fiz
uma boa
ação, baby?

Oferendas

Que tal oferecer ao mundo
o que ao mundo pertence?

O seu bermudão, as botas do trabalho,
as clavículas do seu primeiro amor.

As orquídeas que morreram na janela
tiveram seu tempo de fama e magia.

Os latidos da garota Lola
animam os seres mágicos
que vivem na minha casa.

Alguns sorriem
criando círculos
com dedos azuis.

Meu Diário

Bebendo meu café
degustando um croissant
fazendo afagos na garota Lola,
diga-me, como ter saudade de ontem?

Já lhe falei
inúmeras vezes
que o passado não tem sal.

Céus, escrever poemas
nunca foi arte, meu bem.

Arte é só o instante do trabalho de carpintaria
em que se pensa seriamente que a morte chegou.

sábado, 30 de maio de 2020

Vapores

Depois que a poesia se recolhe
(não me pergunte o palácio)
eu fico só a casca.

Não há peso,
também não há leveza.

Depois que a poesia se recolhe
(não me pergunte a caverna) 

os insetos retornam
pra levar de volta
a casca.

Sábado

Um dia você acorda
e ninguém dará corda
girando à toa sua cabeça.

Você pensará apenas 
por seus próprios neurônios
e pelas linhas do seu coração.

Você saberá como andar sobre o fogo
sendo sua alma um poço de água transparente.

Nem um nem outro ponto extremo
atrairá o seu humor e sua clarividência.

Só você (desperto)
será o senhor das suas dúvidas
como também dos seus esplendores.

Entenderá que o jogo
não é jogado pela vaidade,
mas por amor a uma força maior.

E você caminhará sobre o fogo
sendo a sua alma uma folha de jasmim.

Bichinho Verde

As últimas chuvas de maio
convidam-me a fazer barquinhos
de papel e lançá-los da minha janela.

Se por acaso
algum barquinho
de papel chegar à sua casa,

leia a minha mensagem
dentro da garrafa de náufrago:

"Mergulhe, debaixo das ondas
os corais são mais sedutores."

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Espião

As pessoas que amo
estão protegidas.

As idiotas
tenho pena.

As que odeio
já sumiram
do mapa.

A poesia é uma arma branca,
escura, que faz sangria
e tira os pontos.

Após os primeiros versos
as suas mãos jamais serão
as mesmas mãos de outrora.

Ainda que você queime
as provas do crime.

As fumaças entrarão por seus olhos
e você verá longe do que é comum.

Bodas De Brumas

Ah, sentirei saudades das minhas cabeçadas
e do cheirinho do meu café debaixo do chuveiro.

Você me promete que assim
que escrever meu último blues
você tocará trompete pelas ruas?

Dê o meu bermudão
ao meu primo do interior
e os meus livros (os remanescentes)
faça doação à biblioteca da comunidade.

As botas do meu trabalho
jogue ao terreno baldio.

Mas, por favor,
com delicadeza.

Lembre-se que o meu último blues
escreverei dormindo sobre seu colo.

Diabinhas

A propósito,
segunda-feira
é o dia do salário,
entenda-se, do pecado.

Já fiz minha toalete
e você dará gritinhos
de louvor à minha pureza.

Sabemos que a nossa volúpia é dourada 
e cingida à nossa alma uma coroa de louros.

Espere-me que chegarei
com aquele rosto em fagulhas.

O mesmo bermudão,
o mesmo andar trôpego,

mas agora (surpresa) 
um bigode cigano.

Pólen

Quando retornar ao seu templo,
por favor, devolva minhas bolas.

Sei que você adorou
o perfume de almíscar
e os campos de girassóis
que contemplou lá dentro.

Mas tenho que fecundar
muitas terras férteis, baby.

E as minhas bolas
são preciosas, hein?

Resguardam
quimeras.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Códigos

Se porventura você acordasse
com a sua capacidade cognitiva
na ponta de um diamante translúcido

seu caminho seria iluminado
por uma potente luz?

E nesse caso, a antiga verdade
seria oculta ou dispersa?

Caberia a quem
o novo homem?

Ao morto ser
ressuscitado?

Ou à ressurreição
que você desconhecia?

Os ratos, elefantes,
leões e pássaros
teriam outros
nomes?

Em que espécie de encanto
você entraria, meu poeta?


