sábado, 30 de junho de 2012

setenta anos

O sol hoje trouxe alegria
até para meus fantasmas
que sorriem ao meu lado

pegam-me pelo braço
e enlouquecem afoitos
pela calçada

também sorrio
porque sou cínico
bem mais que eles

esses meus fantasmas
na verdade são meninos

graças a deus sem correntes
presas a calcanhares

tudo que temos
eu e eles

são asas douradas
ora lilases e brilhantes

que ontem
tarde da madrugada
roubamos do meu pégaso

coitado,
ainda esperando
das estrelas um atestado
de lealdade e concupiscência

hoje o sol acordou bacana
cheio de manha e música

meus fantasmas já estão lá
na calçada correndo atrás
dos pombos coxos

e brincando de abraçar folhas secas
antes que caiam ao chão 

eu sorrio da janela
e escrevo versos

porque sou tão cínico
quanto o sol malandro

que hoje acordou estranho
mais devasso que de costume

queimando meu rosto
beijando minha nuca

saudoso
que tenho medo

dos meus fantasmas
sofrerem noutro dia

porque os fantasmas são meninos:
creem na eternidade dos bons momentos.

terça-feira, 26 de junho de 2012

metódico

Todo passarim sabe
que o entardecer
é mui delicado:

caem monstros
das estrelas.

Portanto,
para dentro
moço de cabelos brancos.

Fuja da varanda,
beba seu café
tranquilo.

Prefira o idílio dos olhos
da mulher que não te vê.

Aqueles guardados dentro do bolso do bermudão
fizeram-te tanto bem que quase te cegaram.

Para dentro do quarto
moço de cabelos brancos.

A varanda é para donzelas e jarros tristes.
Flores alegres a gente tranca dentro da gaveta.

Parece que a varanda também é para cronista abençoado.
Sempre vem um e outro passarim a deitar-se na almofada
ou naquela cadeira dura dos meus avós.

Já para dentro
moço de cabelos brancos.

Seu tempo de devaneios
é tão simples quanto
o seu tempo
de enganos.

Acabou-se aquele tipo de engasgo
que surge com a esperança.

Volte para seu quarto
e mate seus cupins.

Eles depois de comerem as portas e as janelas
não duvide hão de comer suas botas.

São tenazes e lépidos esses cupins
do mesmo código genético
dos chineses.

Pegue o veneno
e não cheire.

É forte pra chuchu o veneno
e tão leves os cupins
com o vento.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

amor não é fábula

Confesso que perdi as asas durante o mergulho
mas o bico continua úmido de pétala
e qual a flor me diga

que rejeita um pássaro trôpego
de bico encantado?

A gaita de Bob Dylan
toca agora doutro lado
passando pela montanha

logo após o último arco-íris
enquanto eu sonhava
e tu me iludias.

Juro que os teus peitos
foram mamados
com doçura
e lealdade

e ao dormir,
também te juro,

eu sabia de cada detalhe da saudade
que acordava com tua escova antiga
e os meus dentes amarelos.

Confesso que sem asas
o voo é seguro -

encostando o bico
na ponta do abismo

tiramos mel
do jardim.

Até creio que o céu
é todo abismo secreto

onde há pétalas de orquídeas
e bico molhado de pássaros trôpegos

[acreditas?]

sexta-feira, 22 de junho de 2012

chuva

Esperava essa chuva
para enviar-lhe
meu coração -

faça bom proveito
e não esqueça:

um beijinho
em cada face
é o seu maior dengo.

Em dias de insônia
deixe-o bater seu tambor
e dançar com suas entidades.

Ele é louco mesmo
e tem muito ciúme

do puro sangue
que se derrama
com as lágrimas.

domingo, 8 de abril de 2012

o bufão de sorte

Para quem tem um quarto
com rachaduras nas paredes

das quais escapam coelhinhas
todas seminuas e sorridentes,
como ser triste?

Para quem tem um par de botas
que me leva a reinos encantados
onde se pode beber vinho
à vontade

e não dar bandeira na casa do rei
pegando firme a rainha,
como ser triste?

