segunda-feira, 16 de setembro de 2013

patético dos patéticos

Cansado de lenga-lenga
em vez de esmurrar paredes
beijo cada dedo da minha mão.

Beijo com tanto fervor
que os outros dedos
da mão esquerda
fogem pela casa.

Será uma loucura
encontrá-los debaixo
da geladeira e dos jarros
das plantinhas da varanda.


louvores ao vazio

Se pensar muito
vai congelar aí
em cima -

ao abismo é natural
o voo e o precipício.

Só peço que caia atento
e se possível leve ao poço
ao fundo do poço orquídeas.

Dizem os monstros do subterrâneo
que as orquídeas do abismo
são as mais belas
do mundo.

Do meu mundo, e não do seu -
você morreu quando não pulou.


noviço

Depois do poema,
caminho pensando

como será nosso
próximo filho -

se terá asa de xícara
ou toalha florida
de mesa.

Aprendi a girar a aliança,
conforme meus sonhos -

um dia o dedo cai
e eu troco de noiva.


a fábula do abismo

Um bichano deitado na poltrona
observava pequenos besouros
de encontro à lâmpada.

Chocavam-se os besouros contra
a fluorescente e tombavam
ao seu alcance.

O bichano pegava-os pela língua
e experimentava aquela iguaria
de besouros eletrocutados.

Um besouro ainda vivo
olhou bem nos olhos
do bichano -

"Não lhe basta
nossa agonia
e morte?"

O bichano se pôs de quatro patas.
Investigou o besouro moribundo.

"Isso que não entendo -
por que vocês são
suicidas?"

O besouro antes de dar o último suspiro
e ser devorado pelo bichano sorriu
cínico.

"Da nossa paixão pela luz,
meu caro, tu nunca saberás..."

O bichano abocanhou o besouro -
mastigava-o calmamente
enquanto refletia.

"Paixão pela luz?,
esses besouros
são loucos..."

E voltou a deitar-se na poltrona
esperando que caíssem mais perto.


transgressões

Que raios de loucura
é essa que não foge
das minhas mãos?

Conversei com os meus objetos
e expliquei-lhes que não é normal
tanto amor explodindo o meu peito.

A xícara branca de leite
com a colherinha dentro
permanece irônica e feliz.

O que eu posso dizer
da felicidade dela
senão amá-la?

As botas vivem exaustas do vazio
e da poeira debaixo da escrivaninha.

"Um dia retornaremos às calçadas",
tento persuadi-las às novas aventuras.

Mas elas sabem [e eu também]
que o tempo outrora não volta.

A estante de ferro
o que mais faz
de saudável

é segurar meu guarda-chuva
com um ar altivo e esnobe.

Do quarto apenas suponho
que a cafeteira desligada
sonha com o açucareiro.

Esse idílio
é eterno.


das magias

São oito os jarrozinhos de cactos
sobre o parapeito da janela
da vizinha.

Ela não sabe, mas já faz um tempinho
que os seus cactos são meus amigos
e confidentes -

vivem me entregando o jogo
do seu coração e pensamentos.


pecados de um samurai

Juro a mim mesmo
que nunca mais comerei
coraçõezinhos de galinha.

De madrugada pesadelos
com os senhores galos

enciumados
e tristes.

E não me ouvem
dizer que só era
divertimento

de um rei
solitário.


meditação

Pegue a tesoura de jardineiro
e o regador e vá tratar
do seu jardim,

pois já me amedrontam
tantas pragas e ervas
daninhas.

Compreenda o que os seus olhos falam
não olhando para o espelho, mas
com eles fechados

em profundo
silêncio -

a força que move as suas pernas
não é sua e nem deste mundo,
assim como não é deste reino
a canção que se ouve
do seu peito.


liberdade

O amor não tem um alvo.
O amor adormece de olhos bem abertos
vendo tudo que se passa próximo e distante.

E se o amor gosta do que vê -
então se levanta, vai até o coração
e a voz suave ordena que se faça luz.

E a vida brilha como agora brilham
as folhas verdes da oiticica
de minha calçada.


caolho e manco

Se você acredita no meu amor,
deixe-me antes beber meu café.

Não acredite, senhora,
sou um canalha e o idílio
é a minha natural postura.