As Chaves

É tão comum as pessoas
para não morrerem de saudade
empalharem os seus amores eternos:
Aves, cães, gatos, cobras, coelhos, cavalos.

Por minha vez,
fui mais além

e desenterrei
tua clavícula.

Passo horas e séculos
acariciando o teu osso
sobre minha escrivaninha.

Filosofia

Será muito curioso
tirar a casa das costas
do caracol e ainda assim
querer que o caracol não sofra danos.

O caracol e a casa
são o mesmo ser.

Embora, meu doce,
você possa vislumbrar
vários ângulos e profundidade
sobre o destino metafísico do caracol.

Inclusive negar 
as existências

do caracol
e da casa.

Mas separar o caracol da sua casa
sem que o caracol não sofra danos
será de um ação mística espantosa.

Exuberância

Acredito que neste minuto
meus filhos tenham nascido.

Em cada ponto do planeta
um filho meu berra e abre
os olhos faminto por vida.

Acredito também
que minhas mulheres
estejam todas radiantes.

Lágrimas,
risos, tremores
no ventre e alma.

Céus, como amo
as minhas mulheres
e como adoro meus filhos.

Em cada ponto do planeta
um filho meu berra e abre
os pulmões sedento por ar.

Ah, e as minhas mulheres
como devem estar em êxtase
relembrando meus gestos e palavras.

Enviarei a cada mãe uma carta lírica
e um ramalhete do meu próprio jardim.

Vou colher agora,
agora mesmo.

Talvez consiga
uma borboleta
de olhos lilases.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Bravura

Claro que escrevi muitos poemas
para impressionar meu capitão
que debaixo de uma lona
traçava rotas de fuga.

E eu não parava de escrever
sujo de lama e sangue
entre cadáveres
na trincheira.

O capitão não deu outro passo,
uma granada estraçalhou seus planos.

E você me pergunta
se escrevia poemas
pensando na morte.

Ah, meu doce, escrevia poemas
pensando na curva da sua virilha.

Botija

É bom escrever poemas como naquele tempo
em que não ia à escola e bebia chá de cidreira,
xarope e refrigerante morrendo de febre e tosse.

A luz da manhã
bate direto no rosto.

E as árvores da minha calçada
são minhas amigas de longa data.

Talvez até exagero e disparate,
mas as árvores da minha calçada
são bem mais minhas confidentes
do que amigas dos seus passarinhos.

Dos seus besouros,
das suas lagartas,
da sua chuva,
do seu sol.

Os pés de oiti
da minha calçada
conhecem minha noite.

Durmo de janela aberta
para que os seus galhos
não arranhem a vidraça
imitando meus fantasmas.

Espere um segundinho,
que fantasmas são esses?

Já não existe mentira
entre nossos corações.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Óleos

Sabe, meu docinho,
às vezes a sua alma durona
de uma filha de um cossaco durão
impede que o meu coração romântico
expanda-se em nuvens abstratas e patéticas.

Guardo a pólvora e o láudano
dentro das minhas ânforas
e jogo fora os cachos
dos seus cabelos.

Por séculos
aguardei 
a carta.

Esfolei muitos pombos
que chegavam à minha janela
embriagados de conhaque e vodca
e mentiam explicando o seu esquecimento.

As estepes da sua terra são encantadoras,
mas dentro da minha cabeça o deserto é florido.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Deidades

O que me arrebata
não é a cor do olho
nem a formosura
da boca,

mas o que diz 
a alma da mulher.

Os seus segredos
dentro da bolsa
de estimação

no fundo
da gaveta.

As marcas dos dedos
naqueles chinelos antigos.

Os frasquinhos de esmalte
perdidos debaixo da cama.

Cântaro

Sardas no rosto
e a voz do encanto:
Ah, céus, como é fácil
uma poeta entrar na minha casa.

E chega assim
cheirando a sândalo
com os tornozelos nus.

Os versos que saem da sua garganta, menina,
trazem-me um frenesi medonho ao meu silêncio.

Só de bem,
vou molhar
uma plantinha.

domingo, 24 de maio de 2020

Selos

O poema após limpar o próprio corpo 
e a própria alma passa a ser o próximo.

As escamas não cheiram mal
e todo o acúmulo de sujeiras
é queimado pela clareza
da própria memória.