Para quem tem traças inteligentes
que adoram ler de tudo na estante

e me sussurram aos ouvidos
livros que tive preguiça
de chegar ao fim,
como ser triste?

Para quem tem vários passarinhos
que se revezam a cada manhã
e tocam Bach

deslizando gravetos nos bicos
em sensíveis movimentos,
como ser triste?

quinta-feira, 5 de abril de 2012

a mulher calçada para matar

Não sou um bom moço
mas nunca deixo ao relento

inseto ferido
ao pé da porta.

Penso que poderia ser minha
aquela alma desventurada

vítima de um salto alto
no primeiro degrau
da escada.

O que me surpreende
já quase morto

é o inseto ainda ter força
para me confessar sorrindo

que morrerá
feliz -

"o salto alto da vizinha
atravessou-me o coração
qual uma chama
de donzela."

Como são tolos os insetos
e todos os homens debaixo

do salto alto
de uma mulher.

Morra, ó miserável
e não me traga
escorpiões

pela fresta
da porta.

quarta-feira, 28 de março de 2012

o senhor do tempo

Não sei como
o coração pula
da caixa torácica

e caminha sozinho
pelas calçadas

chutando tampinhas
de refrigerante.

Chove muito ultimamente
e meu coração adora

essas calçadas frias
com pontas de cigarros
chicletes e sujeira de poodles.

Quem sou eu para trazê-lo de volta
ele é louco e só retorna quando
sente fome e sede

então se encaixa
entre as costelas

começa a bater seu tambor
tão confiante que dos céus
logo caem

andorinhas desprevenidas
ainda com bobes na cabeça.

segunda-feira, 26 de março de 2012

química

Somos amigos,
tão amigos -

eu e esse sabor antigo
de café ao entardecer.

Nem preciso olhar pela janela
a cor do céu - é o mesmo
do primeiro dia.

E tu me perguntas,
"e os passarinhos?"

Namoram no escurinho
entre os galhos de oiticicas.

tempestade

Pronto, tirei a barba
[pasmem] dessa vez

não feri o sinal
acima dos lábios;

o cabelo, entretanto, não corto,
permanecem os cachos
crespos e brancos -

pareço um louco
escrevendo cartas

dentro do olho
de um tufão.

Fantástico é que tenho
voando a meu dispor -

livros, estante, geladeira,
flores, vacas, camponesas.

Até uma chinesinha
com o olhar tão doce.

domingo, 25 de março de 2012

meu quarto é um oratório

fico imaginando seus joelhos
se alguma cicatriz, verruga

ou simplesmente
lisos e rosados -

fico imaginando
se no joelho direito
teria espaço suficiente
para escrever um poema

e no esquerdo
desenhar um coração,
beijá-lo e encostar meu rosto

abraçado
às suas pernas
...

fábula pra repousar o espírito

Os deuses da poesia são três:
o Arrebatado, o Altivo
e o Justo.

Vivem a socos
e pernadas

disputando o amor
da bela princesa.

O Arrebatado sempre gagueja
em companhia da donzela.

O Altivo é um tolo esnobe
e logo entedia a distinta senhora.

O Justo até que bom moço
mas não há mulher que aprecie

tantos salmos e provérbios
em noites de lua cheia.

A princesa só não vive triste
no alto da sua torre

porque todas as noites
escala sua janela um esquilo

cujos dentões mordem
os pés da princesa

que ri e que chora
em profundo êxtase,

sobretudo quando o esquilo
sobe por sua longa perna
e beija sua virilha.

sábado, 24 de março de 2012

o maquiavélico

diga-me onde você malha
e venderei chocolates
na esquina

só pra ver de perto
seu olhar de repúdio

e o seu biquinho
de reprovação -

não que eu seja
um sujeito canalha

mas é que adoro sua dúvida
de roer-lhe a alma
entre

a delícia do chocolate de amêndoas
em saborosa calda de leite moça

e a sua disciplina de louca
com mil séries de glúteos.

quinta-feira, 22 de março de 2012

o banquete da memória

Segundo os antigos
os pontinhos brancos
nas unhas são mentiras terríveis

desde o tempo em que crianças
eram anjos de cara lisa
e asas tortas,

então concluo
que essa nódoa branca
na unha do meu mindinho

é o meu pecado mais mortal
que já se aproxima dos céus.

