quarta-feira, 31 de julho de 2013

o filósofo amante

Podemos dizer adeus
até ao nosso primeiro
amor, mas aos nossos
fantasmas é impossível.

Vivem em nossa pele
juntando todo até breve
para um dia a eternidade.

É o trabalho deles,
o meu é não me iludir.


seda

Não importa o livro
que eu leia - penso
em você,

pois na última vez
em que fui à sua casa
roubei do seu banheiro
aquele papel perfumado
que embrulhava seu sabonete.

Agora serve-me
como marcador
dos meus livros.


fábula do entardecer

O rei da janela do seu palácio
viu ao longe a sombra
de um homem triste.

Desceu as escadas arrastando a túnica
e conforme aproximava-se do fantasma
ia verificando que se tratava do seu jardineiro.

O rei chegou a dois, três passos
do homem taciturno, triste.

E o rei falou -
"O que foi, homem,
cadê a sua alegria?"

O jardineiro levantou os olhos
serenos e sem brilho algum

e apontou pra um canteiro
um fabuloso canteiro
que cultivara
há pouco -

orquídeas, tulipas,
azaleias, rosas,
jasmins.

Respondeu o jardineiro -
"Com elas, está com elas
a minha alegria..."


irmãos de carceragem

Se o poema não tiver liberdade
para caminhar, amputo
minhas pernas.

A poesia purificou-me
da convivência com loucos -
como agradecimento, jorro
seus filhos nessa selva seca.


o ciúme é um vinho embriagante

Quando cheguei ele já estava
sentado ao teu lado oferecendo-te
quitutes à tua boca e te fazendo gracejos.

O correto, como manda o figurino
de um lorde de sangue frio, era
simplesmente sorrir, acenar,
ir ao balcão, pedir
um drinque.

Só que tu esqueces
que não sou um lorde.

E o meu sangue é quente: sertanejo,
senhor de engenho, pistoleiro de família.

Além do que - dorme dentro do meu coração
entre essas cavidades sanguíneas uma vespa
que detesta ser acordada da sua sesta
antes das seis da tarde.

Explica essas questões culturais a ele,
enquanto estiveres revezando o bife
de um olho ao outro do sujeito.

Não te esqueças de meter-lhe no bolso
a passagem de ida e nunca mais pise
na tua casa esse gringo casquilho,
canalha, almofadinha.

Lembra-lhe no aeroporto meu último conselho:
"a sorte às vezes é uma mãe esquecida
que tranca o filho recém-nascido
dentro do carro."


alma bamba, quase trôpega

Não foi difícil, te confesso,
ganhar o prêmio do ano
de mais romântico
boticário.

Aquela fragrância
elaborei cheirando
as nossas cartas
de amor.

Os primeiros que experimentaram
o perfume nos meus pulsos
foram os beija-flores.

Quando um desmaiou
com sorriso lindo
no bico,

tive então certeza
que faria sucesso
a minha alquimia.


nada de novo no front

Uma porta que se abre
linda vizinha que chega
de viagem, lembrancinha
nas mãos, um sorriso doce,
olhos brilhando de felicidade.

Disse-me ela,
tremendo lábios:
"Sua irmã está?"


bela adormecida

Até minhas botas descansam:
os calcanhares pousados sobre
as rodinhas da cadeira giratória
elas fazem pouco do poeta insone.

E eu espirro quatro vezes
para acordar os vizinhos.

Alguns entendem meu sinal
e respondem, cúmplices,
com uma tosse
tímida.


terça-feira, 30 de julho de 2013

um homem maduro

Lembre-se, moço, que os seus gladiadores
e soldadinhos de ossos de galinha
e ossos de tutano de boi,

os seus carros de lata de óleo,
as suas moedas encantadas
tampinhas de refrigerante -

salvaram a sua infância
e coroaram a sua alma
de encantos.

Se hoje você se perde
em devaneios olhando
simplesmente paredes
com as suas ranhuras

a exuberância nasceu
naquele tempo de miséria
em que você menino brincava.

Os seus heróis de ossos de animal,
os velozes carros de lata de óleo
puxados por barbante,

as moedas do tesouro
tampinhas de refrigerante,
o seu barquinho de papel
de embrulhar pães, os grampos
da sua mãe que você alargava-os
para que se transformassem monstros -

era a sua mente infantil e brilhante
que lhe oferecia do seu coração
vida para o poeta que hoje
chora.

Não é tempo de morte,
moço, nem de despedida
mas aproveite essa delicadeza
e beba um pouco das suas lágrimas.

Elas são bentas,
o mundo a seu redor
respira o seu oxigênio.

