30 de novembro de 2012
Sem grana, morando sozinho em um quitinete
sombrio, sem amigos, sem mulheres, sem futuro, escrevendo versinhos de moça
tísica e acessando sites pornôs. “Isso não é o inferno...” – refletia o
poeta.
O que realmente gelava os seus ossos era
não ter ao lado uma alma feminina para ouvir os seus versinhos e um corpo
perfumado da mesma alma feminina para compartilhar com ele da volúpia pegajosa
de todos os solitários.
Naquele sábado chuvoso, o rapaz pensou em
reativar a sua conta do facebook, embora fosse muita tolice um cara como ele
que lia Schopenhauer e amava Baudelaire entrar em uma rede social para encantar
mulheres com seus poeminhas. Do balaio de perfis femininos que o cara tinha
visitado, entretanto, existia uma em especial, a mais bela de todas, que havia
lhe escrito a seguinte mensagem - “espero que sejamos grandes amigos, ou algo
mais, também adoro poesia...”
Com aquela mensagem na cabeça, o cara não
conseguia mais dormir. Nem após sua punhetinha de praxe tardão da noite após
lavar as suas cuecas. Transformara-se em um insone apaixonado pela menina,
diga-se de passagem, uma menina deslumbrante: um docinho. Caso fosse mesmo dela
o rosto e corpo no perfil. Poderia ser um fake aquelas fotos maravilhosas. Brincadeira
de uma mulher feia e solitária.
O poeta passou várias madrugadas embevecido
escrevendo versos dos olhos e lábios da moça. Na sétima madrugada, criou
coragem e enviou os poemas. Não demorou muito, recebeu inúmeras mensagens -
“estou chorando..." "que poemas bonitos... minha alma está chorando, obrigada...” "apaixono-me..." O cara não trabalhou mais. Não se alimentou mais. A sua vida se resumiu a
escrever e enviar poemas pra sua musa e não demorava o cara recebia mensagens
de volta - “você é a coisa mais bela que me aconteceu ultimamente...” “você
escreve com o coração cravado na alma... “você é o meu poeta...” O rapaz
suspirava e os seus suspiros quebravam suas costelas. Mas teve de encarar a
realidade. Recuperou-se da falta de ar, dos tremores e voltou ao trabalho. Três
dias depois, por graça e cumplicidade do destino, sofreu um acidente. Quebrou o
braço. A sua bicicleta da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos furou o
pneu. Pegou uma licença de três meses. Comunicou à menina o seu infortúnio e
sob dengos e firulas explicou ao seu docinho o motivo da ausência dos poemas. O
braço quebrado era justamente aquele da sua mão direita responsável pelos
versinhos. “Com o gesso, meu docinho, desastroso até pra puxar o cordãozinho de
nylon e dar descarga ou pôr uma colherinha de açúcar no meu cafezinho preparado
pela minha simpática cafeteira...” Galhofeiro sorria o rapaz com ar
esnobe. E completava “... minha cafeteira, antes de você, meu docinho, era o
meu único anjo da guarda...” Terrível o rapaz. Diria eu, patético.
Durante os três meses de puro ócio, o cara
conversava direto na cam e deslumbrava-se todos os dias da beleza da pequena.
Já namoravam debaixo daqueles risinhos angelicais e daqueles papos mais
picantes. Vivia corado o rapaz e também vivia pálido. Rindo feito um anjo de
olhos brilhantes qual um demônio ávido por cocaína.
Na última semana de sua licença, o sujeito
foi ao aeroporto esperar a garota que vinha passar um tempinho com ele. Estava
do jeito de sempre, largadão: bermudão surrado, tênis topper preto, camisa polo
e a cabeça raspada. Usava uns óculos escuros. O cara tinha 1,76, era esbelto,
andava solto balançando os ombros. Não era um moço bonito, mas podemos dizer
que tinha uma estampa exótica.
Sob a expectativa da vinda da garota, o
sujeito comprara uma xícara de desenhos floridos e uma taça de cristal pra sua musa. Mimos
de um bardo apaixonado. A xícara seria para o seu famoso e especial café e a taça de cristal ao aguardado vinho que beberiam
juntos de noitinha. O cara era sincero e ingênuo - peças importantes pra formar
uma linda imagem de sua alma na cabeça daquela menina que chegava a passos de
fada, ninfa e bruxa.
Se o cara era largadão, a menina
estonteante: blazer branco, um jeans de tom manchado colado no corpo e uma
sandália de salto alto de uma elegância suprema. A pequena andava com uma
desenvoltura que fazia as pessoas, homens e mulheres, quebrarem o pescoço
atingindo inacreditáveis ângulos pra admirá-la uma última vez.
Chegou até o cara e falou assim a menina -
“oi, amor...” O rapaz tremeu como tremem os apaixonados. Beijaram-se e quem os
visse de longe ou quem passasse por eles sentiriam um aroma de amor eterno e de libido infernal.
Dentro do táxi, os apaixonados não falavam
outra língua senão as deles - línguas vermelhas e molhadas. O taxista tinha um
cândido sorriso nos lábios. Como se desejasse aos pombinhos toda a felicidade
do mundo. Do mundo? Felicidade perigosa essa.
Chegaram ao quitinete. A menina livrou-se
da mochila de couro sintético e caíram enlouquecidos de tesão na cama box
solteiro do poeta. A libido dos esquizofrênicos tem um suor forte que atravessa
paredes. Certamente aquela menina era uma louca varrida por sexo. Montada no
cara galopava com tal graça e volúpia que a deusa Ártemis [em suas célebres
orgias entre uma caçada e outra] morreria de inveja - e o que dizer da inveja
de Apolo ao ver aquela delícia de fêmea em galopes tântricos sobre o corpo do
mortal cujo destino até pouco tempo era um destino inútil de quem acessa sites
pornôs e escreve versinhos de moça tísica.
Só de noitinha, levantaram-se da cama box
solteiro e resolveram comer alguma coisa. Na pequena e antiga geladeira havia um lampejo
de banquete. O cara fizera uma comprinha decente: queijo, presunto, leite,
suco, pão de forma, coxinhas de padaria, frutas e um bom vinho.
O poeta não entendeu quando a menina riu
um risinho malandro no canto da boca e disse - “espera um pouquinho...” E lá
veio a donzela com um baseadinho enrolado em um papel dourado. Tudo naquela
menina lembrava ouro e felicidade. O cara sorriu bonachão e deu uns tapas. A
menina sussurrou - “desde o primeiro dia, sabe, amor, que você me mandou
aqueles poemas... sabe, te amo...” O cara só sorria, nada falava, ouvia
tudo e só sorria. Os olhos, ah, os olhos do sujeito brilhavam. E não pareciam mais
com os olhos de um demônio amante de cocaína, mas de um anjo surpreso com as
batidas do próprio coração.
