quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Jarro de flores

Já não tenho

o mesmo gás


para beber vinho

e escrever cartas.


Três taças 

levam-me

ao disparate


e cartas de amor

se não forem doces

têm de ser as mais loucas.


Doçura não existe

na minha língua

trôpega


e a loucura de Quixote

foge da minha embriaguez.


Já não tenho forças

para beber vinho


nem altura

para cartas

de amor.


Completude

Amanhã, vinte e quatro de dezembro,

cortarei as unhas dos meus pés 

e farei um antigo ritual: 


Adubarei as plantinhas da varanda

com os pedaços das minhas unhas.


Não farei nenhum pedido

nem rogarei por nenhuma graça. 


As dádivas que ocorrerem

serão expansões do meu vazio.

Os ardis

A voz do oráculo

é a tua mente,

poeta.


A única manifestação divina em  tuas vísceras 

é a lucidez que te faz observar teus pensamentos:


As vestes nunca serão a tua pele,

a tua pele jamais será o teu coração.


As vozes que te levam ao bom sentimento

também podem te seduzir ao egoísmo final.


A lucidez de fogo não promete outra energia

senão a poética singularidade de tua ausência.


Maçãs em dias de maçãs,

espinhos em dias de espinhos.


E o que te adoçou os lábios

já segue o perfume da lembrança.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

bilhete

Nem as suas melhores notícias quero ouvir.

Inadiável o nosso encontro, garota intempestiva.

Você é tão inexplicável em meio ao obscuro lirismo. 

É bom aprendermos com as situações mágicas da vida.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Candura

Precisamos 

um do outro

e todos de si.



Tua boca

é doutra 

textura.


A minha te beijou

no último sonho.


O mais recente,

o de ontem.

Bronze milharal

Cair na graça de Deus                                                                                                                                    é ser o bem querer de Deus.


Dizer a palavra Deus
é como se fosse 
um impasse 
moral.

Não crendo é mais fácil 
(e menos doloroso)
prosseguir.

Mas dizer em alto e profundo silêncio a palavra Deus
é gratificante quando a presença do todo revela as partes.

Seguir adiante
ser corajoso
sem pesar
mórbido.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Folheto dominical

O criador daquele pássaro preto

que faz círculos no céu

sobre a carniça


é o mesmo criador

da sua notável 

inteligência.


Se vai chover

ou se o sol castigará 

as gramíneas dos bisões,

se borboletas fogem de certas flores

e se as palmas dos coqueiros acenam para meus olhos -


não representam

casos isolados 

no universo.


A sua consciência é tão vulnerável

quanto o voo daquele pássaro preto

sobre a carne podre que o alimentará.

Cápsula do tempo

Não acredito que você ainda guarde mágoas

no seu baú, na sua mala, no seu alforge,

nos cântaros, nas ânforas, na gaveta

do oratório da sua avó.


Juro que não acredito 

que você não tenha visto

a outra margem, o outro paralelo,

a outra dimensão e não tenha transformado

a fúria obsessiva dos seus inimigos em potência espiritual.


Não acredito que você não tenha feito as pazes com seu filho,

a sua filha, os seus netos, os seus irmãos, o louco da encruzilhada,

aquele fantasma que ao assustá-lo forjou em seus músculos coragem.


Não acredito que você ainda creia em salvadores da pátria,

em pescadores de almas e não tenha oferecido de bom grado

os seus sonhos de grandeza e cinismo aos porcos e às serpentes.


Juro que não entendo

que você ainda cultive

o poema como válvula

de escape e bomba

de ópio e vaidade.


Não vê que somos tão cinzas e tripas

quanto as palavras são poeira ao vento?


Passaremos, e os passarinhos

nada sabem da nossa existência.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Astrologia

Agora que você conhece minha voz,

posso acordar caolho, coxo, surdo,

dentes quebradiços de burro velho. 


Espero meu skank

deitado na rede

da minha ex.

Feromônios

O gato passando

entre as grades

da janela


é tão furtivo e silencioso

quanto uma serpente.


A serpente pode 

morder o calcanhar.


O gato, entretanto, 

só quer chegar ao telhado

da grande paixão de ontem à noite.

Adorações

Morda sua língua,

quebre seus ossos.


Não existe caminho lá fora

que o conduza a você por dentro.


