quinta-feira, 4 de outubro de 2012

bonança

As unhas dos dedos dos meus pés
dão o ar da graça vertiginosas
ultrapassam o horizonte
dos chinelos e tocam
as paredes.

Não as corto porque nessa hora
a tesourinha está doente -

calafrios,  enferrujada
no fundo da gaveta.

cambaleando

Que vivam e aproveitem da tarde
os mil dragões que ainda tenho
de matar.

Deitado sobre teu colo esqueceria armadura e espada:
o teu olhar magnético, os teus cabelos fazendo cócega
no meu nariz.

a síntese dos uivos

As molas da minha cama já pularam fora:
é tanta insônia, meu pai,
para um corpo só.

poema de madrugada

É como dobrar uma esquina e assustar-se
por encontrar um amigo depois de tanto tempo.

Tanto tempo que se imaginava morto o amigo de infância.
Escrever poema de madrugada é como encontrar esse velho amigo.

O receio de ambos é que um seja defunto
e o outro fantasma.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

o sobrenatural em nós

Lá fora o vento parece decidido
a matar quem o desafia

e a levantar saias
de donzelas.

No entanto ao entrar no meu quarto
o vento baixa a cabeça, beija meus pés,

tenta ser dócil com os pelos das minhas pernas
causando deleite a duas pernas de quase quarenta e sete.

Imagino quando eu estiver com oitenta
um dia antes de morrer o vento decerto
lamberá minhas pernas com sofreguidão
choroso e aflito,

"o que será de mim agora
sem as pernas do poeta
para arrepiar?"

Não sejas tolo, vento
haverá ainda muitas donzelas

para brincares levantando saias
e desarrumando seus penteados -

é o que direi 
antes de fechar os olhos
e nunca mais sentir vento algum
beijando meus pés e fazendo carinho nas minhas pernas.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

a esperança é um épico

Depois que eu ajeitar meus dentes
e voltar a levantar pesos
hei de ir à tua casa,

o peito bem estufado
e dentro do bolso
chicletes.

Sabemos que o poema mesmo triste
é mais doce de ouvir ao lado
de um poeta majestoso.

Tu podes botar fé que estarei de fato
majestoso com aquele olhar cínico
de quem conhece o manual
de torturas.

Acredita, hei de torturar-te
de todas as formas risonhas.

Tu aprenderás a morrer de pernas bambas.
A ver estrelinhas coloridas dando voltas
e passarinhos enlouquecidos
de frenesi.

Quando eu ajeitar meus dentes
e voltar a levantar pesos

não serei feliz por isso
mas será tão bom

diante de ti ter forças
depois de tanta dor
e desespero.

enfadonho

Às vezes penso que sou um sujeito pacífico
com inesgotável ternura no coração

a inundar minhas botas
ou o cesto de roupas sujas.

Mas logo perco a paciência com os dentes
que teimam em morder as bochechas
por dentro

em um ritual bárbaro
e inútil.

domingo, 30 de setembro de 2012

júbilo dominical

Uma mulher será completamente linda e maravilhosa
se souber jogar para trás os cabelos

e com uma só mão fazer
um rabo de cavalo.

E nesse encanto de graciosidade
ao levantar os braços
um beija-flor

há de beijar-lhe as axilas
e se esconder dentro
do rabo de cavalo.

Depois de bem acomodado o beija-flor
imaginando que é lá o seu ninho

qual divindade negaria a tal mulher
o poder de matar poetas?

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

transe do bom menino

Desenhe o sorriso do golfinho
no alto de um céu estrelado
e verá uma lua minguante.

Não mudei muito de quando era uma criança:
ainda imagino que sei voar e que sou invisível.

Pulo do guarda-roupa com minha capa mágica
e atravesso portas sem tocar-lhes
o trinco.

O mar é imenso,
o mar é vastíssimo

mas só o amor do peixe
pelo seu pescador é infinito.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

todas as baratas são kafkianas

As baratas enxergam no escuro
e já estou psicótico com uma

toda madrugada me olhando
com seus grandes olhos
de âmbar.

Não pega bem ser visto como
um doido de marca maior
só por que não durmo
e passo a noite

beijando as paredes,
limpando os livros,

procurando debaixo da cama
uma flor antiga presente
de alguém linda.