“Amor... você também me ama?” – insistia a
menina com a voz de veludo. “ ... sim, baby, eu também te amo...” Abriu a boca
o rapaz, enfim. A menina [qual uma devota apaixonada de um guru hedonista]
segurou a cabeça do rapaz e beijou-o soprando a fumaça do baseado garganta
adentro do seu poeta. Até pareceu um batismo aquele beijo trocado com tamanha
alucinação.
Do quase banquete, saciaram-se os amantes
da fome do corpo e da alma. O paraíso regado a um bom vinho é sempre mais
deleitoso. O poeta segurando o seu copinho de plástico azul e a sua musa com a
taça de cristal finérrima.
O cara, depois do místico e alucinógeno beijo,
passou a sorrir muito mais bobo e tudo que repetia era - “sou sozinho na vida,
baby, sozinho...” Não falou de sua mãe que morrera de complicações no parto nem
que foi criado por sua tia em uma pequena cidade. Só repetia que era sozinho
na vida e não parava de dar beijinhos no rosto da pequena e a descer afagos nos
cachos castanhos até a nuca da sua baby sob uma aura romântica de beija-flores, andorinhas, cavalos-marinhos e golfinhos em doce balé de
jazz.
A menina arrepiava-se e queria saber mais
sobre o seu poeta que lhe escrevera poemas tão fortes e apaixonantes. O sujeito
mudava de assunto. E ela consentia, afinal não tinha do que reclamar. Estava
satisfeita com o que via e ouvia do rapaz. Embora o sujeito pouco falasse, seus
gestos e olhares eram de uma imensidão intrigante. Verdade seja dita, o cara tinha um olhar
misterioso e desse olhar não refletia o estigma que carregava por matar a sua
mãe no parto. A sua infância, apesar da maldade de muitas criancinhas que
faziam troça repetindo - “o bobão matou a mãe, matou a mãe o bobão...”, foi uma
infância mágica onde formiguinhas reclamavam com as flores do calor infernal
daquele verão. E o rapazinho feliz ouvia as formiguinhas e as flores nos
canteiros da praça reclamando do El Niño. Feliz, digo, até o dia em que a sua
segunda mãe, a tia que o criara, morrer de AVC. A partir desse segundo
infortúnio, uma nuvem de pesar invadiu o seu coração e nem formiguinhas e nem
flores ousavam interromper com história de aquecimento global a sua imensa dor
e solidão.
“Fala mais de você, amor... vai, fala,
amor...”- implorava a menina com uma vozinha doce de pêssegos . “Não tenho
muita coisa pra contar de mim... só que moro sozinho e sou só na vida,
baby...”- repetia o sujeito todo charmoso e cheio dos dengos.
Em um gesto delicado e inesperado, o rapaz
levantou-se do chão, onde eles banqueteavam-se, e puxou pelo braço a menina -
os dois de pé, as pontas dos cílios quase coladas. O cara assoprou um cacho de
cabelo castanho dos olhos de sua musa e perguntou - “por que você tem o olhar
tão triste?” A menina desvencilhou-se dele, foi até a mochila, tirou uma toalha
e respondeu com outra pergunta - “onde é o banheiro?” Como se fosse difícil
encontrar uma porta dentro de um cubículo daquele. O cara apontou com o dedo
pra única porta que existia. Ela beijou-lhe o rosto, entrou no banheiro, deixou
a porta aberta e abriu o chuveiro.
O poeta mordia os lábios de felicidade
achando-se “o cara”, enquanto o deus Apolo sofria terrivelmente de ciúme: a beleza
de uma musa de um mortal é dilacerante aos deuses invejosos, sobretudo tomando
banho e dando pulinhos.
A pequena devia ter no máximo 26 anos: os
seios apetitosos, sem exageros, os braços de pelugens oxigenadas de nascença,
as pernas delineadas e rígidas de bailarina, as panturrilhas de uma passista de
frevo e uma bundinha de ninfeta branca sem marcas de biquíni. Pendurada ao
pescoço a menina carregava uma medalha de São Bento. Ainda tinha uma tatuagem
na nuca: uma flor vermelha aberta, mil tentáculos, carnívora.
O cara babava e Apolo também [e com mais
volúpia]. Ambos admiravam aquela natureza vivíssima tomando banho - de vez em
quando, a mocinha se afastava do chuveiro, olhava pro cara e piscava o olho. Voltava
pra debaixo do chuveiro. E o deus Apolo agonizava-se de ódio do mortal e de
paixão pela musa estonteante.
Apesar do feitiço e deslumbre da pequena,
o sujeito pensava - “por que será que a minha baby não me respondeu?”
Encucara-se o sujeito pelo simples fato da menina não haver lhe confessado a
causa do olhar triste. Que tolice do sujeito, meu pai, diante de toda aquela
felicidade a lhe queimar as artérias carótidas.
Depois do banho, terminaram a garrafa de
vinho e decidiram passear pela cidade. A cidade do poeta era aquele tipo de
cidade de extremos próximos em que o nativo diz ao turista dando uma informação
– “senhor, suba como quem vai ao sertão e desça no rumo da praia”. Ou seja,
quem estivesse em uma barraca bebendo água de coco, ou uma cervejinha, bastaria
pegar um Pégaso e pouco mais de trinta minutos estaria no alto de uma serra
agasalhado - ou tocando violão ou ouvindo grilos.
A menina vestiu uma sainha. O rapaz
mostrou todo o seu amor por um vestidinho. A menina fez a vontade do seu amado,
trocou de peça e foram embora felizes e saltitantes. Chutavam tampas de
refrigerante nas calçadas e marcavam gols.
A pequena festejava jogando-se aos braços do seu poeta.
O cara deu pra filosofar silencioso. Um
dos seus ouvidos ouvia a menina falando sem parar excitada em uma cidade nova
ao lado do seu amor e o outro ouvido ouvia as suas próprias reflexões sobre o
instante epifaníaco que se prolongava em seu peito e por isso assustava-o -
“caramba, o que é isso... que loucura é essa... que loucura!” O rapaz estava
apavorado e tentava entender o batuque inefável do seu coração. Mas como adejar
razão sobre a magia de duas almas vivendo um tempo mágico? Se a mente
encontrasse o fio da meada, o encanto viraria pó, vapor, água de temporal
debaixo da ponte. A cabeça do cara não entendia aquela menina - um mar de
mistérios e um céu de doçura. E espantava-se, sobretudo, como ela havia chegado
à sua vida. Há muito tempo julgava-se um sujeito morto e enterrado. Uma carta
fora do baralho do suposto pôquer da felicidade humana. Um pária. Aquele de
quem os deuses gargalham quando nasce e acendem um charuto e bebem um conhaque
felizes pela desgraça providencial desse tipo de espécie humana.