o viciado em coisas invisíveis

agora que ando sóbrio
sem ressaca e sem delírios

penso que sou eterno
e que o mundo
é um sonho

os fantasmas não gostam dessa nova vida
e tentam me seduzir com cítaras

em vez de correntes
presas a tornozelos

mas como disse,
agora que ando sóbrio
sem ressaca e sem delírios

penso que sou eterno
e que o mundo
é um sonho

digo adeus aos fantasmas
deixo-os tristes pela casa

calma, calma, calma
fantasmas bebês chorões

o amanhã ainda não existe
quem sabe no último dia

eu acorde
alma penada

mas por enquanto,
agora que ando sóbrio
sem ressaca e sem delírios

penso que sou eterno
e que o mundo
é um sonho
...

quarta-feira, 21 de março de 2012

tarde nublada

veja as palmas das minhas mãos:
navios de pirata, corsários ingleses,
céus, nuvens, linha do horizonte,
uma ilha deserta, filhotes
de tartaruga fugindo
pro mar -

são palmas de mãos sonhadoras
que só fizeram da vida
apertar o próprio
sangue -

beije as minhas mãos
e ponha no seu peito

a saudade
delas
...

só quero atingir seu coração novamente

algumas horas atrás
eu falei das joaninhas

e olha só como elas rebolam
em um jardim plano
sem armadilhas

são dondocas
essas meninas

casaquinho florido
e um olhar indiferente -

parecem tanto contigo
naquele dia quando
parou a chuva

e tu recusaste
meu braço amigo

foste pisando poças
sem ao menos

um pulinho
de bailarina
...

terça-feira, 20 de março de 2012

o equinócio de uma minhoca

os meus pés estão cansados e frios
as estrelas somem com o dia longo

a tinta forte das paredes recém-pintadas
alegra-me o peito [penso em ópio e vinho]

não me levanto da cama
o sonho sempre foge
quando tenho sede

deixo-me então
assim, a garganta seca
e um sabor de peixe na boca

meu caixão ainda não está totalmente pronto
faltam os tamancos e as almofadas
do meu último pranto
...

entrevista

fui entrevistado no blog roxo-violeta,
da poeta Tânia Regina Contreiras
leiam a entrevista clicando aqui

segunda-feira, 19 de março de 2012

o mais invisível do tátil

juro que eu não sabia
que as fadas sentem cólicas
e têm fortes dores de cabeça

imaginava como único atributo das fadas
salvar aqueles pombos loucos
que tiram os tênis
nike vermelho

e levam choques
nos fios de alta tensão

agora que sei que as fadas
choram e trincam os dentes

morrendo de dor
às vezes encabulada

por sofrer igual
a uma mulher comum

serei atento
e mais sensível -

diz-me, fada
desejas minha mão sobre teu ventre
energizando os teus hormônios
e a boa circulação sanguínea

ou preferes tão somente
meus beijos por tua nuca?

Creio que os meus beijos
hão de te arrepiar todo o corpo

e segundo as fadas superiores
corpo sob frêmitos
é um bom sinal
de cura
...

domingo, 18 de março de 2012

versos que escrevo dormindo

uma nuvem de gafanhotos
não é tão infernal

se cada inseto
traz aos dentes

uma asinha
de borboleta -

calma, os gafanhotos
apenas salvaram uma borboletinha
das corredeiras de um rio assustador

não chores,
é facil montar

afinal as borboletas
vivem sem o corpo

basta que recuperemos
os mínimos detalhes
das asas

cada ângulo
com sua cor

e teremos
para nossa alegria

até mesmo a imagem
do último voo sobre
um lindo jardim
...

o carrasco

perdi a conta de quantos tubos de pasta dental
meu filho torceu o pescoço
e ainda hoje torce

o pivete tem uma especial habilidade
em tirar o chapéu branco da kolynos
ou da colgate

e sorrindo o carinha espreme
até a última lágrima
de flúor

dá-me pena ver a horrível morte
desses amigos tubos de pasta,

pescoço quebrado
e olhos revirados
de tanta dor
...

sábado, 17 de março de 2012

a unicidade do instante

Não deixo pra amanhã as cuecas de agora
pode ocorrer uma tragédia

e o pedacinho de sabão
sumir pelo cano
da pia.