Quando estou apaixonado pela vida

como batatinhas e fumo o meu skank.



Helena

Estava relendo Kafka

mas na página trinta

fechei no dedo.


A sua imagem

sentada sobre

uma pilha

de livros


bagunçou

minhas

ideias.


Você dos pampas,

vasta, úmida, 

loquaz. 


No quintal vizinho

tem um coqueiro

de praia.


O céu anda tão azul

que doem meus olhos.


Claro que tento roubar das pessoas

todas as emoções ocultas e impossíveis.


Sou um furtador

de almas, Helena.

Onda de amor

Quando você virar a cabeça,

enlouquecer de vez, 


ultrapassar todas as margens

de um só pulo e suspiro,


estarei disposto 

a recebê-la


e plantaremos no nosso cercado

uma rocinha de amendoim,

abóbora e girassol.


Vou lhe ensinar uma receita dos templários

e faremos um elixir surpreendente.


Ficaremos ricos, loucos

e logo nos separaremos.


Você morrerá de velhice,

o poeta partirá de encantos.


E da nossa rocinha 

de amendoim, 


abóbora 

e girassol 


os corvos 

farão a festa.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Festins de olhos melancólicos

Sempre tive muito medo

dos poemas que seduzem.


A verdade é que me esqueci

de todos os grandes sedutores.


Comecei cortando meu pulso,

depois cortei  meu pescoço.


Por fim, já não seduzo as palavras 

e o que tenho de tesouro guardado

é a capacidade de ouvir as vozes


sem expectativas de que um corpo

pule da montanha ou uma alma mergulhe

em águas profundas à procura da minha companhia.


A solidão é suave

e ela não existe 

como não existe 

a minha morte.

Viramundo

Não sei outros poetas,

mas as únicas duas 

semelhanças


que tenho com os passarinhos

são meu olhar perdido ao horizonte 

em dias de chuva e meu bico bem doce

quando tento conquistar da minha janela

passarinhas felizes da vida à toa e sensuais.


De resto, baby,

sou totalmente distinto

dos passarinhos: asas, ninho, alegria.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Pedaços de nossas unhas

O sol ainda segue

os meus passos.


O que passa:

As sombras

das nuvens.


Contente-se com a caça,

o peixe e o fogo 

que fiz


em volta

da sua alma.


Mentiria se dissesse

que a poesia é ilusão. 

Entardecer

Quando aprendi a tocar gaita

o louco da encruzilhada


iludiu os meus amores

e cortou a minha língua.


A gaita hoje em dia quem cuida 

são os passarinhos das oitis 

da minha calçada.


Mas o blues ainda é herança

do poeta da encruzilhada.

Varanda

Não existe morte

nem para a carne


nem para 

o espírito. 


Não existe morte para a carne

pela natureza da transitoriedade

habitar a carne desde o princípio.


E para o espírito

a morte não existe


por este, suspenso,

acima da eternidade,


perdurar e conviver

com tudo o que é efêmero.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Telepatia de cães

As suas unhas

estão grandes,

Lola. 


Ao passear da sala ao quarto 

as suas unhas estalam

no piso de madeira.


Quem pintou

as suas unhas

de preto, Lola?


Seria dark

se não fossem

as suas unhas, Lola.


As suas unhas

são delicadas 

e tímidas.


Uma princesa

que vomita

quando 


come 

carne.



Alfazema

Nunca vi um passarinho 

arrancando as penas

das asas,


mas já vi um passarinho

ensaiando um blues

com o bico


entre os seios

da amada


brincando de cortesão

ao entardecer das oitis.

Cintilante

As lágrimas douram os meus olhos.

Desde a minha infância as lágrimas

mostram-se generosas aos meus olhos. 


Oferecem aos meus olhos

camadas de ouro 


e chuva

de sal.


A beleza maior das minhas lágrimas

é o quanto são fiéis à ausência

de palavras.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Conjunção astral

A ponta da minha cauda de escorpião

afaga docemente as dobras 

das minhas asas


encorajando-me

ao voo.


Quando você assistir aos meus excessos,

acredite, baby, há um tenro equilíbrio

entre as minhas costelas

e o meu olhar.

Alvorada

Conforme a sua intransigência,

à sua mesa sentarão os seus pares.


Ninguém estranho,

os mesmos sorrisos.


O cinismo e falácia

que você conhece

e adora.