“Amor, vamos à praia?” - dengosa sussurrou
a menina. Num cantinho isolado, deitaram-se na areia e de cabeças coladas
admiravam as estrelas. “Você não me respondeu...” – começou o rapaz. A menina
balbuciou deitada - ”oi? quê?” Ele subiu um pouco a cabeça e desceu seu rosto
pra menina que agora tinha dois olhos inquiridores no lugar das estrelas.
“Baby, sobre a tristeza do teu olhar...” - concluiu o rapaz. A menina deu
um pulo - “merda! puta que pariu! que merda!”
Inacreditável, amigos leitores, como aquela
menina de voz tão suave, uma verdadeira lady, aquarela de invejável beatitude,
falasse tais palavrões. O cara teve um treco. Engasgou-se com o próprio espanto
e medo. A menina não parava mais - “porra, grilado com essa merda!” O cara
recuperou a voz e atitude de homem - “não grite!” A menina exasperou-se - “como
não gritar se tu tá gritando, porra!”, “lava essa boca, mocinha!” – devolveu o
rapaz.
Do primeiro batismo desse casal
lembram-se? Foi aquele beijo com fumaça quando dividiam um baseado. O segundo
batismo, eis agora: a primeira briga dos pombinhos.
A menina afastou-se em direção ao mar e as
ondas beijavam os seus pezinhos [vejo que ela tem em volta do tornozelo
esquerdo uma pulseirinha de palha amarrada com três nós]. Ela segurava suas
sandálias. Nossa, que menina linda: a brisa do mar batia-lhe no rosto e a cada
uivo das ondas ela fechava os olhinhos e os seus cabelos dançavam reggae
levados pelo canto das sereias.
A inveja pairava no ar. As sereias roíam
as unhas enciumadas com a presença daquela menina na praia delas e Apolo
[novamente Apolo] chorava de emoção embriagado do misterioso devaneio que ataca
os homens sensíveis, sejam mortais ou deuses. Apolo sentiu no peito uma vontade
insana de fazer churrasquinho do cara de tanto ódio. Mas conteve-se, e até se apiedou
do sujeito deitado na areia da praia chorando qual um bebê desencantado das
fadinhas.
Depois de alguns minutos, o poeta sacou
que a menina não viria ao seu encontro, foi o poeta até a menina, enlaçou-a por
trás, beijou-lhe a nuca, bem na tatuagem de flor aberta vermelha carnívora, e
pediu perdão. Pronto, o cara estava na mão daquela menina. Havia escrito sua
sentença de morte. Paixão e dependência. A cabeça ostentada na bandeja de prata
de uma rainha tirana.
“Eu que peço desculpa, meu amor, fiquei
nervosa... sabe, minha vida não é tão maravilhosa... desculpa, meu amor...” A
menina disse aquelas palavras com lágrimas no rosto. O cara também chorava.
Abraçaram-se e rapidinho aquela outrora discussão de xingamentos chulos deu
lugar a uma esfregação libidinosa de corpos febris na areia da praia deserta.
Unhadas, mordidas, sussurros, gritinhos,
enlaces de pernas e dança de quadris: o ritual da parte dela - e dele via-se na
alma uma tropa de sertanejos sedentos de gozo marchando sobre a terra cálida do
corpo de uma fêmea. Dessa tropa de sertanejos, caros leitores, lembro-me de
quando eu era adolescente, nas colinas do mediterrâneo, e aos primeiros sinais
de masculinidade [a testosterona explodindo no meu intestino] chutei a porta do
quarto da minha serva e rasguei-lhe a túnica e meti na sua gruta, escondida por
um matagal, meu falo de lobisomem. Eu era um lobisomem adolescente. Mas a minha
história é insignificante, voltemos ao casal de pombinhos.
De manhãzinha, os primeiros surfistas
encontram aqueles amantes nus e abraçados. Uma cena tão angelical que um dos
garotões despertou o casal com uma voz de anjo aconselhando-os a se vestirem e
darem o fora, pois uma anciã asiática que fazia Tai Chi Chuan chamara a polícia.
Deram um pulo os apaixonados e às gargalhadas vestiram-se do que as sereias não
levaram e pegaram o beco. Sumiram na fumaça dos surfistas. Antes, é claro, a
menina deu um tapa e beijou o rosto do seu bom samaritano. O rapaz também sorriu,
mas não aceitou o baseado nem beijou o rosto do surfista negro de cabelos
tingidos com água oxigenada.
O cara curtia Bob Dylan e a menina acordou
ouvindo “Just like a woman”. Caminhou na ponta dos pés a princesa e abraçou por
trás o seu poeta [que fazia um cafezinho com o semblante de quem prepara um
desjejum pra beija-flores]. “Amor, você é um sonho...” Sussurrou a pequena ao
ouvido do rapaz. O cara pensou em dizer a mesma frase, palavra por palavra -
calou-se reflexivo. O sujeito tinha medo - incutiram-lhe no espírito, quando
ainda era um rapazote, que homem que fala de amor pra uma mulher perde para
sempre o amor e a mulher. O cara não era supersticioso. Mas olhando aquela
menina - um sonho de virtudes e de beleza - bom não duvidar dos fantasmas da
sua mocidade e melhor ficar de bico fechado sem dar chances para vodus.
O sujeito recordava muito bem da única
mulher com quem vivera a ilusão de um amor eterno - e a danada fugiu com um
colega seu de trabalho, coincidência ou não, justamente após ele ter falado da
pureza e exuberância do amor. A mulher em questão ouviu todo o seu lenga-lenga
de boca aberta e de olhos arregalados. Minutos depois, a dama caiu fora tão
apavorada daquele conto de fadas quanto um gato no meio da rua que se assusta
com a buzina de caminhão. Nunca mais se teve notícia. Nem da mulher que fugiu
com o seu colega de trabalho nem do gato que se assustou com a buzina de
caminhão.
Ao encher de água o depósito da cafeteira
e ajeitar as pontas do filtro de papel pediu pra que a menina pegasse o pote de
café. A menina sorriu de felicidade, como se fosse pegar no alto da montanha um
lírio raro para ofertar ao seu amado.“Onde está o café, amor?” - dengosa
perguntou a menina. Na sua frente, sobre a mesa, sua tonta. Diria eu. Mas o
cara sorriu e disse com a voz mansa de um bobão apaixonado e apontou - “aí,
baby, pertinho....”