Lavar cuecas com sabonete
ou amaciante fofo?

Isto não,
da última vez

vieram à janela
todos os tipos de andorinhas -
gordas, viúvas, ninfetas, loucas.

sexta-feira, 16 de março de 2012

a tua gargalhada

se me perguntassem o que levaria a uma ilha deserta,
a tua gargalhada, claro

seria uma festa - eu, os golfinhos
e uma turma de peixinhos malandros

bebendo água de coco
e nos deliciando

com tua gargalhada boa
com tua gargalhada
doutro mundo

os reis quando esperam a visita de um príncipe
não são trombetas que tocam os arautos
mas tiram da túnica uma caixinha
e ao abri-la,

eis a tua gargalhada
a invadir salão,
masmorra,
cozinha

chega até aos ouvidos
dos cocheiros

que entram em transe
e acabam bebendo
todo o vinho

recém chegado
de Portugal

a tua gargalhada
tem esse poder
louco

se me perguntassem se não queria
levar para a ilha deserta
também teu corpo,

boca,
seios
e coxas

diria que não,
que a tua gargalhada
seria suficiente para meu encanto

a tua gargalhada
[não fiques com ciúme]

iria trazer à praia
tantas sereias,

tu nem imaginas quantas
do mar báltico

dormiriam
com o poeta

a tua gargalhada
não é a risada
de Irene

mas te juro,
se Caetano

de longe a ouvisse
pensaria compor
uma música

se eu deixasse
e eu não permito

tua gargalhada é só minha
e dos meus golfinhos
e dos peixinhos
malandros

e do rei e de todo o seu séquito
e dos cocheiros e das sereias

de Caetano não,
deixa-o com a risada de Irene
...

quinta-feira, 15 de março de 2012

a parábola do pai generoso

agora que tu sabes
que as hienas são ferozes
e mordem mesmo fundo a carne

volta pra tua cabana
pro teu jardim

as sementes
lançadas pelos passarinhos
já crescem as vagens de feijão verde

agora que tu sabes
que as hienas são macabras
que destrincham até os ossos

foge da companhia delas
foge da tempestade

debaixo de uma árvore
o raio que racha o tronco

também parte ao meio
a tua cabeça

retorna pra tua cabana
lá as paredes do teu quarto
sonham em te apertar o peito

e os teus livros abertos
guardam entre páginas
flores

perfumadas
que nunca morrem
...

terça-feira, 13 de março de 2012

quarentena

quando as coisas estiverem boas
bem-te-vis felizes fora da gaiola
aranha com o besouro predileto

então eu te convido
para um cineminha

no momento aceita
estes meus cabelos
secos e compridos

estes meus dentes
vândalos e amarelos

esta minha barbicha
de náufrago erudito

estes meus tendões molengas
estes meus olhos apagados

deixa o sol distante
da minha calçada

nunca pensei um dia
amar tanto a frieza
dos meus chinelos
...

quarta-feira, 7 de março de 2012

punhal no peito

o primeiro amor é único
ornado de inocência
e muita febre

presente do cupido-mor
que não é um anjo
mas o próprio
deus

tão velhinho
e apaixonado

se tu perdeste o teu primeiro amor
no trem ou no foguete ou de patins

é bom dar-te à bebida e ao luto
porque não virá outro sol

nunca será igual àquele
de shortinho na primavera

se estás a lembrar assim meio mole
do teu primeiro encanto
então acredita

aproxima-se
um milagre

porque o cupido-mor
o próprio deus de barbicha

às vezes aprecia na gente
a desventura e a tragédia

e traz de volta
outro amor

mais dolorido
e passageiro
...

terça-feira, 6 de março de 2012

fim da comédia

digo adeus aos versos
o que serei agora
se não sou
poeta?

plantarei batatas
e verei o entardecer

doutro lado
da montanha

deixo as palavras em paz
sem a minha boca
e meu sopro

deixo a minha dor silenciosa
a cabeça que não está boa
o coração que já partiu

[o que sobra
a um louco?]

deixo meus livros filhos das traças
deixo minhas botas encostadas à parede

não vejo graça
nem beatitude
dentro da alma
que já é morte
...