Ninguém que lhe cause fúria

ou contentamento fraternal

há de sentar à sua mesa.


Quanto tédio,

meu velho.


À minha mesa,

ao contrário,


durante todo o banquete

sentarão ao meu lado

os mais bizarros

e loucos.


Aquele que menosprezar o próximo,

tentar roubar um pedaço de pão,

uma caneca de vinho


será posto 

para fora 

dos céus.


Os meus anjos

seguem minha ordem

e tudo o que ordeno é delicado.


Poético,

visceral.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Gasolina

O cheiro de gasolina

ainda desperta o amante.


Não há costume

esquecido pela carne:


Gasolina, patchouli,

pipoca, sorvete.


O que desatina a criança

ainda tem sabor de alegria.

Sobrevivente

O pensamento tal

como é constrói 

o caminho.


E não se sabe

até que ponto

a vida é real.


O que o outro pensa

sob luta incansável

é a verdade

do outro. 


O que você tem dentro do bolso são efígies do passado 

que você tramou entre fórmulas e reflexões das suas trilhas.


As margens opostas

não modificam 

a essência.


Seus pés levam-no

ao abismo de flores.

O ardil do pagão

Tudo é importante

nesta vida agora.


Um livro,

uma flor,

um jarro.


Adorar o instante

com a imensa força

que se adora a um deus.


Esquecer os julgamentos

que nos acompanham

dia após dia.


O mérito fabuloso

da poesia é fazer

o livro, a flor,

o jarro


uma só coisa

adorada.


 

Magia

Se o grande amor da sua vida

ajuda-a na hora de espremer 

os limões, então é sorte, baby,


O grande amor da vida

faz torta de mel e pêssegos.


Quem espreme os limões

sou eu com ajuda da clareza.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Cegueira

 O pão que me alimenta

é o mesmo pão que sufoca

meu peito e dilata os pulmões.


O meu reino na terra,

as migalhas deste pão.


Os corvos nunca foram tristes,

amam as sementes de girassol.


Enquanto outros pássaros

incertos da própria natureza

buscam algo perdoável no céu.


Não me falta pão na terra,

não me faltam migalhas deste pão,

nunca me faltará a sinceridade dos corvos.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O eu lírico é um embuste

Pior do que a tua gaveta vazia

é a tua gaveta com o último

frasco de teu perfume


sorrindo 

de maldade.


Se o poeta pular da janela

os passarinhos vão cair

na gargalhada


e fazer pilhéria

da minha fortuna.


Se o poeta cortar a mangueirinha do gás

e enfiar um saco plástico na cabeça

a respirar sôfrego 


propano 

e butano


os passarinhos

da janela 


tocarão seus blues

bebendo uísques


e não dirão

um ai nem ui.


Vai chover

e os passarinhos 

têm os seus problemas,

suas dúvidas, seus cansaços.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Avestruz

O poema não tem um fim,

senão a minha vaidade.


Mesmo nos dias tão sombrios

em que o poema era escrito

sonhava com teus olhos

sobre as palavras.


Escrevo poemas

para o mais vaidoso

dos fantasmas que beija


as palmas das minhas mãos

e gargalha às minhas costas.


Se sou esse fantasma,

baby, que mal existe

em meus delírios?


A névoa que te encobre

mostra a claridade

da minha tolice.

Fronteiras

A não-compreensão 

não significa dúvida. 


Nem é alimento

para o medo.


Além da ignorância

a seiva da verdade

parece bruma.


Aquele ponto desconhecido

que nenhum livro revela

e que nenhum vestígio

é dado por outro


você guarda e acolhe

no seu sangue.


Você também pouco sabe

do seu coração, vivo 

ou morto.


Ainda que fuja a sua voz,

a última palavra será a sua.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A nossa paróquia

A vida que imagina

é bem distante


da razão

amorosa.


E os frutos do banquete

enlouquecem os convidados.


A esperança o poeta guarda

dentro de um envelope

da década de 80:


Aquele bichinho verde

ressecado pelo éter 

da inocência


cujo broche

você pregou

no seu peito.

Cavalo-marinho

Se não houver escamas

do antigo réptil e asas

de passarinho 

que toca

gaita


não lhe será permitido

ver a porta e girar o trinco.


Mas o que sei da poesia

se me doem as costelas? 


