sábado, 31 de outubro de 2020

Sábado

As oitis da minha calçada

são centenárias e amigas

dos passarinhos e lagartas.


Depois que me conheceram

sempre na varanda e à janela 

passaram a me desejar sorte


e acompanham nas manhãs e tardinhas

as minhas viagens e os meus poemas.


Os passarinhos

e as lagartinhas


também ficaram curiosos

e vieram  à minha companhia

saber um pouco mais do sujeitinho

que escreve versos e adora filosofia.


Todos os dias

seguro a xícara

branca de café

e faço um brinde

à saúde das oitis,

dos passarinhos

e das lagartinhas.


A propósito,

as lagartinhas

não reclamam


quando um bem-te-vi

desajeitado atravessa-lhe

o abdome com seu bico frio.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Correntes

Faz parte

da existência

a suposta realidade

das suas ações e pensamentos. 


Por mais íntimo

do seu sangue

você verá

um dia


que a coagulação

da sua vontade

são desejos

de outro.


As suas ações,

os seus pensamentos,

o caminho trilhado por suas pernas -

acredite, são ilusões de outro espírito

que o seduz, ilude e lhe oferece a vida.


A mesma vida

que confunde,

que desperta,

que o ergue.


As seduções 

de quem o possui

também geram amor


na intimidade 

do seu sangue.


E você jura

para si próprio

que a vida é única.


Que a vida

é só sua.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Ana Cañas Canta Belchior • LIVE

Odisseias

Já ganhei tantos sabonetes

no meu aniversário


que farei uma escultura

da minha primeira

namorada


fugindo

com outro.


Das minhas crueldades amorosas

ah, paguei juros exorbitantes.


Estamos quites,

o poeta, as musas

e os pais das virgens.


Dos mil sabonetes

farei então uma escultura

do meu coração doce e tranquilo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Candeeiro

Se da minha fonte

borbulha azeite,


ah, que belo,

assim não faltará

luz na minha mente.


Não se alegre

por mim, baby.


Mas pelas sombras

a quem darei vida


sob o esplendor

de todas as suas formas.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Cadeia alimentar

O único vínculo

que o escorpião

tem com baratas

é na hora da ceia:


chega a iluminar o banquete

com a luz de uma vela

na sua cauda. 


As baratas não resistem

à ilusória sedução


e se oferecem 

ao seu senhor

como alimento.

sábado, 24 de outubro de 2020

O Tormento de Lola

A cadelinha Lola

parece de alma atormentada

por uma lembrança apocalíptica

das florestas sombrias de cães órfãos.


Pensei até em acender a luz

pra ver se encontrava

a cadelinha


debaixo 

da mesa


ou de uma

almofada

indiana.


Por vezes, 

Lola some (encanta-se)

fugindo da própria sombra.


A sua alma deve ter convivido

com delirantes profetas e místicos

que lhe davam ossos de fantasmas

e tentavam enlouquecê-la de pavor.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Magzim

Quem envelhece

espera a morte.


[espera 

a morte

chegar]


Por isso que você não ouvirá

aquilo que o coração não pensa.


A lua tem poder

de brincar conosco.


Com a nossa alma.



 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A janela aberta e as plantinhas da varanda

Se você puder guardar um poema

não o faça por força do hábito

como muitas vezes estrago

as linhas do coração

escrevendo

o vazio.


Ao vazio

cabe o nada.


A palavra oculta,

desde manhã oculta.


Não estrague o seu dia

(como faço muitas vezes)

escrevendo um poema do nada.


Exuberante poema

é o nada em toda a sua forma.


Não acabe com o seu dia

colhendo uma maçã

que ainda não foi

bichada.


Deixe na macieira

a maçã e os seus desejos.


Ao poema do nada

cabe o vazio do inseto

que ainda não tocou a maçã.

Clima

Por meus caminhos

alimentei pássaros

cuidei de serpentes

sem assombros 

e pavor


nas manhãs

de pura epifania


por meus caminhos

adocei água

de beija-

flores


mudei a ração

dos cães de rua


sem julgamentos

e fúria


por meus caminhos

fui mágico, louco,

tocador de viola,

atirador de facas

e pétalas


sobre o dorso

de elefantes


por meus caminhos

ainda acordo

forte, sadio

e feliz,


como diria

a xamã vovó.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Gravata

O meu laço

nunca será 

perfeito,


pois há

entre os extremos

um nó incognoscível -


e por isso

[justamente

pelo meio

do caminho

haver um nó

incognoscível]


não busco perfeição,

mas do meu laço

entendimento.

sábado, 17 de outubro de 2020

Arrebóis

Não há o que decifrar

no canto dos pássaros

e nos seus trejeitos

campestres,


ainda que pássaros

de calçadas de bares


as nuvens têm cheiro

de crianças soltas.


Que os pássaros cantem

e conversem entre si

o que minha mente

suporta e delira.


Não há conflito,

dores de cabeça,

maus presságios.


Sei que não sou o que a Verdade

pensa dos meus botões e me acolhe


em sua suprema

simplicidade


(ou indiferença?)


Os pássaros se bebessem vinho

acordariam dos seus sonhos

e o mundo em volta

seria trágico.


A poesia equilibra

os meus voos


e me faz mendigo

dos meus passos.