Lembre-se que a doçura dos objetos
não muda - o que finda é a luz
do olhar, a janela sem grades.


elos de almas

Os meus defeitos são tantos
que o próprio encarregado
do Mal dispensou-me
de enumerá-los.

Mas um específico,
a ingratidão, não carrego
sobre meus ombros calejados.

Mesmo dentro do ventre da minha mãe
se ouvi vozes gentis e senti boa energia
essas pessoas estarão salvas da morte.

Sim, pois no dia em que os esqueletos
virarem poeira e a carne alimento
do fogo ou da terra

estarei junto dos meus
com o coração aberto.

O infinito amor de um poeta
não há traça viva para devorá-lo.



bambu ao vento

Já não sinto frio
aprendi a fazer fogueira
dos ossos das minhas costelas.

Quem ultimamente reclama
são os meus travesseiros
dentro dos quais

metia os punhos
e buscava
deles

as vísceras
e o coração.


firmeza

Não são apenas os céus que conspiram
a favor da lucidez - o chão, sobretudo
o piso da cozinha:

há pouco as próprias cerâmicas
seguraram os meus pés
evitando um tombo.

E seguraram as cerâmicas
os meus tornozelos
com força
e zelo.

Da mesma forma que um pai
segura a mão do seu filho
quando atravessam
uma briga de bar.


dá a Lázaro o que é de Lázaro

O sacrifício foi feito
e o fiz durante um século.

Agora ponho sobre meu túmulo
um lindo arranjo de flores e um bloco
de versos desses meus últimos dias santos.

Atravesso o pátio
dos mortos que ficaram mortos
e digo ao sol que bate no meu rosto
que me acompanhe, pois havemos de amar
muitos leprosos como eu sob um tempo louco.


o sinal

Dedos, anéis e mãos
perdemos um dia -
sinal no rosto
é talismã

quando discreto
só se faz visto
após a barba
feita.

Amigo de longas datas
(acima dos meus lábios)
deu-me força naquele
tempo de trevas.

"Vais me matar
também?"

Era o que dizia
com inocente silêncio
de um sinal de nascença.

Depois de tantas loucuras
parece-me ele jovem
porque pareço eu
mais calmo.

Imagino a minha morte
em que morto o corpo
estarei deitado com ele
sereno iluminando a face.



ondas de luz

Cansado das cabeçadas
contra as grades da jaula
descobri que doem menos
as têmporas se eu atravessar
uma moeda de ouro ao carcereiro.

Não é suborno,
apenas criar laços
de amizade com quem
cuida da minha solidão.

Até crescerem asas
sobre os meus ombros
o carrasco terá morrido
e eu acordado um santo.


doce terça

De tão lírico que acordei
à primeira andorinha na calçada
darei um belo nome - renascimento.

Veremos se a andorinha reconhecerá
a minha voz de etéreo poeta sem corpo.

Pois já se foram ossos, pele, cílios,
dedões, tudo junto com os versos.

Agora o que levita
são minhas botas
mascando chiclete.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

ciranda nas nuvens

Guarde minhas mãos
dentro da sua bolsa -

o que as linhas das palmas
tinham a revelar do destino
fizeram-no, meu bem, agora
é conosco carinhos e atenção.

Segure forte o meu mindinho
que voar com os passarinhos
é uma loucura boa e bacana.


a solidão de um burguês

Quando uma mulher some
da minha rua e nunca mais
passa debaixo da varanda,

contento-me em apedrejar
os pombos, pois são eles
os culpados.

Esses pombos têm o péssimo hábito
de sujar os cabelos de minhas musas
com o excremento das suas migalhas.


paixão de aracnídeos

Sei que os insetos me amam,
ah, sim, sei - mas há certas
aranhas que perdem
a noção e passam
do limite.

Só me esperam levantar da escrivaninha
chegar até a porta do banheiro
que caem sobre meu rosto
a mil beijos frenéticos.

Alguém tem de explicar
pra essas aranhas
que teia linda
é aquela

ao raiar do dia
no meio do caminho
de um bosque florido.


mel

A vizinha do andar de cima
todo final de tarde banha-se
com o perfume de alguma deusa,
além dela própria, e enlouquece-me.

Não se trata de um sabonete comum.
A fragrância que rompe minha alma
é um cheiro benevolente
e infernal.

Sinto-me qual um menino
descobrindo alegria de homem
sob a penumbra dos bons sonhos.


um jovem senhor babão

Quando baba o teclado
o poeta tem duas opções:

ou levanta-se e caminha
até o jardim do prédio
e flerta andorinhas

ou simplesmente
mete a mão no bolso,
tira o papel higiênico,
limpa o que babou.