Oh, será que essa barata
com seus grandes olhos castanhos

é a moça que me ofereceu um dia
a tal flor antiga que busco em vão
debaixo da cama?

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

todas as flores merecem um olhar

Como não amar lara, cris, lelena, daniela, luiza?
Como não amar tânia, joelma, zélia, laura alberto ou raquel mendes?

Como não amar minhas andorinhas que voltaram à janela
e me fazem sorrir encostando o rostinho contra a vidraça?

Como não amar minhas fadas que limparam meu quarto,
deram um jeito na bagunça, puseram o lixo fora,
lavaram o banheiro, trocaram até a roupa
de cama?

O que dizer aos meus amores
senão que só tenho a lhes oferecer
um coração africano que bate tambor e toca blues?

E é tão verdadeira esta pontada no peito
que a cada minuto que passa
ficamos loucos, loucos,
loucos.

Então, apressem-se, meus amores,
corram, saltem do avião, e me abracem

e beijem meus olhos, pois a saudade caminha com meus pés
e  me leva ao abismo (e pular sozinho não tem graça
se eu não puder me segurar em seus cabelos).

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

entre a xícara e os óculos

Procuro pela casa algum objeto
que me venha dar um abraço.

Sinto falta dos abraços dos objetos
quando tonto me seguro pelas paredes.

A minha xícara sobre a mesa
silencia-se de lábio cortado.

Ela imagina que a desprezo depois daquele dia
em que alguém a levou à boca
e a deixou cair.

A minha xícara apartou-se
do meu coração e hoje
é apenas uma fria
cerâmica.

A minha salvação
é que tenho os óculos
que me falam ao ouvido
para erguê-los contra a luz
e tentar ver algum novo arranhão.

a generosidade do entardecer

Tentarei lhe escrever um poema bonitinho
sem nenhum traço de tristeza
e de vazio,

pra você que tem uma bonequinha de pano
e tantos esmaltes jogados debaixo da cama.

Veremos se consigo,
primeiro pinto suas unhas
e mordo todos os seus dedinhos.

Antes que você diga
que estou viajando
e que o meu mal
é a solidão,

beijo seus lábios e afogo meu nariz
no redemoinho da sua nuca
de pelos castanhos.

O perfume não me diga,
não me diga, eu conheço:

é o perfume da quimera do marinheiro
a conversar agora com os golfinhos.

tambores no teto

Se nascemos uma folha em branco
e a cada dia da nossa morte
escrevemos nosso destino,

ai de mim
que sempre tive
as mãos trêmulas.

Mas se a ferro e a plumas
já acordamos no caminho

sem que treva alguma
possa escurecer
a viagem

e nenhum céu azul
possa fazê-la mais bela,

ai de mim
que ando trôpego
e quase cego.

Ainda hoje deixo parte da minha loucura
na porta de estranhos e de longe
tenho a impressão

que sou eu quem abre a porta
pega os pães, o leite, o jornal

e olha triste
o fim da rua.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

o mendigo de óculos

Voltei a pedir moedas nas esquinas.
A quem passa digo um poema
e estendo a mão.

Recebo feliz de bom grado
até prótese de perna
de pau.

E são tantos espíritos bondosos
que choram abraçados
à minha garrafa
de vinho.

adeus é um breve aceno

O que se faz quando a alma da gente perde todo o gás?
Os passarinhos, bem sei, se perdem as asas há o jardim.

Mas e o poeta quando sente
que sua alma perdeu
todo o gás?

Vejo que minha alma não tem mais gás.
Sequer para acender um fósforo
dentro do coração.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

profeta de uma manhã inútil

Milagre ocorre quando enfim
Deus abre os olhos e pousa

a mão direita sobre
o ombro de um dos seus filhos.

Salva-se então o miserável
com uma barra de ferro
encravada no cérebro.

Poetas que aproveitem a vida
e lavem o rosto com a concha
das próprias mãos,

ainda não me chegou à porta
um velho senhor com a sorte
de novos presságios.

Sempre sozinho que enlouqueço
sem ajuda de clarões de luz
batendo nas paredes.

É meu dever atenção onde piso,
para onde olho,
sabe-se lá -

tudo é motivo para milagres
um paraquedas que não se abre
uma mordida de tubarão na caixa torácica.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

um coração doce

Idílio recente
entre meus cílios
e as lentes dos óculos,

as lágrimas com ciúme
rangem os dentes.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

santificado vosso crepúsculo

O que nos falta se a tarde morre
e brilha no fundo do céu
uma estrela?