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

a santidade dos objetos

Quando sair, digo pra minha alma,
deixe a porta do quarto aberta.

Pouco me importa o vento:
que bata a porta até rachar o teto.

Saberão os ladrões
que tem em casa
um alma viva.

Não a minha, claro,
que já anda distante.

Mas a da porta
que vem e vai

e bate
e torna
a bater.

Quando voltar, digo pra minha alma,
veja se ainda serve a chave
e se o teto não desabou.

Se dócil a fechadura
e se o teto seguro

festeje então meu corpo,
a sua única e fiel morada.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

neuros

ah, esse sonho insano
querer atar a alma
do outro

ao nosso
capricho

já não nos basta esta
doida pela casa

tateando no escuro
xícara, mesa, toalha

ah, essa tolice mesquinha
de querer laçar o corpo
do outro

ao nosso
sapato

já não nos basta esta febre
dentro do olho

tateando no escuro
o último analgésico

ah, deixemos os outros
com seus ombros
com seu peso
e pluma

já não nos basta esta
cruz de santo
esta coroa
de louco

pela casa
tarde da noite

tateando no escuro os chinelos
e só encontrando os pés da estante
...

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

terça gorda e linda

Quatro dias é o suficiente
para tratar-se de uma artrite.

Espantoso,
nunca canto:

nem samba
nem fado.

A minha salvação é que sei
fazer uma andorinha gozar.

É lindo vê-la em transe
asinhas meio pendidas
biquinho entreaberto

e os olhos enormes
arregalados,

de vidro
ou porcelana?

Terça-feira gorda de carnaval.
Não conheço um dia mais santo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

ausente do juízo normal

No dia em que você rasgou meus poemas
eu deveria ter percebido de uma vez
a mulher louca que era

ninguém rasga poemas
por imensa a frieza
por maior o ódio

poemas são filhos sem mãe
que logo partem

sem dizer adeus
ou onde vão morar.

No dia em que você rasgou meus poemas
em diversas perpendiculares

fazendo horizontes
apartados das nuvens

eu deveria na mesma hora
ter feito minha mala

ou lhe dado uma bofetada
ou lhe ter jogado uma praga

porque ninguém rasga poemas
e continua a viver impune.

Mas tolo nada fiz
senão olhá-la

perplexo,
incrédulo.

Hoje em dia você se alegra com seus amigos
faz planos de trabalho e passeios.

Decerto você não imagina
que rasgar poemas
é um pecado

um pecado mortal
e sem expiação.

Veja o meu caso.
Um dia rasguei poemas.

Agora minha vida se resume a escrever versos.
Não tenho tempo nem para calar a minha boca.

E isto é triste
quando é eterno.

o nevoeiro que se dissipa

Os versos tortos que escrevo
é a comprovação que sou humano.

Falho como homem
e como poeta.

A divindade que me vem
com o poema eterno
some,

sequer tenho tempo
para festejar o assombro.

Esta minha capacidade
em ser falível e efêmero

é a sincera afirmação
de que sou humano.

Haverá para meu corpo
as dentadas dos vermes

como já voam sobre o que escrevo
os brilhantes dentes do esquecimento.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

melancolia

O coração sabe da tolice enfadonha
que é um punho com artrite.

Mas que bom que é domingo de carnaval
e todos estão na praia e na serra
felizes.

Deus na sua infinita ironia abençoa-me:
agora são os dois punhos com artrite
e os dez dedos obesos mórbidos.

Capitão Gancho pergunta se quero
que ele ponha açúcar na xícara

e Peter Pan me diz sorrindo
que no seu reino

para cada tipo de artrite
existe uma fada específica.

Preocupa-me apenas como apertar o tubo de pasta
e derramar sobre a escova
a lágrima de flúor.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

sábado de carnaval

Que raios de mão esquerda é esta
bastando mudar o tempo,
esfriar, chover

para que o punho inflame
e os dedos inchem.

A minha alma sofre mais que o corpo
com sua mão esquerda podre
de punho inflamado
e dedos gordos.