Antes de escrever o poema

parece-me não existir

outra maneira

a escrevê-lo


se não for pelo mergulho,

dissolução e forjamento.


As costelas que doem

é o parto que se segue.

sábado, 28 de novembro de 2020

Lola

O vento forte de sábado 

que me faz fechar os olhos


e as folhas de oiti 

caírem no meu peito


é uma forma maternal do universo me dizer

o quanto é ilusória e verdadeira a minha alma.


Lola suspira

encolhida

entre


as cadeiras

e o sofá.


Lola sabe muitos segredos

sobre os ventos de sábado,

sobre as árvores da calçada,

sobre a outra margem do universo.


E suspira

com os seus olhos

de puro mel de ternura.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Papiro

"Ainda que os seus olhos

sejam arrancados do rosto

e lançados ao abismo 

da compreensão 


é  tão natural a luta 

contra o desconhecido,


pois não há interesse 

em ver de perto

o fogo 


de uma nova 

chama.


E em tudo que você põe os olhos

só revela-se a ironia dos deuses."

Sexta

Diante do que não conheço

qualquer intervenção

mental


é um equívoco,

trapaça.


Estou sempre despido

em volta dos pensamentos

exaltando toda a minha fraqueza.


A força vem do recolhimento

da casa erguida nos ombros

e a cada passo queimo

a última palavra.


Este que fala,

este que come,

bebe e divaga


só é digno

desta vida

de sonhos.


A verdade que supera

os meus ossos e a carne

guarda-se para outro tempo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Suave

Não julgues a escuridão,

pois a luz é a outra face.


Lembra-te de quando eras réptil

e rastejavas o ventre pela terra.


Se hoje és pássaro,

se usas vestes de pássaro,

não te esqueças do cheiro do poço.


Se hoje és um ser alado

cujas asas brilham

em círculos,


foste um dia coxo

e mancavas pelo deserto.


Alegra-te pelo entendimento

de que és apenas uma ilusão

do réptil que te ensinou

a conhecer o céu.

domingo, 22 de novembro de 2020

Castanhos

No meio do deserto

tenho vontade

de peixes,


mas não dou um passo

além do que pressente

o coração.


Não sou idólatra

tratando-se de deuses,


mas transfiguro-me, 

ajoelhado, diante 

da mulher.

sábado, 21 de novembro de 2020

Fábula

Às vezes,

por pura vadiagem,

jogo pela janela da varanda


sementes de maçã 

e pedacinhos 

das minhas

unhas.


Antes que as formigas da calçada reclamem,

os passarinhos das oitis correm ao meu auxílio

e usando as asas em forma de conchas colhem

a minha sujeira balançando o bico em reprovação.


Voam aos seus ninhos

e reciclam meus cílios,

cabelos, pele e poemas. 

Os monges copistas

Se você olhar bem

as palmas das minhas mãos

verá calos da lavoura em que trabalhei


para matar a sua fome e das flores

que cultivei na entrada do seu jardim

para que você nunca desconfiasse das abelhas.


Se olhar com mais atenção

também verá navios fantasmas,

balões do século XIX e templários

cavalgando em meio a brumas e luzes.


As palmas das minhas mãos

são relíquias da eternidade

do seu silêncio.

Café

Tenho ossos fortes,

a carne fraca e um espírito 

curioso entre magia e racionalidade.


Ora, ora,

mas o que escrevo?


Não é a magia outro nível

(gracioso) da razão? 


A minha alquimia é praticada 

na minha caverna ou nas ruas

todos os meus santos dias.


Não há um dia

em que o sol


não entre por meus olhos

ou o orvalho da madrugada

não molhe os cabelos brancos.


Os meus cabelos brancos

por vontade das palavras.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Réquiem para os flautistas

Ultimamente, baby,

são os bem-te-vis 

os meus guias.


Durmo de janela aberta

e acordo com essas criaturinhas

assoprando flautas da minha infância.


Caminho léguas

e eles seguem

meus passos


trocando de partituras,

espantando maus-olhados.


Os monstros do pântano

e assombrações

do deserto


fogem dos seus bicos

e dos seus blues.


Volta e meia,

pulam diante

dos meus pés

e ordenam-me:


"Poeta, vira à esquerda,

pois é sal e doce


a dama

da outra rua."