Embora nós saibamos que as estrelas
morreram há tempo, o brilho delas
ainda é uma novidade em nossos
corações.

Apeguemo-nos a este brilho
como um menino se apega
ao seu primeiro carrinho
e uma menina à sua
primeira boneca

jornada sem fim

Não me preocupa a outra vida,
caso exista, depois da minha morte.

O que me espanta,
e gela meus ossos,

é onde eu estarei quando duas ou mais pessoas
reunirem-se em meu nome e falarem meus versos.

a solidão de um bom samba

Tu me pedes para ser prático,
conciso, sem mais delongas
sobre o amor.

E eu não encontro um jeito
de falar essas coisas
pros passarinhos.

Eles, meu bem,
só entendem a linguagem dos céus:

nuvens que mudam de comportamento
a cada rajada de vento, o orvalho da madrugada
sobre o teto dos carros, uma esperança de luz depois do arco-íris.

Não me peças, meu bem, para ser cirúrgico
tratando de um ferimento delicado
que é o amor ainda aberto.

Deixemos os passarinhos como são
e os poetas tristonhos, desvalidos,
compondo suas canções.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

depuração

Com que olhos tu vês a vida:
Os olhos de uma gaivota
que do alto vê a sombra
de um peixe no mar
e ataca?

Ou com os olhos do peixe
que dos corais vê a sombra
da gaivota no céu
e se afasta?

terça-feira, 21 de agosto de 2012

natureza em flor

Nunca perguntei o teu nome,
a verdade é que nunca
te olhei com atenção

e tu foste crescendo,
crescendo ao meu lado.

Hoje és uma linda moça
de cabelos longos,
esverdeados,
amarelos.

Tu, minha plantinha da varanda,
deves fazer sucesso com os pombos
que só vêm à janela para te admirar.

o café e a sua alma

Certamente estou vivo porque bebo café.
E se caminho até à janela e se leio um livro,

o café começa sua andança
por meu sangue.

Pergunta aos glóbulos
o que eles sentem
com sua cafeína
exuberante.

Os glóbulos não respondem.
Os glóbulos ainda não sabem falar.

Mas os glóbulos parecem felizes
eufóricos pela existência
do café em suas vidas.

tosse

Tristes, desamparados, incapazes
são os tubos de creme dental
secos e espremidos

dentro de uma cestinha
de plástico verde.

Aprende com o vazio dos objetos à tua volta
que toda melancolia de poeta é insignificante.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

esperança

Eu já vendi limão na feira,
eu já hipnotizei uma galinha
e forcei-lhe um ovo para matar minha fome,

eu já perdi uma moeda encantada nas rachaduras da parede,
eu já experimentei quase todo tipo de sofrimento, eu já rasguei poemas,
eu tinha um deus bacana uma boa luz mas sumiu quando soube meu futuro.

Serás tu, então, minha estrela guia,
o meu trevo de quatro folhas,
minha figurinha premiada?

domingo, 19 de agosto de 2012

sons de pneus no asfalto

Se não é pra enlouquecer, diga-me:
a convicção de que rompeu um vaso sanguíneo
e não desce sangue pelo nariz, uma medonha saudade
do que nunca foi vivido, essa calma de domingo, vontade
de pular de uma montanha, conversar com os golfinhos, esse cílio
colado na lente dos óculos que não deixa passar a primeira lágrima do dia.

os duendes quando amam

A gripe passou, a tosse passou,
a dor de cabeça passou, passou
por mim agora voando
um passarinho.

Não se levante, meu doce
espreguice, estique seus tendões,
flexione os seus ossos das costelas.

Dá para eu contar quantas:
você anda magrinha,

lendo muito,
meu doce.

Vamos à praia ou somente
 ao jardim do prédio?

Você não viu, meu doce,
mas uma nova flor
com um rostinho
tenro

ontem de noite
me disse "olá"
e nasceu.

Não se levante, meu doce
deixe-me ver seu sorriso

ria mais, ria mais
que eu morro.

Já fiz o café do jeito que você gosta,
molhei as plantas, a solidão passou,

a tosse passou, a dor de cabeça passou,
passou agora voando uma borboleta
com três olhos nas costas.

os sonhos que não tardam

Antes de dormir não é agradável pensar na morte -
ela me olha com os olhos tristes
imaginando o último dia
do nosso encontro.