A minha alma se torce,
se rói, se lastima

busca alguma magia
para aliviar essa dor patética.

Capitão Gancho é um bom sujeito.
Certamente escreve melhor que Peter Pan.

Segurar a pena com um anzol é para poucos.
Sobretudo bêbado de conhaque.

Peter Pan não bebe
e suas mãos de seda
encantam as meninas.

Basta chover,
esfriar o tempo
que volta a artrite

e o punho incha
e os dedos engordam.

Penso em capitão Gancho.
Dizem que um crocodilo
devorou-lhe a mão.

A verdade é que foi capitão Gancho
que amputou a mão de tédio,
louco de artrite.

Sujeito de coragem.
Natural que escreva
melhor que Peter Pan.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

a poética das coisas

Devo tantas vidas
mas não devo
a mentira

pois o que invento
corta-me a pele.

A estante de ferro
e o óleo johnson

não têm o mesmo corpo
mas têm a mesma alma
dentro do meu peito.

Devo a eternidade
mas não devo
a mentira

pois meu coração é súdito
de duas senhoras,

uma de espuma
e a outra de cristal.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

antes que o céu desabe

O sanguinário homem não entende
o perverso homem não entende

que a alma humana é salva
dentro da sua própria casa

com a voz dócil
e os olhos sinceros.

O mesquinho homem não entende
o egoísta homem não entende

que o brilhantismo da alma humana
acontece quando o ancião lembra

que tem memória
e o jovem arrebatamentos.

O louco homem não entende
o ansioso homem não entende

que a bravura da alma humana
vem da sua primeira inocência

dentro da sua própria casa
dentro da sua própria casa.

docinho

O musgo da árvore
não é o mesmo
do telhado.

Pelos galhos pássaros,
borboletas e cigarras
já demarcaram
território.

Enquanto o telhado antigo
guarda no seu musgo
apenas os olhares
das estrelas.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

chuvinha fina e um sol tímido

Se digo que os olhos da ninfa
brilham mais que estrelas

apenas suponho
que o fogo da juventude
é tão reluzente quanto distante.

Se digo que os seios de uma ninfa
é um par de doces devaneios

apenas sugiro
que o sabor do pensamento
ainda dá água na boca do sonhador.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

a boa insônia

Senhorita, perdoa-me os dentes
faz tanto tempo que não beijo

eles pensaram que tua língua
fosse um bife.

Senhorita, perdoa-me novamente os dentes
faz tanto tempo que não mamo

eles pensaram que os bicos
fossem de borracha.

Senhorita, pela última vez, perdoa-me os dentes
faz tanto tempo que não meto a cara
em um jardim perfumado

eles pensaram que os pelos pubianos
fossem relva do paraíso.

o último estalo é que acende o fósforo

Não, meu bom moço
ninguém observa tuas lágrimas
chora então e não peças clemência.

Não existe atrás da parede um deus oculto
nem sobre o telhado um samurai misericordioso.

Não acredites em olhar de quem vive morto.
Não escutes a voz da mãe que mente ao filho.

A única razão para que mexas em cadáveres
é vê-los sorrindo e não acomodados
em sonhos.

Acorda-os e escreve as cartas do teu coração
que nunca em hipótese alguma te serão entregues.

Abre teu baú de memórias
inferniza-te até que tuas pálpebras
se cansem dessa luta insignificante
entre lágrimas de cera
e cílios postiços.

Descer à masmorra das mentiras
é como correr em volta da praça
em dia chuvoso que parte ossos.

Deixa pelos canteiros tuas costelas.
Deixa que mais cedo ou tarde
hão de virar cinzas.

No invisível de ti há um jardim todo florido
plantado e replantado quando exausto
tu paras e consegues ver
uma rosa branca
que é azul.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

ondas

O poeta é um tolo, notório e conhecido
desde o tempo em que nasciam batatinhas
esparramadas pelo chão, diziam meus inimigos.

Sempre me comportei como tal
mas a minha ira também assusta.

Eu assumo minha tolice
e a bestial cólera
que me prende
e sufoca.

Eu não apenas assumo como canto
assoprando flautas doces e clarins.