No meu caso,
por viver polindo
as lentes dos óculos,
tenho quilômetros de papel higiênico
dentro dos bolsos: basta-me então suspirar,
encolher a barriga e quebrar algumas costelas.


segredos revelados por etérea convivência

Você me diz sorrindo
morrendo de felicidade

como se tivesse descoberto
um tesouro, botija, moedas de ouro
no quintal do casarão dos seus avós

que ao estar contente
eu ponho a língua de fora
e mordo os lábios - e isso, ressalta,

apenas ocorre em dois momentos
da minha vida: quando escrevo versos
ou quando lavo louças do jantar e almoço.

Só acrescento que o fato de pôr a língua de fora
e morder os lábios quando lavo as louças

é na verdade por que já vejo
versos à altura do seu olhar.


nuvens suspensas formam novos horizontes

Enquanto as minhas mãos estiverem ocupadas
escrevendo versos a minha alma não sairá do corpo
e este entenderá que a sua agonia é ridícula ao presenciar
a dor de um inseto que perde as patas e as antenas em uma tarde
de vento forte e muita solidão, enquanto estiver ocupado em escrever
versos as minhas mãos não pegarão em armas e não estourarão os miolos
dos crápulas, imbecis, extravagantes reis e pedintes furiosos com o próximo.

Enquanto eu estiver bem
sem entender essa morte
que beija as minhas mãos
estaremos salvos da tolice.


obsessão de um jardineiro

Preocupa-me a ausência das formigas
pela mesa depois do lanche, preocupa-me
a meia fora da bota, a lágrima preta do café
marcando a face da minha xícara como o rímel
marca a lágrima da minha menina por seu rosto branco.

Preocupa-me o tombo, a perna contra a quina da cama
e nenhuma dor, preocupa-me a eternidade dos óculos
que me dizem mesmo mortos nunca largarão
os meus olhos.

Preocupa-me sobretudo outras mulheres
que desejam roubar a minha pequena
dos meus braços.

E fogem do controle
e me empurram
do abismo.


a pele em flor

A camiseta branca molhada
pendurada no varal do banheiro
sabe muito bem torturar a minha alma
quando bate ajudada pelo vento nas minhas costas.

Tremem-se minhas costelas de arrepio
e a camiseta branca ainda faz graça
ao sorrir.

Beijo-lhe a gola
e digo até breve.


segunda florida

A minha morte é lenta,
pois não se acaba
o meu amor.


domingo, 28 de julho de 2013

musgos de telhados antigos

De cada mulher que passa por minha vida
colho um frasquinho do seu perfume
e outro do seu sangue.

Em noites a morrer de saudade
com os olhos de D. Quixote
e as mãos peludas
de lobisomem -

subo ao telhado,
misturo as preciosidades
e bebo o encanto contente.

Em questão de segundos
o coração se preenche
de doçura e coragem.

E já não penso em deixar órfãs
as plantinhas da varanda.


mulheres que trituram o coração

Antes de ir embora,
ela pediu para que eu subisse
o zíper das costas do seu vestido.

Eu morria de medo daquele vestido,
pois sabia quando ela o vestia
comigo ou com outro
passaria a noite.

À porta, tirou a mão do trinco
engomou a lateral do vestido
sorriu pecaminosa.

Um táxi
esperava-a.

Fiz mira com minha pistola
da janela da varanda.

Mirei o pneu, a cabeça do motorista,
a cabeça da minha amada.

Ainda tinha muitas coisas pra fazer naquela tarde:
aguar as plantinhas secas de quase uma semana,
louças na pia, limpar a sujeira do meu hamster.

Outro dia eu faço o que prometi
ao padre no confessionário - cair fora,
fugir da presença daquela mulher maldita.

Mas os seus olhos
já tinham me cegado.

E cego, cego da gota serena,
não há mais o que fazer da vida
o poeta perdido, louco, um santo.

É bom eu guardar a pistola
onde meu filho no final de semana
ao me visitar não encontre - dentro
da descargar do banheiro quebrado.

O que farei, até lá estiro
as pernas sobre o pufe
e jogo longe
um livro.


sábado, 27 de julho de 2013

todas as luzes da casa acesas

A poesia põe a coberta
sobre minhas pernas mortas.
E se há alguma verdade nesse frio,
dentro da alma, são os versos que revelam.

Ausente do poema [do ofício de erguer o olhar
para o alto imaginando a qualquer instante
desabar o teto] nada resta de bom
e sagrado.

Contudo, se escrevo -
mesmo que seja tolice-

basta o ritual de me concentrar na solidão
que uma luz torta, difusa, engendra
outra pessoa que me salva
do vazio.