Depois de enterrado,
eu e as minhas botas,
não valho nada
para ela.

É visível sua tristeza quando ela lembra
que mais cedo ou tarde estarei indo embora.

A morte é solitária, torna-se bem mais
com a morte do seu amigo de tantas horas.

É isto que sou para ela,
um amigo que fez as malas
mas ainda não desceu os degraus.

sábado, 18 de agosto de 2012

reino mágico

Ah, como eu aprendo com as coisas simples
as mais cotidianas e aparentemente
sem valor algum.

Se naquele dia eu tivesse jogado fora
o pedacinho de sabonete o que teria
sido da minha vida há pouco
debaixo do chuveiro?

Um pedacinho de sabonete
pode salvar a alma
de um poeta.

distância

A mulher com quem quero casar vive distante
e às vezes quando pensa em mim

ela pinta as unhas,
disfarça o que sente.

A mulher com quem quero construir uma cabana
no alto da montanha vive distante

e às vezes gargalha
supondo falácia
o que sinto.

A mulher com quem quero envelhecer
de mãos dadas lendo um bom livro
e bebendo café vive distante

e às vezes até pensa seriamente
que sou seu homem de verdade

mas logo volta a sorrir boba
escondendo o jogo
das amigas.

A mulher com quem quero morrer
sob uma só lápide os nossos ossinhos juntos
vive distante e foge dos meus poemas e do meu amor.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

todas as sextas-feiras são santas

Que céu azul magnífico lá fora
tem a cara de um menino sem camisa
feliz correndo pelas calçadas, enquanto

uma menina de tranças
pedala na sua bicicleta
cor de rosa.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

elegia

Eu quero os meus cabelos brancos de volta.
Eu quero os meus cabelos brancos de volta.

Depois que usei shampoo com filtro solar
meus cabelos parecem uma orquídea
de tons pastéis.

Devolvei-me os cabelos brancos,
minhas doces entidades

que eu vos ofereço
em troca meu nariz.

O meu nariz não é assim bonitinho qual um nariz de lorde.
Mas o meu nariz é bacana e nunca esqueceu o perfume
Eau de L'arc da primeira namorada.

reflexões debaixo do chuveiro

Qual o teu sinal de estimação?
Até as girafas, hienas,
ursos e leopardos
têm.

O meu é um pontinho
acima do lábio direito

e sempre que faço a barba
ele zomba: "ainda vivo,
poeta?"

a tensão do arco e da lira

Acordar no escuro de madrugada
refeito do susto beijar tua cabeça
e cheirar teus cabelos:

este é um sonho
que me faz falta.

Todos os outros já realizei:
ser amigo das formiguinhas,
compadre das minhas botas,
confidente da minha xícara.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

um dia D. Quixote chorou

Eu lia no escuro, lia debaixo de lençóis
lia sob luz de vela e muitas vezes
sob o clarão da lua.

Eu lia, lia, lia
que hoje preciso
de óculos para ler.

Os meus óculos de lentes tão arranhadas
só me dão dor de cabeça, então eu choro.

Eu choro, choro, choro
e pingo gotas de soro fisiológico
dentro dos meus olhos vermelhos.

a névoa do esquecimento

Se não te amaram loucura delas
essas mulheres diabólicas
de vestidos floridos.

Mas eu vi teu coração
sempre lá aberto.

Se te esqueceram e não te mandaram bilhetes
culpa delas essas andorinhas malandras
que iludem poetas:

o teu coração continua com a porta aberta
sei, meu amigo, vejo tudo do inferno
em que estou.

Não te desesperes com a saudade
nem faças as malas para o fim do mundo:

se não te amaram e esqueceram teu olhar infantil
ardil delas essas fadas espertas que beijam
sem abrir os olhos.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

a porta

Depois que os cupins comeram o fígado
da porta do meu quarto, quando bate
o vento só ouço gemidos.

Antes dos cupins era a porta áspera,
forte, presunçosa e nem ventania
fazia-lhe tremer o trinco.

Dentro de uma porta existe
além da madeira comum
um fantasma.

