segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Angico

Quando conheci Dom Quixote de La Mancha ainda não era responsável juridicamente por meus atos, fato que me levou aos abusos sobre a alma do Cavaleiro da  Trista Figura. Não o deixava em paz um segundo. Galopava ao seu lado entre os campos de girassóis e de papoulas e bebia da fonte luminosa dos seus delírios. Os moinhos eram de fato terríveis gigantes e nunca meus olhos toparam diante de uma dama tão formosa quanto a senhorita Dulcinea del Toboso. Sancho Pança servia-nos a cada terço de hora um cachimbo com cactos da Patagônia e sorríamos muito quando o meu mestre dançava xaxado fingindo-se incorporado da altivez e sobriedade de Lampião. Ao cair da noite, Dom Quixote reservava-se intimo e confidenciava aos meus ouvidos em voz roufenha o seu pesar. Nessas horas, Sancho Panço dormia ruidosamente envolvido entre as patas do seu burrico. O meu mestre confessava-me que não tinha certeza das suas ideias e dos seus arroubos. Insistia que era eu o seu verdadeiro mestre e que minha a divina incumbência de ensinar-lhe a arte do flerte e da conquista através das palavras escritas. Sofrendo um absurdo, respondia ao meu senhor [tantas vezes o mesmo angustiante assunto do coração de um bêbado] que há tempos rasguei e queimei as minhas cartas amorosas de idílios, namoros e matrimônios. O meu mestre Dom Quixote de La Mancha, O Cavaleiro da Triste Figura, gargalhava e mudava de assunto crente que um dia eu daria mostras do meu amor por seu espírito venturoso e dedicaria todas as noites de lua cheia a segredar-lhe os meus escritos líricos. Confiante em tal esperança, oferecia-me mais vinho dos monges do Mar Morto e voltava a dançar xaxado abraçado à sua lança como os cangaceiros abraçavam seus fuzis Mauser com delicadeza e luxúria.

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