Dos sonhos tão singelos
tenho apenas uma ambição:

escrever poemas
até que a mão
caia de lepra.

Quem sabe então
um sujeito comum
sem mãos de poeta
eu acredite no encanto.

Mas por enquanto,
minha senhora,
sou patife

e o meu flerte descarado
é apenas um truque
de amar o fardo
da vida.


razões para ter bons sonhos

Se apagarem a luz
do teu quarto,

dorme debaixo
da cama -

estarei lá te esperando
com uma lanterna
na mão

pra gente ler poemas
de Quintana e Rimbaud.


a sincera ilusão dos cegos

O sonho, o encanto e o amor
são três atributos inventados

pelos lunáticos trovadores
que não tinham espada
para rasgar o ventre.

Como eu tenho uma adaga antiga
agora mesmo me ajoelho
e passo a lâmina

dividindo o coração
em dois poemas.

Um haicai para os loucos.
Uma elegia para os santos.



domingo, 15 de setembro de 2013

ratoeiras

Há neste mundo
de ratos e homens
dois tipos de armadilhas.

A primeira o rato é pego
com a boca ao alcance
do queijo.

A segunda o homem
que é preso pelo perfume
da mulher que sai do banho.

Entre ratos e homens o mesmo destino -
o rato morto pela gula e o homem
pela paixão.


abismo florido

De tanto idílio com as cerâmicas da cozinha
a minha xícara pulou da mesa
e espatifou-se

feliz da vida escondendo os cacos
de porcelana pelos cantos da casa.

E eu que presumia
amor eterno.

Os poetas, meu bem,
nada sabem do que se passa
nas asas das suas silenciosas xícaras.


dos encantos

Ao descer a escada
pensativo e bobo
com os sacos
de lixo

desperta-se no meu coração
um singular instante
em que ele

olha bem os meus olhos
e sabe o que acontece
dentro da alma.

E dentro da minha alma
a única verdade que imagino
é que o sol não queima as orquídeas.


bicos e dentes

Deve ser a construção ao lado
que afugentou os pássaros
da minha janela.

Deles sinto falta
como nunca antes
senti de alguma coisa -

exceto da perda
dos primeiros dentes.

E caíram todos no sonho.
Eram apenas dois
da frente.

A fada dos dentes
é uma sádica.

Que raios de dentes!
Não são importantes.

Mas os  pássaros
que sumiram da minha janela -
sim, o motivo da minha desgraça.

E se hoje não os vejo
lembro-me apenas
dos seus bicos

batendo contra os galhos da oiticica
para em seguida martelar a grade
do muro do vizinho.

Se tivesse bico
não seria poeta
seria passarinho.

Mas tenho dentes
borrados de café.


sábado, 14 de setembro de 2013

lonjuras

Escrever cartas de amor
é um exercício de encanto,

mesmo que não exista uma amada
encostada ao portão do jardim.

Mesmo que não exista rua
e árvores nas calçadas.

Mesmo que o carteiro
tenha morrido de infarto.

Mesmo que a sua mão
já não se lembre

das sombras dos dedos
iludindo a palidez
do papel.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

língua bifurcada

A serpente cínica que louva
o seu inútil veneno parece
não entender que sangue
de poetas

é um sangue
em que borbulham
só os venenos dos versos.

Quem morre
é quem não entende

que a poesia não tem princípios
senão o de rodopios dentro da gente.

A escolha foi minha
ser paralítico
e viver

rastejando pela casa
a lamber as pegadas
das minhas formigas.

Não me interessa a morte
sem a ilusão e o peso
da poesia.


os primeiros românticos

O poeta está fadado
a ouvir até a morte

o coração
da amada -

as costelas do poeta
sempre foram encaixe
dos mistérios da mulher.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

nuvens

Se quisesse encanto,
eu beberia teu vinho -

queima primeiro a tua alma
com a melancolia do poeta.

Só depois que me tragas teus pés
que eu pinto de lilás as tuas unhas.


os arrebóis de Gogh

O que tu fazes,
meu amor, quando
o peito arde e os cílios caem?

No meu caso
escrevo um poema
e bebo uma xícara de café.