O cara não conseguia mesmo pôr as colherinhas
do pó de café dentro do filtro de papel. A menina não parava de beijar-lhe o
pescoço e a lhe morder a orelha e sussurrava - “ouviu, amor, o que eu disse...
ouviu? você é um sonho... um sonho...” O rapaz tremia, arrepiava-se, suava,
tinha calafrios. Não aguentou, virou-se, pegou a menina pela cintura. Eis outra
lírica cena de sexo delicioso e explícito, dessa vez no piso de cerâmicas
brancas do quitinete.
“Ué, estão batendo na porta, amor?!” -
perguntou a mocinha com ar de espanto. O cara apenas se levantou do chão,
enrolou-se em uma toalha e foi ver quem era. “Por favor, todo mundo está
ouvindo a pouca vergonha...” - sussurrou dona Teresa, a proprietária do
quitinete, com um olhar de puritana justiceira ao ver o cara de toalha em
volta da cintura. “Desculpa, dona, por favor, desculpa...”- suplicava o rapaz.
“Logo o Sr. por quem eu tinha tanta consideração...” - insistia na advertência
a proprietária. O cara pediu mais uma vez desculpa, pela terceira vez, e disse
que esse fato jamais aconteceria de novo. A fim de amenizar o péssimo humor da
dona do quitinete, pagou o mês que ainda não havia chegado ao fim e tudo ok.
Dona Teresa retirou-se com cara de pouquíssimos amigos. Diria eu,
furiosa. Certamente a dona do quitinete arrastava asas pro rapaz e aqueles
gemidos acabaram com a sua esperança.
Enquanto o rapaz morria de pedir desculpas
e mais desculpas, a mocinha já estava no banho com o seu sabonete líquido e seu
shampoo hidratante. Da nuca da menina espumas caíam pelas costas, desciam pela
espinha dorsal até o estreito da divisão das nádegas e no final da travessia
faziam uma curva e molhavam uma cavernazinha de pelugens douradas do seu sexo
visto por trás.
A imagem deslumbrante da moça debaixo do
chuveiro poderia causar sérios distúrbios a quem fosse normal ou curar de
qualquer insanidade um louco solitário. Apolo, que nunca foi um deus normal
tampouco um louco solitário, aproveitava-se das prerrogativas de divindade olímpica
e mais uma vez estava lá espiando aquele arroubo de sonhos.
“Baby, quando tu tá gozando grita muito
doida... rsrsrsrs... a dona do quitinete reclamou... rsrsrs”. Havia um longo tempo
em que o cara não sorria assim. A última vez foi quando ganhou no seu
aniversário um livro de Neruda “Confesso Que Vivi”, presente de um brother mano
de guerra assassinado em uma discussão no campus universitário da capital entre
quem era o mais foda, se Heráclito ou Nietzsche. O brother mano de guerra
morreu pelo primeiro e hoje em dia nem Heráclito nem Nietzsche cuidam das
flores do seu túmulo.
O brother mano de guerra [além de seu mestre
indiano, tutor beat e irmão mais velho] foi o seu único amigo desde a
adolescência. Muitas vezes, ocupava até o lugar de seu pai do qual nunca ouviu
falar nem o nome. Ao perder a mãe no parto, cresceu sob a ameaça de heresia caso
perguntasse sobre o pai que fugira ao engravidar a sua progenitora. A sua tia,
a mãe que o criou, era de um silêncio jurídico ácido, feroz e incontestável de
um Tribunal Divino. E o noviço aprendeu a esquecer o mistério do homem que emprenhara
a sua bela mãe ainda bem mocinha.
Tempos difíceis aqueles de rosto cheio de
espinhas e de apatia digna de lagartixa debaixo de uma sombra de oiti. As
meninas odiavam sujeitos como ele [creio que ainda hoje odeiam], davam-lhe as
costas ou riam quando apressado com a marmita na mão o rapazinho atravessava a
praça principal.
Queridos leitores, um caso pitoresco e
vexatório veio-me agora à mente: a manhã em que o rapazinho ao atravessar a
praça da catedral a tampa da marmita caiu e saiu rodando pelos bancos dando
curvas inacreditáveis, como se guiada pelo sobrenatural, e o rapazinho correndo
atrás e todo o mundo, principalmente as meninas mais lindas, gargalhando.
Naquele dia, o rapazinho pensou seriamente em pular na frente do trem. E que os
seus pedaços de carne e ossos fossem lançados à praça da Sé pelos canteiros, aos pés das árvores de oiti e dentro da fonte
luminosa em um domingo após a missa.
Pouco depois da adolescência, dos dezoito
aos vinte e dois anos, o tempo continuava tenebroso e o rapazinho, já homem
feito, tentou realizar seu velho sonho - o suicídio. A morte que ganhou foram
cicatrizes róseas de uma lâmina de barbear enferrujada no pulso esquerdo. Para
não fugir do clichê, o sujeito também experimentou de tudo: álcool,
comprimidos, maconha, cocaína e por fim, aos vinte e dois anos, mastigou uma
bandinha de ácido. Conseguiu apenas fama de louco, além de feio, covarde e sem
graça. Em outras palavras, um bosta fracassado.
Ao relembrar todo o inferno da sua vida,
natural então que o cara levitasse de encanto a olhar aquela menina no banho
cantando Legião Urbana. “Tire suas mãos de mim Eu não pertenço a
você Não é me dominando assim Que você vai me entender Eu posso
estar sozinho Mas eu sei muito bem aonde estou Você pode até
duvidar Acho que isso não é amor. Será só imaginação? “
O cara não perdia uma oportunidade para
suas reflexões paranoicas de vítima. Começou a analisar os últimos versos da
letra de Renato Russo - ”Acho que isso não é amor. Será só
imaginação?” Refletia o sujeito - “por que ela canta
essa música? será que ela não me ama mais e já está pensando em cair fora?”
Diria eu, dane-se, seu patético! Mas a menina, um anjo, pareceu ler a mente e
ouvir o pensamento do sujeito e do banheiro lançou-lhe um sorriso e gritou -
“essa música é linda, mas não é a nossa música, ouviu, amor?” O cara
assustou-se com a natureza telepática da menina cutucando sua mente doentia -
“ah, tá, entendi, baby... e qual seria a nossa música?”