E se cupins comem o fígado desse fantasma
no mês de agosto com o vento frio
range a porta.

mamão

Um mamão como não amá-lo
ao abrir a geladeira, ei-lo partido

com seus mil olhos
e a sua carne
amarela.

Levo-o à pia da área de serviço
e corto-lhe outro ombro
em forma de círculo.

Alguns dos seus olhos
caem fora da lixeira
brilham negros.

Os olhos do mamão fitam-me
e perguntam-me como foi meu dia:

respondo que tudo bem
só falta mesmo agora
beber água, depois
um cafezinho.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

o clarinetista

O meu coração por ser um clarinete
não descansa da brandura
nem do sofisma

há na música dele
um desespero
e uma morte
ingênua.

Meus dedos trêmulos escrevem versos
mas é ele, o clarinete, que assopra
a melodia.

Triste, diria a mulher dos festins.
Misterioso, talvez pense a mulher das alcovas.

Só sei que meu coração é um clarinete
e todos os versos que escrevo

é ele, o clarinete,
que dita o caminho.

sábado, 11 de agosto de 2012

uma batida estranha no coração

Lembro-me de quando arranquei seu primeiro dente
e da primeira vez em que lhe ensinei e vi o garoto
fazendo o laço do seu tênis.

Não lhe deixarei discos, livros
e coleções de revistas
ou de carrinhos.

Não tenho a mínima ideia do que oferecerei ao meu filho
como herança palpável de um amor tão transparente
que me purifica.

Vejo-o crescendo com seus olhos brilhantes
e um sorriso misterioso entre duende
e lutador de jiu-jitsu.

A poesia não é herança que um pai deixe para seu filho.
Porque a poesia não é herança nem valiosa nem simples.

Às vezes até penso que seria maravilhoso vê-lo debruçado
sobre o caderno ou sobre o teclado do computador
escrevendo poemas.

Em seguida, vejo-o por dentro em transe
debaixo de um mundo lírico perturbador.

Concluo que é melhor que o pequeno não seja poeta.
Que seja então o que sua alma é, leve e fantasiosa.

E vendo hoje meu retrato quando eu era um garotinho
por milagre também o vi com os mesmos olhos
e riso.

O que isso significa?
Sabe-se lá, afinal eu não conheço
o universo do poema nem da outra vida.

dois senhores à mesa de um banquete

Sou do mato, seu moço
e céu azul assim só é bonito pros passarim.

Não fecho a janela porque tenho um pacto com Deus.
Não digo do que se trata nosso segredo, seu moço.

Só adianto que se eu fechar a janela
as andorinhas lá fora vêm até à varanda
reclamar da minha falta de boas maneiras.

Sou do mato, seu moço
desde menino ando no escuro
e lavo meus pés no riacho perto
de três cruzes de viajantes desconhecidos.

Dizem que os viajantes morreram de cansaço
durante a passagem entre o céu e o inferno.

Sim, seu moço, onde cresci
e no riacho em que sempre lavei os pés

antigamente era caminho
dos querubins decaídos.

Eu sei tocar trombeta,
seu moço sabe?

Ah, seu moço
se não sabe tocar trombeta

como anseia que de um céu azul assim
caiam anjos com suas trombetas de ouro?

Naturalmente engano os anjos, seu moço:
acabei de trocar uma trombeta incrustada de diamantes
por minha flauta doce de bambu que roubei de um monge.

Os anjos são tão bobos, seu moço
que tenho medo que um deles
um dia vire belzebu.

Mas como já lavei meus pés no riacho
entre as cruzes dos viajantes
tenho a alma fechada.

Seu moço acredita
nessas coisas de frêmito
e arrepio gelado na espinha?

Eu acredito, seu moço
senão como ter coragem
para escrever versos assim
debaixo de um céu tão azul?

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

cigano sem o seu cavalo

Não é comum um poeta ser feliz
se ele sabe tão claramente
que toda felicidade
é enfadonha.

Mas eu fui feliz e enfadonho enquanto sentia
teus cabelos entrando por minhas narinas
a fazer cócegas dentro do meu peito.

E os pássaros riam do meu olhar
e os peixes zombavam do meu andado.

Não é normal um poeta ser feliz
se ele compreende a natureza dos deuses

do triste fim da festa e depois aquele frio nas mãos
e depois aquela vontade de trancar-se no quarto
e morrer ouvindo blues.