E tu, meu amor,
cantas um blues?


fortuna

Quando aprendemos a andar trôpegos
quem nos vê do alto (os pássaros)
imaginam que somos deuses

e nos seguem o caminho
sob o inconfundível
zigue-zague

daquele que leva
na palma da mão
um coração louco.


além da sobrevivência

O grande amor
de uma baratinha francesa
é um escorpião que escreve versos.

E passeiam eles de bicicleta
pelas cerâmicas da cozinha.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

cúmplice de fadinhas

Creio que há poemas
que seguem o caminho
do coração de alguém
sem que o poeta diga.

Este poema com minhas botas
caminha na direção da sua casa.

Sei que é tarde da noite
você cansada
dorme.

Mas não é o poeta -
é o poema e ele vai
com a minha alma.


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

troca de dádivas

Ao encher o copo de água
duas sementes de maçã,
ao acaso, do fundo
boiaram -

pensei comigo
e sorri:

"é uma bela resposta de Deus
 ao meu delirante amor pela vida."


a sabedoria de um bambu

O único objetivo do demônio
é iludi-lo a pensar derrotado.

Se isso acontecer,
seja mais esperto -

não se mexa,
não ligue as vozes,
não pule do abismo,
não corte seus pulsos,
não envenene seus filhos.

Permaneça inútil
e detestável até o fim.

O demônio entenderá a sua força -
rangendo os dentes o deixará sozinho.
E sozinho você saberá enxugar as lágrimas



boneco de pano espetado por alfinetes

Tenho plena consciência
de que o meu santo
não é de todo
amigo

de outros
santos.

O meu santo além de psicótico
é boçal, possessivo, romântico.

Se eu fosse outros santos
e logo cedo batesse de cara
com esse meu ar presunçoso

também tentaria afogar-me
na minha xícara
de café.


sinais de epifania

Esqueceram de molho
na pia da área de serviço
pequenas estatuetas de cerâmica.

Encontra-se de tudo:
miniaturas de jogos de cozinha,
gueixas, uma arca de noé com duas girafinhas.

Mas o que me chamou atenção,
seduziu-me de fato, foi uma camponesa
com um cestinho de flores. Pareceu-me tão real
que pisquei para ela e juro que recebi um sorriso de volta.


domingo, 8 de setembro de 2013

o doce delírio dos pagãos

O único fim proveitoso
quando escrevo versos
é esperar no dia seguinte
mais coragem do coração.


a velocidade dos insetos

Embora eu não fugisse,
a cada tom de sílaba

um osso do dedo
se fragmentava -

o poema era muito longo
para quem só se esforçava

em pôr de pé a alma
orgulhosa da solidão.

escultor de sopros

Cortarei o mármore do nosso túmulo
com as minhas próprias unhas

e esculpirei um lindo anjo
de asas descomunais
fincado na entrada
como espantalho
de corvos.


códigos

A poesia desestabiliza -
pense bem em que terreno
você deseja subir a sua casa.

Todos os dias
os seus cílios
darão nós
em seus
olhos.


cerejeira

A sua inocência purifica
a minha loucura
e de mãos
dadas

passeamos entre
girassóis e serpentes.

Não se acanhe da sua dor
mas não seja tão cruel
com a esperança.


idílio entre o asceta e a camponesa

Tu me perguntas
para que serventia
os meus braços longos.

Querida, são pontes
para borboletas
e beija-flores

atravessarem o quintal
da tua casa ao meu quarto.

cupins

A tragédia dos ferozes cupins
não é o que causaram
à estante -

inútil agora
aquela altivez
de jacarandá.

A loucura dos cupins
é o breve tempo
que precisam

para devorar
além da estante
todos os livros
antigos.

E vejo a estante em estado de choque.
Enquanto os mercenários cupins
ainda festejam com seus fuzis
dando tiros pro alto

embriagados
de querosene.


sábado, 7 de setembro de 2013

anacoreta

Vivemos por conjecturas.
Nem a morte é certa -
pois sua natureza
é ambígua.

Se queres saber uma verdade -
vê, meu bem, o amarelo
dos meus dentes
de muito beber
café.


tempo de lápis

Não apenas ganhei uma vida
escrevendo versos - suportei
outras tantas em meus dedos.