A menina saiu do banheiro nua, nem sequer a toalha enrolada na cabeça, molhando o piso de cerâmicas brancas. O cabelo da menina era
castanho igual à cor dos olhos, algo raro - olhos e cabelos de uma mulher da
mesma cor. Molhados aqueles cabelos pareciam mil braços de sedução pedindo que
fossem puxados naquela famosa posição feminina de quatro. É bem certo que o
cara tarado, taradão, taradíssimo, tinha pensado nesse deleite. Porém, ao mesmo
tempo, as barrigas dos amantes roncaram. Gargalharam. Afinal desde que chegaram
da praia, melhor, depois que a menina chegou da viagem, o casal de pombinhos
ainda não tinha comido arroz com feijão. Uma comida com sustância.
“A nossa música, amor, nós vamos descobrir
com o tempo...” - sussurrou a menina ao sentar-se no colo do sujeito e beijou-o
tão ternamente, juro, amigos leitores, que me vieram lágrimas.
No exato momento em que o rapaz apertava o
cadeado do portãozinho do quitinete pra sair, dona Teresa apareceu vestindo um
shortinho de malha e camiseta do Botafogo. Era uma senhora enxuta no auge dos
seus cinquenta anos e as formas das suas coxas indicavam que a senhora malhava e
que ao alugar o quitinete pro rapaz passou a ser ainda mais assídua na academia. Olhou pro sujeito
com o cenho franzido e olhou pra menina com umas presas de fêmea pit bull
indócil.
Na calçada a menina gargalhou e o cara
apreensivo olhou pra trás temendo que a dona do quitinete tivesse ouvido a
gargalhada da flor do cerrado. Sim, aquela menina era uma flor do cerrado. Com
o tempo, amigos leitores, vocês saberão o porquê de “flor do cerrado”. Agora o
importante é matar a fome de batalhão dos pombinhos. Se lhes surgisse uma
gazela, correriam atrás, pegariam-na pelo pescoço e devorariam a presa sem
molho e sem farofa.
Entraram em um boteco. Segundo o cara, a
comida caseira simplesmente ma-ra-vi-lho-sa. Assim, soletrando, que o cara
convenceu a menina, a flor do cerrado, a entrar naquela espelunca. A mocinha entrou,
pediu uma água com gás, o cara uma cerveja e ficaram trocando olhares sedutores
que só exalavam sexo.
Taxistas, mecânicos, pinguços, vendedores
de loterias, aposentados, catadores de papelão e latinhas, sem exceção,
sobretudo o seu Pedim, dono da respectiva espelunca, perceberam no ar aquela
atmosfera de volúpia. E não desgrudavam os olhos dos amantes.
Enfim, a iguaria. Prato feito. A mistura
vinha separada em uma tigelinha duralex. O cara pedira galinha à cabidela; a
mocinha, bife. O prato feito era generoso com porções vastíssimas de arroz,
feijão, macarrão, farofa e verdura. Era um prato de peão - alta e íngreme montanha. Motivo pelo qual a
mistura vinha à parte. “Creio que esse prato aí é mais elevado que o Everest...”
disse a mocinha, apontando para o prato, às gargalhadas.
Devo esclarecer que a menina deu uns tapas noutro baseadinho antes de sair. A flor do cerrado adorava aquele cigarrinho que abria o seu apetite e fazia com que dormisse tão serena. Uma vez a mocinha misturou com vodka e vomitou uma meleca verde e outra vez misturou com cocaína e perdeu o rumo de casa.
O cara tentava acalmar a flor do cerrado
da crise de risos preocupado com os frequentadores do Bar & Restaurante O
Seu Pedim. Vai que algum cliente cismasse que era com ele aquele deboche todo
da menina? Não adiantava, a menina ria, ria, ria sem parar. Chorava de tanto
rir. Uma comédia. E justo naquele momento de riso frouxo, para desespero do
rapaz, e mais gargalhadas da menina, entrava cada figura: primeiro um senhor calvo
de óculos escuros, cheio de pulseiras, vários colares de “prata” que ao pedir
uma pinga ouviu-se a sua gagueira; depois uma cigana de bigode vendendo bonecas
de pano e alegando que eram mágicas e choravam ao anoitecer; ainda teve um
terceiro, albino, que já adentrou o recinto todo serelepe sorrindo com uma
dentadura na mão - a julgar pela boca desdentada era sua a dentadura.
Imaginem, queridos leitores, toda essa
presepada em um mesmo recinto diante de uma pobre menina que já estava a ponto
de desmaiar sem fôlego de tanto rir. Imaginem.
Foi preciso que seu Pedim se intrometesse
naquela doideira de risos da flor do cerrado. Com o semblante fechado inquiriu
- “a moça tá rindo de quê? Não gostou de minha comida? Pensa que babado é bico,
é?” A menina não podia explicar ao dono do boteco que não era culpa dela, mas
do bagulho federal que a mocinha tanto amava e trouxera de sua cidade escondido
dentro de um bolsinho secreto na sua mochila de couro sintético. Por respeito,
a menina conteve-se, pediu desculpas e, educadamente, experimentou do bife.
Adorou. E bem depressa deu cabo da montanha do prato feito e da mistura na
tigelinha duralex. Lambeu os beiços e pediu um cafezinho.
Chegaram a uma pracinha e o cara deitou-se
com a cabeça no colo da menina. Quem os via de longe torcia o nariz. Para o
sujeito torciam por ser velho para a mocinha. E torciam para a florzinha do
cerrado por ser ela um mimo de juventude para aquele velhaco. Velhaco? Se
Bukowski ouvisse o pensamento daquele povo preconceituoso quebraria os dentes
deles e depois tomaria um trago. Certamente no boteco do seu Pedim. Bukowski
adorava uma espelunca.
Regressando aos pombinhos, o cara criou
coragem e começou a falar -“ baby, meus
colegas de trabalho são uns cínicos, querem ver a minha caveira... só por que
eu escrevo... sabe, já publiquei uns livros...” Diria eu, e daí? Ganhou o
Pulitzer? O Jabuti? Mas a florzinha do cerrado era um anjo e exclamou com uma
voz suave de maracujá - “como?! ah, eu quero um autografado!” O cara não calava
mais a boca, continuou - “meus colegas de trabalho são uns babacas... sabe,
baby, qualquer dia desse meto bala...”
A menina bocejou. Aquele papo de
lamentações fúteis com a cabeça sobre seu colo não tinha nada a ver com a
exuberância da praça – passarinhos se equilibrando nos galhos das árvores de
oitis, crianças nos canteiros brincando de triângulo e bola de gude, dois cães
um cheirando o traseiro do outro, beatas entrando na igreja, um mundo de coisas
acontecendo e o cara lá com a cabeça no seu colo se martirizando por tolices.