Salva-me porque me lança
mais profundo no pântano
das palavras.

E de lá não deveria sair,
seria completa a morte.


ocorrência ao entardecer

Depois da tampa
da pasta dental
perdida

o jeito será deixá-la
sem chapéu, permiti-la
ao vento, à temperatura,
às bactérias oportunistas.

A minha escova entenderá
o beijo ressequido da pasta fria.


cruzada

Se o meu coração tem uma vida à parte,
o meu sincero propósito é seguir essa criança.

Caminhada árdua, mas enquanto caminhar
estarei atento como em noite de lua cheia
atravessa o mar a minha sombra.

Ninguém segurou as minhas mãos
quando tentei uma viagem sem volta,
portanto ninguém segurará minhas pernas
a impedir que eu caminhe e suba a montanha.

Com o tempo o coração,
pequena criança, se dissipará
lentamente aí poderemos beber
o nosso sangue uma grande taça
de água pura sem demências e fúria.

E haverá sossego no meu olhar -
mais que brilho e sonhos.

Os mortos que de dentro de mim morreram
serão cobertos de respeito, porque um dia
foram eles o princípio da partida.

Mas aos mortos
um adeus festivo.

O que seguirá será o novo
o doce deslumbre e as palmas das mãos
abertas e bem vistas ao olhar do próximo.

E eu direi risonho -
"Não trago armas,
vejam a pureza
do coração."


o verdugo vem de navio

Um inimigo distante
é bem mais terrível.

Se próximo,
puxa-se o tapete
ou joga-se sobre
a cabeça um pote.

Afastado, longínquo,
havemos de atravessar mares
conhecer outras ilhas além da nossa alma.

Durante o caminho
também corremos
o risco de amá-lo.

O inimigo então caminhe
um pouco mais para trás -

que o abraço
lhe quebre
ossos.

exército de criaturinhas

Ainda hoje, meu bem,
pego-me filosofando
o sumiço da legião
de cupins -

simplesmente um dia acordaram,
puseram seus alforjes sobre
os ombros e partiram.

Deixaram as portas do quarto
desfiguradas, verdade -
mas as deixaram
de pé.

Não olharam para trás,
não me disseram adeus.

Partiram como partem
noivas apaixonadas
por viajantes.

A minha companhia é tão desprezível?
O perfume delirante das minhas cuecas?

Partiram os cupins
e nunca mais os quero de volta -
os cupins são presunçosos e hiperativos.

Davam-me nos nervos,
sobretudo quando mordiam
meus pés já dentro das botas.


o sétimo andar do deleite

Eu, meu amor, de bem com a vida?
Só quando você me vir ajudando
um pombo a atravessar o sinal.

O que eu faço é bater papo com minha alma
o tempo todo e ela sempre tem segredos
para me revelar do maravilhoso
cotidiano.

Seria um crime hediondo
conhecer a língua das coisas
e não trocar alguns olhares e ideias.

Enfim, sou apenas um ladrão
do amor da minha alma
por quem em volta -

xícara, plantinhas,
botas e um livro
sobre a mesa.


os mancos óculos

Destreza é a palavra correta
quando se lava as lentes dos óculos
com uma já suspensa quase vã e solta.

Seria impossível flertar o cotidiano doméstico
míope, tombando pelas paredes, levando
no caminho cadeiras e pufes.

Portanto, nessas horas de pura atenção,
sou um monge beneditino e cauteloso -
lavo meus óculos como se cuidasse
dos tomates da horta.


é vasto o deslumbramento

Não, as coisas em que toco
nem todas viram ouro -

mas continuo dando vida
aos passarinhos mortos
dentro das caixas
de sapato.

Voa, andorinha,
que o alto é a tua casa

e passa logo pela janela
desse céu banguelo
de azul infinito.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

as horas são leves se é madrugada

Não tenho dúvida
de que meus anticorpos
também escrevem versos.

Curei-me rápido
da garganta tosca
da gripe tão sinistra.

Sou um novo insone
pela casa sem tossir.

Nas pontas dos pés
os meus fantasmas,

e eu lhes digo
pra andar
normal.


náuseas

Algumas formigas
passam por meus pés

olham para cima e me condenam
como se desconfiassem
do açúcar que hoje
me lambuzei.

E estão certas essas formigas -
de tão doce o meu corpo
exala uma alma mórbida.


cabelos de louca

Que cabelos são esses,
céus, a minha alma
é apaixonada
pela beleza

e tira onda
que a luz interior
é a que ilumina meu caminho.