Campanário

Por fim

chegamos

à clareza


e todos os passos tortos

tocaram-me o coração

pela sutileza 


do cajado 

de nuvem. 


Os passos tortos e loucos

eram apenas as vozes

do pequeno homem

que suspirava

aos céus.


O reino que se abre

não julga as vestes

do miserável sábio.


O caminho é de lucidez

e chama a loucura ao mundo

a sensatez da doçura e coragem.


O rei, o miserável, 

o homem e o rato 

nunca da estrada

fugiram de medo.


Guarda teu segredo

como moeda de troca

no último sopro de dúvida.


Eia, eia, eia!


Os teus passos

agora são de nuvens

que queimam a sombra

da triste memória e fraca.


Acorda contigo

os teus anciãos

e moços da aldeia,


desfruta o banquete

com a fome de leão,

fantasma e crianças.


Eia, eia, eia!


O dia é a noite

dos que não dormem

e pelo caminho cantam

pássaros e sorriem cobras.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Peter Brook's Mahabharata - Diálogo entre Khrisna e Arjuna

Poesia bela


I
Claro que já disseram
que você é uma princesa.
Atenciosa, sensível, digo-
lhe, então, que agora você 
é tudo isso e mais linda e forte
do que um anjo que pisca o olho.

II
Amar os próprios sonhos e passos.
Ou encantar-se na névoa do caminho.

III
Não, 
ninguém
saberá de ti 
mais que tu.

pra Bianquinha  

Sublevações

O conhecimento é uma virgindade outonal

a nos alimentar pela pesquisa da mente.


A poesia não morreu

de espanto pelos olhos

de quem vê e entende,

mas pelo cuidado doce.


Vontade de fazer

uma tatuagem 

no meu peito

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Dialética

 Já fui cético, místico, 

hedonista, cínico e sofista,


mas hoje em dia

voltei à infância 


e passarinhos que chegam à minha janela

não perdem a viagem e me chamam

de sonso.


Ah, os meus queridos passarinhos

são os únicos que conhecem


a minha alma infantil

e as ideias transcendentais.


Nunca guardaram mágoas

do meu tempo de infernal loucura

da minha falta de caráter e crueldade.


Vivia pensando no deserto

como torcer-lhes o pescocinho.

domingo, 11 de outubro de 2020

Santuário

A verdade que tenho 

um caso profundo

de amor,


até ontem não sabia

até hoje não sei.


Mas arde

um caso

de amor


quando dou um passo,

quando três passos 

adianto.


Tenho sim um caso de amor

frenético e sutil e amistoso

com a vida.


E do que se trata a vida,

senão de uma eterna amante?


Arde meu peito

e sangue.


Meus olhos

derramam-se

em suaves lágrimas,

e isso não é bom, meu filho?


Viver encantado

pela lucidez

até o fim.


Saber que não existe fim

para quem é apaixonado

pelo caminho que brilha.



sábado, 10 de outubro de 2020

O Instante

O passado você já deixou para trás, agora só falta livrar-se da fantasia

dos seus sonhos. As ideias estão vivas, mas é você quem as põe de pé.


Dentro do porão do navio fantasma há ratos

e você nunca percebeu o quanto eles adoram 

o pirata bêbado praguejando contra céus e terra.


Bebeu café?

Molhou as plantas?

Vai ler os seus livros?


Muito bem, joia,

mas não se esqueça

de adorar o seu deus

escrevendo versinhos.


Não existe outro caminho

para a sua existência, 

meu velho.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Sanguíneo

A minha salvação
foi ter comido
do fruto

da Árvore
da Filosofia,

caso contrário
o monstro

que me
habita

já teria
devorado
meu coração

e feito dos miolos
do meu cérebro
uma sopinha
de ervilha.

Mas comi
do fruto

da Árvore
da Filosofia

e posso até sentir
o ciúme entre os meus dentes
os meus cabelos e a minha pele de santo

a queimar e arder a sobra
que alimenta o monstro.

A Outra Cor do Deserto

Se tu sonhas
com o tesouro
fora de ti, malandro,

então podes medir tua cova
conforme a tolice do mundo.

O rei ainda que sereno e sábio 
é um rei angustiado por sonhos.

Não acredito
em fábulas.

Livros que enlouquecem
e que nos arrancam a pele.

O rei ainda que sábio
perdeu a vontade natural
quando viu de perto o céu.

E o céu, malandro,
não é o que tu pensas.

Vais precisar
nascer mil
vezes

dentro
de ti

e perdoar e entender e amar 
o vazio e o transbordamento.

Salomão pensou
em outra vida
e desejou
a luz?

Tu que o dizes,
ó malandro.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Lua Cheia de Outono

Corvo que aproveita a vida

adora cantar um blues

bebericando um copo

de uísque


na ponta

do bico


entre as névoas

do pântano


e a clareza

da intuição.


Passa séculos lendo romances psicológicos 

escrevendo os seus poemas obscuros

acariciando as próprias penas.


Vê em tudo estupidez

e nos olhos dos amigos

uma inocência patética

que pode matá-lo de tédio.


Entende bem a loucura

de quem ama e foge

do ringue.


Oferece às fêmeas grãos de girassóis

mais pele e carne e ossos de jacaré.


Qualquer cretinice que o irrite

voa para longe e se esquece

do pântano, das névoas,

da lua cheia de outono.