O poema passa 
a ser um ente liberto
que abençoa ou que revolta
em sua forma transformada.

Mas o poço permanece lá,
a água permanece lá.


sábado, 23 de maio de 2020

Fogueira

Quando criança
já admirava os arrebóis 
contemplando as asas da joaninha.

Só não imaginava
que as cores dos céus

também
voassem.

Peixinho Dourado

O princípio de toda
elevada ação é interior
e propaga-se a energia
por camadas superiores.

Qual o ser 
que confuso
segue evoluído?

Confusão
como mentira
são folhas secas
que nascem para ser 
consumidas no vento.

O desejo comum
é caminhar cego
entre mortos:

Envaidecer-se,
enfurecer-se,
morrer
bruto.

O Primeiro Sopro

A verdade de cada qual
é um véu sagrado
de cada um.

Os cadáveres entendem
a nostalgia do perfume
das flores dos túmulos

e procuram fugir
das lembranças.

Cada um com seu véu sagrado
de ilusões, fúria e esperança.

Os meus peixes
não servem para
matar a sua fome.

Pesque seus peixes
com as suas mãos.

Comovida, minha xícara
chora lágrimas de café
por seu rosto branco.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Filho

Quem de fato
trilhou o caminho
usando minhas pernas?

Quem pisou nuvens,
terra e lama calçando
os meus miseráveis pés?

Quem sangrou meus inimigos
com espadas e adagas de luz?

Quem me trouxe
esse entendimento
de que nunca morrerá
minha nobre consciência?

Quem beijará meu corpo
quando algo em mim tiver
partido do meio dos mortos?

Algo de mim
que não sou
e que morre.

Harpa

Acredito que hoje será a manhã todinha de chuva.
Essa chuvinha fina que as lagartas-de-fogo adoram.

As botas do trabalho
suspiram encolhidas
com as meias dentro.

Já fiz e bebi
o meu café
de lei.

Você sabe
que o meu café
é o mais saboroso
de todas as galáxias.

Conquistei muitas mulheres
conversando sobre a vida mística
das lagartinhas-de-fogo bebendo meu café.

Algumas entravam em epifania
relembrando a infância de garotinha, 

enquanto outras de vestidinho e saínha a cruzar 
e descruzar as pernas levaram-me à demência.

Hoje, imagino,
será a manhã todinha
com esses ares espirituais
de conforto e chuvinha fina.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Lilás

O poder da cicatriz
sempre será a memória
do dia em que o ferimento
despertou de qualquer mágoa.

O ser que dantes
morria de pavor
da própria luz

hoje em dia
conhece muito
das mil sombras.

Não há força na dor
que tece vinganças.

Mas a memória da cicatriz
que eleva a alma não passa.

Os Amores Do Mundo

Brincava contigo
quando escrevi
que debaixo
da minha
janela

nascera
um girassol.

Mas te juro
(eu cegue)

que é verdade
o semblante

de uma doce
orquídea.

Sabe, nem me importo muito
quem segura a minha mão
na hora em que escrevo.

Mas ao toalete
sei que é a tua mão
que deliciosa me depila.

As Calçadas Amam O Sol Do Fim De Tarde

O que posso
é escrever
poemas.

E ficamos próximos
trocando olhares.

O teu olho âmbar
o meu carvão.

Não falemos
sobre as nossas almas,
pois elas merecem o silêncio.

Docilidade

Enfim, aconteceu:
Conheci de perto
a sujeira de Lola.

Lola tinha ao seu bel-prazer
a sala, o tapete, a cozinha,
a suíte e os dois quartos,
a área de serviço,
a varanda.

Mas dama elegante que é
foi ao quarto dos fundos
e lá fez a sua necessidade.

Os cães têm caráter,
emoção e perspicácia.

Lola procurou por toda a casa
um lugar em que fosse decente
expor toda a sua ração digerida.

A garota Lola só se esqueceu do livro
de páginas entreabertas sobre o cesto.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Balsâmico

Assim que pensamos
em escrever um poema
pra alguém muito especial

tal poema já nasce
sob o selo da corrupção.

Ninguém é tão especial
que mereça um poema
fruto de dupla vaidade.

A vaidade de quem escreve
e a vaidade de quem inspira.

A propósito, 
meu docinho,

se eu quiser tirar meu bigode
não preciso pedir permissão
aos passarinhos do pé de oiti.