“Sabe, baby, não gosto de ficar entregando cartas e embrulhos de casa em casa, em
condomínios e seus porteiros desgraçados, fugindo de cachorro e de ladrão... um
saco!” – continuava a ladainha o sujeito. A menina cansou e disse - “por que
você não muda de vida?” O cara pulou do colo da menina tão depressa que
desarrumou a florzinha do cerrado que naquela hora estava vestindo uma
minissaia jeans. O falastrão ajeitou um dos cotovelos sobre a coxa da menina e
falou qual um cético pedante - “Já tenho 44 anos... não tenho mais esperança
nem vontade pra realizar sonhos...” “Então não reclame da vida que tem, ué...”
- rebateu irônica a florzinha do cerrado. O pateta percebendo o gênio da
mocinha perguntou-lhe - “qual teu signo, baby?” A florzinha do cerrado sorriu e
respondeu moleca - “sou leonina, amor...” Deixou a boquinha entreaberta de onde
brilhavam verdadeiros marfins e pérolas.
“Com esses dentes, meu docinho, pode me
matar de mordidas e comece as dentadas pelo meu coração...” Pensou o cara
extasiado. Ficou uns cinco minutos hipnotizado olhando aqueles dentes, depois
continuou - “baby, você trabalha em quê?” A menina deu uma gargalhada. A flor
do cerrado gostava de gargalhar e, confesso, eram gargalhadas estonteantes e
naturais. “Amor, prestou atenção que é a primeira vez que a gente conversa
sobre trabalho? No face a gente só curtia poesia...” - respondeu a menina do
seu jeito.
A menina estava certa, o casalzinho a
partir do instante em que ficaram íntimos na internet só falavam de Leminski, Drummond,
Quintana, Fernando Pessoa e outras pencas de poetas. Nunca tiveram um papo
enfadonho. A florzinha do cerrado não se interessava por títulos, conta bancária,
vida social e econômica do seu poeta. Às vezes, muito distante, o rapaz apenas se lamentava por não
mais existir aquela aura do antigo carteiro - um mito de amarelo que entregava
cartas perfumadas de saudades e reencontros e cartas sombrias de dor e
desespero. O sujeito, na verdade, guardava um segredo: gostaria de ter sido
diplomata por um tempinho e boêmio até o fim da vida igual ao poetinha Vinicius.
A sua vida, no entanto, era outra: sem canções, sem rodas de amigos, sem amores
e sem boemia. Até a sua dor era apática e, decerto, não teria a coragem de
Rimbaud para traficar armas.
A florzinha do cerrado caía em um silêncio
profundo sempre após suas gargalhadas. Sua mente divagava e a mocinha parecia
não estar onde estava. O cara, com seu complexo costumeiro, avexou-se - “te
cansei, baby?” “não, amor...” - respondeu a mocinha ainda com o olhar perdido
vendo um saco plástico levado pelo vento. “Se te cansei, desculpa, tá?” -
o cara insistia. “Foda!” - gritou a menina. Queridos leitores, tirem as
crianças da sala, pois mais uma vez se inicia o vocabulário chulo da florzinha
do cerrado.
O cara ficou amarelo e a voz trêmula -
“vai começar, baby?” A menina estava completamente fora de si - “começar o quê?
puta que pariu!” O cara não suportou mais aquela grosseria e falou - “queres ir
embora? compro agora tua passagem...” - disse o sujeito com uma voz de jogador
de xadrez. A menina zangou-se - “vá à merda, seu merda!” O cara continuava
impassível, sarcástico - “baby, queres que eu compre a tua passagem de volta?”
A florzinha do cerrado ao entender o jogo foi ainda mais fria e irônica - “com
que grana? vai pedir emprestado ao senhor do boteco ou vai pedir à senhora do
quitinete, hein, seu pé-rapado?” Essa foi de doer e esmagar. O maracanã lotado exclamou -
“Uuuuuuuuuuuu...” Mas o cara, exímio jogador de xadrez, mostrava-se
imperturbável. Cruelmente, piscou o olho -“baby, tens certeza que não queres
que eu compre a tua passagem de volta?” A menina não suportou e deu-lhe
uma cuspida no rosto. Os dois ao mesmo tempo olharam-se aterrorizados - espanto
e medo. A flor do cerrado chorava pelo ato desprezível de haver cuspido no
rosto do seu amado e o cara também chorava por merecer aquela cuspida. Não
disseram absolutamente uma palavra. Abraçaram-se. E choraram desesperados e
soluçaram por mais tempo.
Os pombinhos, depois de mil juras de amor
e súplicas de perdão, passaram todo o entardecer na praça brincando de
pega-pega pelos canteiros. Cansaram e deliciaram-se com sorvetes. Dividiram
pipocas na boquinha. Compraram DVDs piratas e fizeram caras e bocas, de tão
sensíveis e manhosos, para escolher os filmes. Ao crepúsculo, enfim,
quedaram-se agarradinhos ouvindo encantados a balbúrdia das andorinhas nas
copas das árvores. Só despertaram-se do alumbramento quando os sinos da igreja
bateram seis horas, Ave Maria. Deram-se as mãos e retornaram ao ninho de amor,
no caso dos pombinhos, o quitinete de dona Teresa.
Lá estava a ninfeta no banho outra vez.
Não sei ao certo o que a flor do cerrado sentia: se muito calor, ou se tinha um
firme propósito de matar o seu poeta do coração e enlouquecer Apolo [que
transitava entre o Olimpo e o quitinete ofegante e de rosto vermelho só para
admirar aquela musa mortal tão bela e, por tabela, odiar o tal poeta].
A mocinha adorava ficar com os olhos
fechados e os braços abertos debaixo do chuveiro assemelhando-se a uma bruxa no
alto do penhasco na hora do sacrifício. A florzinha do cerrado tinha duas
covinhas, uma em cada face. Esqueci-me de mencionar esse seu sinal de beleza.
Mesmo que a pequena não sorrisse, os dois furinhos nas bochechas eram notados e
tinham como intento enfeitiçar os seus fãs - “admirai-me, viajantes, admirai-me
que vossos segredos hão de ser enterrados nas minhas covinhas...” era o que pensava
a pequena dos outros moços, sorrindo diabólica pro espelho, antes de conhecer o
seu poeta. No espelho do banheiro do quitinete do seu amor, a mocinha só
reparava em sua felicidade a brilhar em seus olhos de uma fenomenal
luminosidade castanha.