Vi mil sombras de falanges
criando destinos sobre
papéis que hoje
penso -

"onde vivem aquelas palavras
de antigamente escritas
no embrulho de pães?"


corpo

Tu terás o meu corpo
porque da minha alma
creio que estás cansada.

E  pelo meu corpo
descobrirás sinais,
cicatrizes, marcas
de vacina, músculos
adormecidos, artérias.

A cada descoberta, peço-te
que dês um beijinho
no local -

a batizar o território
com teu batom
e saliva.

Serás a senhora
deste velho corpo

em que a febre
é eterna.

adaga que corta névoa

Anterior ao poema
há uma atmosfera
por muitas vezes
personificada -

perfume, objeto,
um inseto pela casa.

Agora foi uma pequena lagartixa -
dessas domésticas que vivem
fugindo entre as paredes
da cozinha

com ar de surpresa
e medo.


criação

Para fazer uma menina linda
basta Deus amanhecer feliz

mas para fazer uma mulher
Deus tem de estar em transe

e Deus te fez tendo um troço
que os cardiologistas chamam
de infarto - teve o infarto Deus
e te fez entre os sonhos e morte.


lírios

Os erros do passado
são ridículos a quem perdeu
um olho e o outro brilha cego.

Não há caminho a seguir
senão permanecer silencioso

rasgando os antigos poemas
com flores brotando da nuca.

A mente é um demônio cansado
que só espera do seu dono lucidez.


sabatina

Enfim caiu-me dos céus
coragem para lavar o banheiro -

diante dos meus olhos o escovão sorri
e o sabão em pó me diz que a vida é bela.

Mas se tal primeiro
bebesse um café
e lesse Rimbaud?


monge

Exausto da beleza
que enlouquece
a alma

descanso
sobre

meu túmulo
acompanhado
dos teus suspiros -

tu que és saudade
da eterna euforia.


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

cânones do vazio

A poesia não escolhe os seus poetas -
se alguém escreve versos e morre
[e renasce] por cada palavra

quem haverá de dizer
que não é real a sua dor?

Siga o seu caminho
e não esqueça
de olhar

para o céu
e para depois
das suas nuvens.

Quem o segue, logo some -
assim é o vento e o chumbo.


quase dengue e dengo

Há um deleite na virose:
deixa o meu corpo humilde.

Sobretudo
os ossos.

Antes da maldita
o esqueleto anda altivo
sem destino e senhor de si.

Basta a virose fincar a sua bandeira
sobre meus músculos e sangue
os ossos afugentam-se
ao que a alma vê.

E correm pras cartas amorosas
e aos lenços do passado.

Incrível o que uma madrugada chuvosa
e livros antigos não fazem com o poeta.


por tabela

Já tive um olhar mais triste
e três almas desesperadas.

E ando sorrindo por dentro
das viagens do meu coração.

Pergunta-me sempre
como vão as lágrimas.

"como hão de estar -
aflitas e dóceis."

Respondo
e volto a viver.


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

ciganas

As quiromantes não conseguem ler minha mão.
Confessam-me: "as linhas da palma
o vento levou, agora o seu navio
vive à revelia..."

Que raios isso significa
não entendo mesmo.

A última que saiu do meu quarto
foi-me mais convincente apenas
beijando-me os dedos,

um a um, silenciosa
e de olhos febris.

Com esta posso contar
para um jantar romântico.


baque e rumores

Quando os poemas se escondem
caminho até a cozinha e faço um café.

No trajeto sempre há uma sombra
de algum objeto contra a parede,

um som de inseto,
uma conversa
de vizinho.

Não é difícil ver a poesia dando sopa
com sua saia rodada de bicos floridos.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

efígie

Naturalmente, sem esforço e perdas
o pássaro cansou-se das nuvens
e decidiu andar entre pessoas -

entendeu que o amor
é bem mais belo

sentindo o perfume
de quem se ama
perto,

e lançou fora
as asas.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

ponte sob névoas

Confesse ao mundo
que o seu coração

não pertence
a esta terra

e lá estarei -
no outro lado
da margem -

esperando
seus sonhos,

pois é no invisível
que se colhe a saudade
e não morremos em paz.