Mas a você (acredite)
escreveria uma carta.

Romãs

Querida, às vezes um poema erótico
de tantas metáforas acaba frio e obscuro.

Então, baby, serei claro
o mais explícito possível:
Tu me permites com os dedos
brincar na tua caixinha de música?

Juro que as pontas dos meus dedos
são uma gracinha de delicadeza.

Quanto à minha língua,
advirto, ela é louca,
imprevisível.

Atrai ostras
só no biquinho.

Besouro da Sorte

O fogo não terá fim
e pelo que vejo

esse amor
é eterno.

Você será seduzido
todos os dias da sua vida
a entrar na floresta escura

e trazer gravetos para alimentar
o fogo que não tem vestígios de fim.

As paixões do corpo
continuam um doce.

A questão é que você agora cria imagens extraordinárias 
com areia colorida dentro da sua garrafa de náufrago.

Aquela muriçoca 
de violino quebrado
agradece por sua paciência.



domingo, 17 de maio de 2020

Antecâmara

As sombras existem
pela vida útil da luz.

Apague a lâmpada
e nem as sombras
terão vez.

Ninguém sobrevive
na total e plena treva.

O desapego das ideias
é um belo sinal de morte.

Que os poemas escritos
não sejam pontes entre
meu corpo e o devaneio.

Mas o que sabe
a mente do lugar
que não se conhece?

Poemas são afagos
no olhar trêmulo
que já se foi.

Episódios

Depois que as lágrimas
salgam o rosto e vão embora 
segue o caminho também a lucidez.

Quem detestava o sol
já revê seus princípios.

Até Nosferatu
vai à padaria
com ombros
de fora.

A passos lentos e sonhadores
conta o tempo desperdiçado
dormindo dentro do caixão.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Oxímetro

Sentir-se humano
não é caso de tristeza.

As sensações do corpo 
são nuvens que se transformam.

Não pule de um penhasco
por sofrer de vertigem.

Nem se esmague
sob as paredes
por temer
as aves.

Beije suas mãos,
entrelace seus dedos.

Sentir-se humano
não é caso de morte.

Em alto-mar
cante um blues
e aproxime-se dos corais.

Há peixes ocultos
dentro dos olhos.

Istmo

O apito do trem
é igual ao do navio
se o coração desperta
de saudade ou remorso.

Quando criança
os fantasmas
faziam festa.

Mas deixaram a casa
no tempo da clareza.

E não pensam em voltar
porque sabem que a casa
não tem um senhor absoluto.

A casa é do vento
da chuva e do sol.

O telhado
e a terra

florescem
a cada dia.

Disparos

A segurança vem da fé
e a fé não é cega nem
enxerga com olhos

que a terra
há de beijar.

O que posso adiantar
é que as minhas vísceras
não têm essência enquanto
forem vísceras apenas do corpo.

O valor de um tesouro
não é a verdade que
outros julgam.

Só saberá quem lhe fala
quando você não tiver
os seus ouvidos

colados 
às orelhas.

Ócio

Além dos ossos
sou a consciência
dos meus ossos, baby.

A morte da consciência
não existe como é uma fábula
acreditar na eternidade desta vida.

E enquanto a consciência me esclarecer
de que sou os meus ossos e a consciência se apoderar
dos ossos secos e da carne exposta ao banquete dos vermes

as ilusões deste mundo
forjam apenas um propósito:
A total percepção da consciência.

Por isso que é inacreditável
o envaidecimento das criaturas.

Também é tão triste, baby,
o medo dos seus corações.

A consciência dos meus ossos
alegra-me as manhãs e a única vez
em que me senti tão alegre foi no dia

do meu primeiro relógio 
que parou debaixo da chuva.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Chuva

Escrevo e apago poemas
com a mesma facilidade
que afogava formigas 
na xícara de café.

Agora nem o açúcar mascavo
no fundo da xícara branca
seduz as meninas.

Crescemos,
o poeta e as formigas.
Uns morcegos, outros elefantes.

Repentino

Quando a minha língua começa o frenesi
da estúpida oratória e não há fim entre
os pensamentos e as palavras,

recorro ao meu caderno
e escrevo versos de morte:

"Os teus brincos de argola
que ofereci à outra mulher."