Agora mesmo racha-me a cabeça
um raio digno de um tolo
e furioso poeta.

Não há motivos aparentes
que o mundo saiba antes
dos versos suspensos.

Se tivesse na mão um objeto cortante
uma caneta bico de bronze

não demoraria o sangue
a sujar-me o bermudão.

O que tenho nas duas mãos são dedos.
Dedos espertos que tramam aventuras.

Cada gesto anterior à palavra e ao pensamento
os meus dez dedos parados sobre as teclas
já intuem, sabem, riem.

Eu sou um poeta tolo e colérico,
os meus dedos são eremitas

e a cada toque no teclado
uma estrela morre
e outra nasce.

Ah, que linda ilusão
escrever poema
com o peito
espinhoso
...

há de nascer uma flor
desta voz abafada.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

dois velhinhos sacanas

Viverei até os oitenta anos.
Não se trata de presságio
ou sandice.

É que gostei desse número.
Dessa imagem simbólica.
Simples assim, diria
Pitágoras.

Até lá hei de colher meus gravetos em pântanos sombrios
como também em coloridas florestas de esquilos.

Terei bem de tardinha quando o sol esfriar
o que lançar às calçadas: versos tortos,
poemas apagados, palavrinhas ainda
bebês.

Os meus olhos estarão claros.
O meu sorriso franco.

Não sei o que você terá lançado sobre as calçadas
quando o sol estiver frio, talvez moedas de ouro.

Sei que você igual a mim morrerá aos oitenta anos.
Suas mãos gordas e peludas não verei seu sangue.

Ouvirei decerto seu escárnio das minhas memórias.
Dos meus gravetos colhidos em pântanos sinistros
como em florestas aprazíveis.

Terei a meu favor a mágica da textura do bambu
e ao tenro toque reconhecerei qual o poema
mais louco e qual o mais dócil.

E você com todas as moedas de ouro
espalhadas nas calçadas o que revelará?
As mulheres estarão aos seus pés.

E você ditoso de tanto rir das minhas ilusões
e de tanto alegrar-se da sua volúpia
não perceberá que as suas mulheres
são demônios de saia
e perfume.

Enquanto as minhas mulheres somente terei em versos.
Pois cada uma terá envelhecido e morrido antes de mim.

E serão todas santinhas no céu.
Não lembrarei delas da dor terrível no peito
pelo que me fizeram sofrer durante quase um século.

Engraçado é que fecharemos os olhos
ao mesmo tempo, minuto e delírio.

Eu não morrerei feliz porque gravetos
guardados dentro dos bolsos do paletó
incomodam quando se dorme
para sempre.

Imagino você com tantas moedas de ouro.

tumulto

Não pouparei sangue dos dedos
até que seja escrito o último verso.

Não me venhas então com candura
sossego de espírito e calmaria no andar.

Meu coração é tão somente artérias
entupidas de delírios e estupidez.

Não me peças então paciência
placidez e olhar cristalino.

Minha alma é puro ciúme
do invisível que lambe
do inexprimível
que toca.

Não pouparei cálices de lágrimas
até que seja lançado ao fogo
o último verso.

Porque nunca fui calmo e consciente
e todo o meu pavor é reduzido à loucura.

Meus braços não temem as ondas
nem as noites de relâmpagos
que me queimam.

Não me digas então
que amanhã será outro dia.

Não há mudança no sangue das veias
de quem conviveu com a própria morte.

E esta dor é morte -
infame, deliciosa,
mas morte.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

rubião entristecido

Dá-me água fresca
não para matar-me a sede
mas para lavar meus olhos.

Bons tempos aqueles em que moinhos
eram fantásticos gigantes de mil tentáculos
e a prostituta da taberna minha querida amada.

Bateu sobre meus ombros o fardo das estrelas
entediadas de tanto brilho sem que ninguém
possa salvá-las do passado.

Dá-me água fresca,
lava-me o rosto com teus cílios.

Devolve-me os olhos de outrora
do viajante jamais do eremita.
Pois este não sabe cuidar
da sua própria casa.

Dá-me água fresca,
lava e beija meus olhos
diz-me adeus e acompanha-me.