De noite, haveria na pracinha [a mesma
pracinha da cuspida e do encantamento amoroso] um show de jazz e blues. A
menina caprichou no visual: pulseiras e colares de sementes e pedras
semipreciosas, um brinco de pena azul, uma saia lilás longa bordada, sandálias
de dedo e um chapéu estilo dançarina de cabaré francês. O rapaz ficou
boquiaberto quando a menina pediu pra que ele abrisse os olhos - “pode abrir,
amor... e aí, como estou?” A florzinha do cerrado sorria maquiavélica. Naquele mágico
momento o sujeito definitivamente entregou a sua alma e seria escravo por toda
a vida. E pra selar o seu domínio sobre a alma daquele jovem senhor a menina [sempre
sorrindo] brincou movendo os braços e o pescoço em coreografia de break e
finalizou a gaiatice imitando Michael Jackson em seu famoso passo moonwalk.
Entre um e outro solo de guitarra, o cara
tentava impressionar a florzinha do cerrado explanando sobre a origem do blues:
Lead Belly, Sam Carr, Jelly Roll Kings. Falou ainda de Charlie Parker e da
história que seu fôlego vinha de um terceiro pulmão presente de um místico que
vivia em outro planeta. A menina estava sob êxtase e tudo que o carinha falasse,
mesmo que nem ouvisse direito e não entendesse bem, seria digno de
louvação. E o cara bebia frenético latinhas de cerveja e caipirinhas de limão,
gengibre e cravo e caipirinhas de caju e misturava os copinhos de plástico sorridente
e falante.
No final do show, houve uma entrada
apoteótica de uma banda cabaçal “irmãos Aniceto”. O cara pirou de vez. Arrastou
a menina pela mão até o meio da praça. O cara dançava entortando a espinha
dorsal, balançando a cabeça feito uma lagartixa, levantando os braços, gingando
com a cintura, dando saltos estilosos pra frente e pra trás. A florzinha do
cerrado achava aquilo uma cultura exuberante e esforçava-se para acompanhar o seu
poeta.
Quando a exibição acabou, o cara sob um
rompante de ébrio fugiu por alguns minutos até trazer um dos integrantes da
banda cabaçal do Crato. “Baby, veja, veja!” Parecia uma criança o maluco -
“Esse é o nosso legítimo bluseiro!” Estava embriagado o sujeito das mil
latinhas de cerveja e das sei lá quantas caipirinhas de limão com cravo e
gengibre e das de caju. A menina apenas sorriu e estendeu a mão pro mestre
cabaçal que pegou e não soltou mais a mão da pequena, enquanto o cara falava e
falava e falava - “sabe, baby, antigamente os tambores eram de pele de
bode... esticado na cabaça... entendeu, baby?“ Só então o tocador de
pífano interrompeu o delírio do cara - “ainda é de bode o couro do tambor, seu
moço, ainda é, oxente...” Todos riram - e a florzinha do cerrado, a honrar a sua expansividade
afetiva, soltou sonoras gargalhadas a ponto de tremerem os ninhos das
andorinhas. Naquela hora, furiosas as doces aves tentando dormir. Acordam cedinho
as andorinhas.
Desde o momento em que a menina pôs os pés
na cidade, o cara vivia em profundo enlevo. Sua mente, enfim, cessara com
aquelas tolas reflexões sobre felicidade. O sujeito até havia se esquecido da
sua maldição por ter matado a sua mãe no parto. O rapaz naquela noite de blues,
jazz e banda cabaçal, explodiu e falou do amor que sentia e abriu o seu coração
para a mocinha - a sua flor do cerrado.
Shakespeare segurando o seu próprio crânio
fugiu apressado correndo como o diabo corre fugindo da cruz, quando o cara
levado por um último arroubo antes de vomitar declamou - “a alma humana estará
salva enquanto houver a esperança do sonho/ que não demorem os suspiros do amor/
que não tardem os sonhadores...” Depois vomitou o bardo e desmaiou. Sobrou ao
mestre cabaçal, com ajuda da mocinha, levar o maluco aos trancos e barrancos ao
quitinete. E lá foram as três almas sob a lua cheia da cidade de serras e mar.
Os dois pombinhos acordaram tarde. A
florzinha do cerrado acordou tensa. O cara sondou - “você está estranha,
baby...” A menina não retrucou, ao contrário, beijou a cabeça do rapaz,
levantou-se da cama e pegou uma água e um comprimidinho para curar a ressaca do
seu amado. O cara sentia um aperto horrível dentro do coração, ou pior, um
buraco horrível dentro do peito. Não era vergonha das sandices de ébrio da
noite anterior. O frio cadavérico que o cara sentia era medo. Medo de que a sua
flor do cerrado sumisse. Evaporasse de sua vida. Fugisse das falanges dos seus dedos
e linhas das palmas de suas mãos.
A paranoia da sua mente de novo surgiu com
toda a crueldade do Oráculo de Delfos que enlouquece os espíritos fracos quando
não seguem a prudência divina. “... não devia ter falado de amor... merda, a
minha menina vai embora... eu me mato... eu me mato...”
Que psicótico o rapaz, contudo a flor do
cerrado estava mesmo esquisita, misteriosa, melancólica e distante. “Amor, vou
te falar uma coisa...” - disse a menina ao entregar-lhe o copo d’água e o
comprimido. O sujeito de tão avexado e trêmulo quase não conseguiu segurar o
copo e o comprimido caiu no chão e rolou até meter-se debaixo da geladeira.
“Pode dizer, baby...” - a voz do sujeito
estava irreconhecível. A menina sentou-se na beirada da cama, pegou firme a mão
do rapaz, as duas, e falou - “amor, meu pai é aquele deputado envolvido no
tráfico de influência, corrupção, o diabo a quatro...”
Simpáticos leitores, devo um ajuste de
contas. Esclareço-lhes agora por que a menina é uma “flor do cerrado”, simples:
a menina nasceu em Brasília de onde partiu linda e feliz ao encontro do rapaz
que, naquele dia, largadão no aeroporto, esperava-a ansioso e morrendo de medo.
Voltemos ao casal, pois o tempo deles urge e urra.
”Aquele do desvio de verbas?” - perguntou
o cara com as faces lívidas e os olhos arregalados. “Sim, meu amor, aquele
monstro...” - respondeu a mocinha chorando. O cara, como ainda estava deitado e
a florzinha do cerrado sentada ao seu lado, fez um pequeno esforço e puxou o
rosto da menina contra seu peito. Envolveu a menina com a mesma candura que Dom
Quixote abraçara Dulcineia Del Toboso tantas vezes nos sonhos mais delirantes.