Crime

A grande sacada
é entender o mau humor
da poesia e aceitar da tal Senhora

a migalha para que nos vejamos
vivos, especiais, filhos de uma força.

Se a poesia adora contemplar seus ossos
e não lhe oferece um verso de socorro,

então vingue-se
como um selvagem

e guarde dentro da gaveta do inimigo
as mãos frias sem uma gota de sangue.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Haxixe

Da minha janela
tantas meninas
passeando

com seus cachorrinhos
que já perdi a noção:

Quem sorriu toda diabinha?
A do vestido preto é a mesma de azul?
E qual o nome da que atravessou a rua?


segunda-feira, 11 de maio de 2020

Oráculo De Delfos

O que você acha
do meu bigode,
garota Lola?

Sei que me ouve,
embora se finja
de cadela órfã.

E se esconda debaixo da mesa
morta de medo até do próprio vento
que derruba quadros e lhe beija as patas.

Diga-me, garota Lola,
o meu bigode é melancólico
ou me deixa com cara de dono
de armazém de rum contrabandeado?

sábado, 9 de maio de 2020

Confraria

Pode ser que a poesia canse,
mas o poema se não for escrito
pesará um século de assombrações.

Ofício é quebrar os ossos
e amaciar a carne nos dentes.

Escreva o poema, filho,
e livre-se da sua cruz.

Ou melhor,
escreva os poemas
na madeira da sua cruz.

Como antigamente o poeta francês 
escrevia versos de amor nos caixotes de fuzis.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Gralha

A verdade é um segredo
entre você e quem
não é você.

Falar sobre morte
para quem tirou
o véu do sono
profundo

é como espremer cravos
das faces de uma rosa.

Macieiras

O máximo que posso
fazer por ti é ouvir
tua cabecinha.

Os teus sonhos
que me forçam
o riso em silêncio.

Os teus ares
de vingança.

A tua fragilidade
diante do poder.

Do poder ridículo
das coisas ridículas
que passam e te roem.

Mas sou um simpático coveiro
e na hora de plantar teus ossos
cavarei uma linda e fértil horta.

Juro que nascerá
das tuas cinzas
agrião.

Ora, meu docinho,
tu sempre amaste
a tua pele irradiante
de jovem camponesa.

E assim será (prometo)
por toda a tua eternidade.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Aurora Boreal

A minha mente é muito poderosa,
mas a última palavra é sempre da poesia.

Portanto, o que cultivo
só é digno aos corajosos:

Aqueles bêbados
que um dia acordam
cansados da embriaguez.

E passam a conviver de perto
com todos os seus atrozes pedintes
que caminham conforme a natureza

dos trôpegos,
dos cegos
e fujões.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Designer De Interiores

Você comprou
tolhas de banho
floridas e felpudas.

Vi da minha
área de serviço.

O que você guarda
de especial na gaveta
da sua cômoda branca?

Sei, ui,
imagino.

Adoro os seus segredos
de quem vive longe de casa.

terça-feira, 5 de maio de 2020

As Flores Do Princípio

Tenho uma relação muito querida com o mês de maio.
Conto nos dedos das mãos e dos pés as noivas 
que fugiram dos meus braços.

Ou me deixaram plantado 
no altar chorando abraçado
ao padre ou logo me deram o fora
durante o primeiro mês de núpcias.

Apaixonaram-se
pelo mecânico,
padeiro

ou o garotão
entregador
de água.

A viagem do espírito
é igual ao vento
de maio

que toca os dois vasos de orquídeas
sobre o parapeito da minha janela.

Não há risco de queda, baby,
que apavore as formiguinhas.

domingo, 3 de maio de 2020

O Tempo

Se você não tiver um caminho
que o aproxime dentro de si
como sairá do que
vive fora?

E o que se vive
não é verdadeiro
a partir da lucidez?

Abra as janelas
da casa e peça

gentilmente ao caramujo
que esqueça toda a lamúria.



sexta-feira, 1 de maio de 2020

Trabalhador

Já malhei,
arrumo a mochila

e vou passar uns dias
em companhia do filho.

Ora, arejar as ideias
com um verdinho.

Sou forte,
sadio e feliz.

Eis o mantra
da minha
avó.

Uma xamã de altíssimo grau
que adorava mascar fumo
e juntar moedas antigas.