Vinicius era um sacana,
eu sou um sacana,

por amar tanto
mais que a própria vida
os cabelos de uma louca.


a velha senhora de lilás

Depois de morto
não pensem que
estarei os vendo.

Ninguém será forçado
a derramar um alfinete
de lágrima ou depositar
coroa de rosas brancas.

Apenas batam na janelinha
do caixão, não quebrem
o vidro, e digam: "adiós,
poeta."

E deem logo o fora,
pois sinto cócegas
entre os dedos
das mãos.


fragrâncias

Ah, enfim, as vizinhas do andar de cima
ressurgem graciosas lançando à minha janela
esse perfume perturbador que mói minha alma.

E alma moída de poeta
é pra se beber todo o mel.

Um dia subirei a escada
até o paraíso e perguntarei
o que fazem diabinhas no céu.



o olhar do crepúsculo

Deixarei por mais tempo a cafeteira
flertar a colherinha do açucareiro
antes de fazer o café.

Esse lance amoroso
entre os objetos
da cozinha

comove-me
a alma.

E tenho visto tantas vezes o embaraço dos pratos
quando a mesa muda de vestido xadrez
para uma lingerie florida.


face da moeda encantada

A vida é arriscada -
arrisco-me todos os dias
calçando as botas e olhando estrelas.

Se a vida não fosse arriscada,
não seria eu um soldadinho de chumbo
caçador de javalis selvagens e escorpiões.

A minha alma conhece o deserto -
já dormiu sob temperaturas baixíssimas
e fez amizade com arbustos, besouros esquisitos
e outras formas humanas além da nossa tola e mortal.

O tempo de frouxidão
só me lembro do meu túmulo
largado ao vento e folhas secas.


mudanças

Eu a vi descendo a escada do prédio
olhos castanhos meio esverdeados
que tive a impressão do amor
ter nascido no meu ventre,
intestino, fígado, costelas,
pulmões e coração -
tudo na brasa.

Apenas lhe entreguei
o meu olhar de poeta
para que depois você
pense no meu silêncio.


concha das mãos em água cristalina

Antes do poema,
por meros minutos,
você conseguir observá-lo
sem uma palavra na manga do punho -

talvez o poema se faça outro,
desnude-se das vestes de viajante,
sente-se ao seu lado como um amigo,
ombro a ombro, sob um tempo sem fim.

E esse não dizer mútuo
carregado de revelações

revigore a sua alma
para outro tipo
de morte.

nas palmas das mãos há mais segredos

Não tenho medo de caminhar sozinho
até os fundos do casarão dos meus avós

tampouco de atravessar aquele corredor imenso
e escuro, mas eu tenho muito medo de morrer
nos seus braços lendo Camões.

Explique ao meu coração esse desajuste.
O que lhe bate forte, tambor africano
de pele de zebra, é motivo
para que feche os olhos.

E o meu coração sabe
mais que eu e como ninguém
fechar os olhos com exuberante melancolia.


o nada e o vago

A inocência ainda não perdi,
embora já converse com as pessoas
como uma pessoa perfeitamente normal.

No princípio eram palavras
ondas de vazio e brumas.

Agora só minto
quando sozinho
olho pros pulsos

e contemplo as marcas
meio esverdeadas do tempo
em que pensei me matar usando
uma faca de cortar pão cega e tristonha.


cotidiano de sexta

Aos meus ouvidos regressa
a serradeira de mármore
e granito -

vejo sem dificuldade
o trabalhador de macacão
serrando as peças, ajustando as texturas.

Enquanto na grade de ferro
um passarinho de papo amarelo
tenta conversar alguma coisa comigo.

Não entendo bem,
a serradeira é cruel

e o homem que serra
sente prazer na tortura.

Mata ao mesmo tempo um pássaro
de papo amarelo e um poeta gripado.


metais

Esse amor incondicional
que os objetos nutrem
minha alma

deixa-me
louco:

por onde passo
caem aos meu pés
o cinto da minha calça
e os broches da minha amada.

É uma confusão de sons agudos,
estapafúrdia, desesperos,
como se o mundo
acabar-se fosse.

Os objetos sabem
que sou um navegante
de olhos atentos ao vento.

O que me bate no coração
volta em forma de versos.

Para eles não é o suficiente,
por onde passo pulam
aos meus pés -

o cinto da minha calça,
os broches da minha amada.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

epifania nos olhos de uma lagartixa

Se me vem a treva
e calça minhas botas
no lugar dos meus pés,

sabei, inimigos, a teimosia
é meu estado de graça -
prossigo o caminho.

Aproveito-me do instante
do fogo que me parte
ao meio

o crânio,
a coluna cervical,
todos os ossos das costelas.