Minha cabana é logo adiante
seguindo o chiclete das minhas botas.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

espiões

Não leve tão a sério
o que lhe digo bêbado

os gestos,
os olhos

a quase vontade
de pular da varanda.

No dia seguinte não tarda
vem a andorinha à janela do banheiro

inocente,
sem a mínima ideia
do monstro que sou

a confessar-me feito um anjo
sobre coisas dos céus e das nuvens.

borboletas de todos os dias

As borboletas não são idiotas
mas às vezes me cansam
com seus dois olhos
nas asas

vigiando-me os passos
quando vou ao jardim.

Então é hora
de afastar-me delas
com cascos de rinoceronte

para que a terra trema
e os céus ouçam.

Borboletas devem caber-se
somente em forma
de tatuagem

na nuca e tornozelo
de uma mulher.

Mas o que lhes confesso 
é outro tipo de juramento

naquelas manhãs de pura solidão
onde borboletas são princesas
e também nossas meninas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

lázaro e o molusco

Interessante eu nunca ter catado pedrinhas na praia
só me interessavam búzios talvez
por eu saber que um dia

dentro deles
viveram moluscos

e moluscos têm a mesma vida dos homens:
sonham com o mar dentro dos ouvidos
e temem horrorizados quando
são arrastados às falésias.

Eu fui um poeta a partir da noite
quando sozinho pela praia
colhi um búzio

e ao levá-lo
ao ouvido

não foram apenas ondas
e gracejos de cavalos-marinhos.

Eu ouvi o próprio molusco
ressuscitando a mínima parte
que lhe havia restado dentro do búzio.

E eu [que quase medo tenho de nada]
deixei que o molusco ainda meio
amputado do abdome

invadisse meu ouvido,
descesse não sei por qual via
até o meu coração e lá se plantasse
e lá se iniciasse a regeneração de cada molécula.

Sempre que estou sozinho no meu quarto
ou dentro do banheiro eu faço concha
com as mãos e não ouço ondas
ou gracejos dos cavalos-marinhos -

eu ouço claramente
os assobios do molusco
em forma de agradecimento.

Loucura minha mas é como se ele
o molusco ao qual dei vida

confessasse que eu sou
um rei, um maltrapilho
mas um rei.

um homem triste que tem um tesouro

Não falemos sobre os homens tristes
que guardam nos olhos flores
das quais até abelhas
fogem apavoradas.

Embora eu seja um deles
a selar um tesouro

na cova rasa
de um túmulo antigo.

Ninguém em plena e total consciência
haveria de se interessar por esse tipo
de rubis, esmeraldas, brilhantes.

Mas eu juro que tenho, baby
trancado em um baú debaixo
de um anjo de mármore

um tesouro com todas essas pedras preciosas
e mais alguns papiros que revelam a longa vida.

Mas quem haveria de pôr ao ombro a pá
e sob uma noite de furiosa lua cheia
escavar tal tesouro?

Por isso, baby
eu sou um homem triste

largado de deus
e esquecido do demo.

Sem um pingo de amor
a derramar dos meus versos.

Mas não falemos sobre esses homens tristes
que tomam seus porres e se drogam
até o amanhecer

e a vida, baby
permanece mais cínica
e cruel com esses tristonhos.

Esqueça, baby
esses homens tristes
que carregam no rosto
uma cor parda e escamosa.

Ainda não olhei da varanda
como está a lua, decerto
deve brilhar tão silenciosa
quanto meu coração.

domingo, 29 de janeiro de 2012

levitação

Minha alma só deixa meu corpo
por um motivo: coçar minhas costas.

Espreme três cravos,
dá dois beijinhos.

Em seguida retorna pra casa
onde vive sossegada
feliz com o coração
entre as costelas.

pela eternidade que me sucumbe

Um poeta desatento é uma palavra
intrusa que aborta e sangra
o poema.

Depois de perdido o verso
o outro filho não alivia
o eclipse e a saudade.

São mais que versos
o que faz do poeta
um santo.

Eu, por exemplo, tenho os ombros
de São Francisco de Assis

sobre os quais passarinhos pousam,
fazem suas necessidades e cantam.