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Encanto

O teu rosto é de uma camponesa

que acorda cedinho (fabuloso decote à mostra)

para colher maçãs - e os passarinhos que pousam 

nos teus ombros alimentam pensamentos apaixonantes.


Assim, baby, 

são todos os passarinhos


que também se encantam por uma sacerdotisa 

cuja alma dança na praia noturna em volta da fogueira.


São testemunhas

da tua magia

a lua,


as estrelas

e a tiara de flores

que adorna teus cabelos.


Se o mundo brilha

é por tua causa

e não pelos

versos.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Devaneios

Não durmo,

aflito, pensando:

Que fim você dará

aos seus batons, baby?


Nesse tempo de treva

a sua boca vive oculta 

dos bárbaros e flautistas

e me dói a dor dos rivais.


Acredite, baby, prefiro aquele ciúme de outrora quando os cavalheiros

cortejavam o seu beijo atraídos por seus lábios fatais dos batons líquidos.


Até sonho com você sem máscara

assoprando delírios de luxúria

aos mercadores de Veneza.


Ah, baby, não jogue ao lixo

os seus batons de mil batalhas,

incríveis loucuras e doces vitórias.


Haverá o dia da marca do seu batom 

na minha última carta, ou eu cegue.

domingo, 15 de novembro de 2020

As oitis da calçada

A sua luta é vã

mas entendo

o anseio,


já caminhei por essa margem

e senti na cabeça o sol

desse deserto.


Trago cicatrizes

no meu pulso.


E um espírito firme

por tantos giros

em volta


do próprio

corpo.


Entendo o seu medo 

e a sua vaidade.


Os meus pés também foram queimados

pela margem desse deserto e meus olhos

cegos pelos pontos luminosos desse céu.


Trago entre minhas costelas

um coração leve e astuto

que só treme

ao vê-la.


Entendo a sua distância

e a triste lembrança

que você suspira

da minha voz.

sábado, 14 de novembro de 2020

Mosteiro

Mas nunca desejei o paraíso

se tenho clara noção do quanto

é duvidosa a salvação de um cara

que passa a vida a escrever poemas.


Chega a ser jocoso

o desejo celestial

se a minha carne

arde pela existência.


E não há outro alimento

para quem ama a terra

senão os frutos da terra.


A maçã e a sua serpente,

as uvas e a embriaguez

da camponesa.


Não, baby,

nunca contei

com a serenidade


mesmo nos tempos

de meditação transcendental

em que sonhava aventuras místicas.


Sou carne,

sou ossos

e vapores.


O que em mim há de celestial

é a única adoração pelos pássaros.

Postulados

Os cãezinhos

recém-adotados

e os passarinhos

debaixo da chuva,

 

quem há de negar-lhes

os íntimos pensamentos?


Ou você imagina

que um cãozinho

deitado no tapete


ou um passarinho esperando

a chuva passar entre as oitis

não se perdem em divagações?


Lembranças particulares

de uma memória etérea

de quando foram gente


e agora,

bem-te-vis

e vira-latas.

Os pássaros e as serpentes

A solidão é um bálsamo

para quem adora criar

as próprias formas

das sombras


e reconhece

que sua mente

tem um parafuso

a mais e outro a menos. 


O inferno dos meus desvios

só ocorre e me fere

quando fujo


da natureza

de poeta:


Um ser perdido

de solidão e multidões

que encontra sentido no poema.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O último toque de recolher

Há séculos e séculos

conheço o fogo

do seu sorriso:


Uma chuva

de estrelas cadentes

que atravessa a sua rua


e cai na minha varanda

iluminando o meu peito.


O meu doce e pobre

coração de passarinho

nunca mais será aquele

frágil e louco coração 

de passarinho,


pois acomodo

entre os ossos

das minhas costelas

a sua alma encantada.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A Corte Dos Corvos

O meu guia

é um beberrão

enquanto o outro

(também meu guia)

é um sábio arrogante -

ou seja, vivo perturbado.


Só você, meu doce,

com seus cabelos

de almíscar

e alecrim


para me salvar

desse barco

furado.


O pior

(nem lhe digo)

existe outro guia

que ouve os dois

(o louco e o pedante)


e vive sorrindo

em profundo silêncio

do poeta e das sombras.


Penso até que é ele mesmo

o verdadeiro fantasma

a plantar na minha

mente de corvo


migalhas de pão

e de girassol.