Os teus cabelos neles havia uma colônia mágica
pois sempre rompia um vaso do meu coração
quando eu cheirava desesperado tua vida.

Diante dos meus olhos e ao alcance das minhas mãos
disponho de punhal, espada de samurai, revólver 38.

Mas seria patético uma punhalada no pescoço
ou um ventre aberto ou um tiro no meio da testa.

Morrer por tua causa somente de vinho.
Muito vinho, vinho, vinho, vinho, vinho.

O meu sangue tem a mesma cor
da minha camisa branca
agora manchada.

mordeduras nos lábios

Céus, como é doloroso
assistir à liberdade
de quem amamos.

Inventamos amor eterno,
ódio sobrenatural,
um ciúme doce.

Confabulamos com as tartarugas
para que elas morram no ninho
e não corram na praia.

Corrompemos os pássaros durante o voo
com a intenção de que eles percam o rumo
batam contra montanhas e caiam no abismo.

Metemos nossas mãos sujas dentro da terra
e prendemos minhocas entre os dedos
até que elas deem o último suspiro.

Somos bárbaros porque nossos sonhos
são cruéis com o nosso bem,

aprisionado e triste
aos nossos pés.

Seríamos livres e lindos
se o outro pudesse acordar
com vontade da nossa distância
e sem saudade do nosso perfume.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

um homem deslumbrado

Já encontrei de tudo
dentro do meu quarto:

penas de aves exóticas,
tampas premiadas de refrigerantes,
bolinhas de gude da cor dos olhos das russas.

Faltam tuas sandálias de dedo
que um dia tu, esquecida, deixaste

debaixo da nossa cama
de madeira e ferro.

A cama foi desmontada
e lançada ao fogo
da separação.

Ainda meio trôpego
penso que nada aconteceu

e procuro debaixo da minha cama box solteiro
as tuas sandálias de dedo com aquele suor
de teu esmalte.

agnóstico de maravilhas

Belo é o jardim,
contenta-se o jardineiro.

Cá entre nós,
sob o sigilo da noite
há momentos em que ele
sente vergonha das suas unhas.

E tu, poeta
o que tens no coração
mais flores ou terra escura?

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

xarope

Sou um pássaro de bico estranho que adora carne.
Por isso minhas asas pesam e eu desabo.

O povo do céu diz que o inferno é terrível,
eu a cada dia me surpreendo com outra verdade.

Um pássaro com o bico sujo de carne
não tem pra onde ir senão
esquecer as asas

e andar como homem:
uma cruz no ombro
e um sax no peito.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

três cápsulas

Nós mostramos nossos poemas
mas o correto seria guardá-los

longe dos olhos da gente
e dos outros olhos alheios.

Nós temos uma vaidade
dentro do nosso peito
uma vaidade

de jardineiro,
de criança.

E mostramos pras estrelas as novas orquídeas
e mostramos pros ratos nossa moeda encantada.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

pracinha

Jamais pensei que as lagartixas
se valessem do mesmo ritual de fêmea
que é comum aos felinos: levantar a cauda,
arriar as patas traseiras e quase aos gemidos
piscar os olhos.

Outro fato interessantíssimo
é o café da manhã das lagartixas:

ao contrário dos pombos,
abutres de migalhas,

as lagartixas simplesmente escolhem
qual a formiguinha mais gorda
que passeia na sua frente.

Felicidade é uma virtude não humana.
Creio que a felicidade cabe apenas
às lagartixas, embora elas
não acreditem -

e é bom
que o poeta se cale
e não divulgue tal maravilha.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

voyeur

Perdão por chegar à tua casa sempre atrasado.
A culpa é da minha vizinha que passa horas
indecisa com o que vai vestir.

Meus olhos são pivetes atrevidos.
Deleitam-se diante da janela aberta.

A vizinha, como disse antes,
é relutante: calcinhas,  jeans,
vestidos, camisetas

nada a satisfaz
de imediato.

Range os dentes, faz careta,
morde a língua, dá pulinhos.

Meus olhos de querubim decaído
adoram esse ritmo louco
da vizinha.

Tu me pediste pra que eu fosse
em todas as situações sincero
contigo.

Desculpa, meu bem,
por chegar à tua casa

sempre atrasado com essa cara
de lobo mau que comeu
maçãs rosadinhas.

Meus olhos são uma peste,
uma peste, uma peste,
uma peste.