A mocinha sentiu-se apertada e segura e sorriu com os lábios molhados de
lágrimas tão tenras.
Os pombinhos iam se beijando, os cílios já
se tocando, quando bateram à porta, bateram é eufemismo, tentaram derrubar a
porta. “Ué, estão batendo na porta?” Diria eu - não, sua tonta, é um elefante
tocando trombeta. Mas o cara respondeu de fala mansa, um gentleman - “espera,
baby, já volto...” Abriu a porta e lá estava dona Teresa
pálida. “O que foi, dona Teresa?” – perguntou assustado o rapaz. A mulher não
respondeu. Pálida e muda atropelaram-na dois homens. Verdadeiros brutamontes.
“Ei, que é isso!” – o cara tentou impedi-los. Os brutamontes jogaram o poetinha
ao chão abrindo espaço para que entrasse um terceiro - elegante, terno e
sapatos à la Don Corleone. “Papai?!” – morreu de susto a mocinha.
Pois bem, vejam vocês, queridos leitores,
o tal político corrupto, o demônio em pessoa, chegara à cidade e não demorou
para saber do paradeiro da sua única filha - a florzinha do cerrado. “Minha querida, ah,
quanta saudade...” - sussurrou o político com um risinho cínico no canto da
boca. “Seu desgraçado! seu filho da puta!” - berrava a menina. O cara não
entendia absolutamente nada do que acontecia. Creio que vocês também não, meus
simpáticos leitores, passemos logo ao diálogo, antes, porém, abro um pequeno prólogo: a menina sabia muita merda sobre o pai, um dos chefões de uma
quadrilha poderosa do Planalto com várias articulações mafiosas, portanto, a pequena, a florzinha do cerrado, era uma testemunha bomba
ambulante, um arquivo vivo, uma ameaça. O pai pensava seriamente em fugir pra
um país do leste europeu e levá-la com ele, antes que a menina desse com a
língua nos dentes e alguém, outro político chefão-foda, temendo merda no ventilador,
mandasse matá-la e sumirem com o corpo. Ideia que já cogitavam.
“Pai, seu filho da puta, como o Sr me
encontrou? ah, pai, que merda!” – a menina estava arrasada e com a mesma boca
suja de sempre. A dona do quitinete havia sido empurrada para dentro e
continuava lá encostada à geladeira com um semblante de morta-viva. E muda. Os
brutamontes cercavam o cara que tinha se levantado e tentava a todo custo
chegar à sua musa e abraçá-la.
“Filha, você sabe que não pode ficar no
Brasil... vamos, querida, pegue suas coisas e vamos...” Enfim, o cara berrou - “caiam
fora! fora! eu amo sua filha! amo!” Os brutamontes sinistros e o político
safado caíram na gargalhada. Dona Teresa continuava muda, mas os mudos sorriem
cruéis. O que fez a dona do quitinete com toda a sádica satisfação de uma
mulher que é trocada por outra.
“Mande esse idiota calar a boca ou eu
mesmo meto uma bala no olho dele!” Aquele político devasso fazia parte, sem
dúvida alguma, da turma do mal. Percebemos alguém de energia aterrorizante pela
voz e a voz daquela criatura era de gelar a espinha. “Deixa ele, pai! ele não
tem nada a ver com sua ladroagem!” – gritou a florzinha do cerrado batendo o pé como se tivesse 9 anos e ainda fosse aquela princesinha adorada do seu painho.
A pequena tentava desvencilhar-se da mão
de seu pai que lhe segurava o braço. Até hoje, não sei como o cara
escapou dos brutamontes. Esbarrou na dona do quitinete. Chegou até a sua
florzinha do cerrado. Abraçou-a. Um abraço forte de São Jorge que mata dragões
e de Espártaco que derruba um centurião com um soco. Um abraço forte que
nada lembrava aquele solitário cheio de recalques e martírios. O cara abraçou a
sua menina como um Titã e beijou-a, apesar de toda aquela situação de perigo,
beijou a florzinha do cerrado com um romantismo piegas de filme de ator bonachão
de lenço branco em volta do pescoço e uma cabeleira esvoaçante.
“Que merda é essa, seu puto!” O político
deu um solavanco no cara e menos de um minuto os brutamontes já tinham afastado
o apaixonado da sua amada. O político corrupto, idealizador de falcatruas,
puxou do bolso do paletó uma pistola .45. Esfregou o cano do trabuco no nariz
do cara - “quer morrer, seu filho de uma puta, quer morrer?" O rapaz tentou tirar a arma do pai da
menina e um tiro escapou pegando o peito de um dos brutamontes. Pronto, meus doces
leitores, agora não tem jeito de dar meia volta e inventar outro fim menos
trágico. O pai da florzinha do cerrado olhou pro cara como Drácula olha para
um padre sem fé e acuado - “seu puto! vai morrer!" espumou o político facínora. “Deixa ele, pai!” - a menina chorava
copiosamente.
O cara altivo, com olhos de touro
enfurecido, enfrentava o pai da menina e até ousava partir pra cima. “Dê um
passo, seu puto, dê um passo que te mando bala!” – ameaçava o político escroto.
A filha do político verme não suportando aquela situação desesperadora, e
imaginando a desgraceira que seu pai podia fazer com o seu poeta, arqueou os
ombros, suspirou e jogou a toalha - “tá bom, pai... vamos... vamos...”
O rapaz tombou de joelhos aos pés da
menina - “não, baby, não!” O político patife deu-lhe um chute no estômago -
“cai fora, seu rato!” Não se conteve apenas com um chute, deu mais outro e
outro e outro. Não demorou, estavam o pai da menina mais o último brutamonte
machucando de verdade o sujeito. A menina tentou impedir e acabou levando um
safanão pesado do próprio pai.
O poeta em transe ao ver o asqueroso esbofetear
o seu único amor, mesmo esfolado, criou forças, sabe-se lá de onde e saltou
sobre o político mau-caráter e roubou-lhe a arma. Com a pistola .45 na mão
tentou pela última vez - “vão embora... agora! ou disparo... olha que aperto o
gatilho...” A voz trêmula não convenceu o brutamonte que partiu em sua direção e levou um tiro na barriga - “ui, puf, ui... o merdinha me acertou...”
Meus leitores amigos, um balaço de .45 na
barriga é lancinante, de modo que “ui, puf, ui... o merdinha me acertou...” era
tudo que a vítima podia dizer. E disse e tombou. Agora são dois.
“Ah, meu amor, não, não...” A florzinha do
cerrado abraçou seu amado “Eu matei o canalha... eu matei... matei...” -
murmurava o cara em estado de choque. Aproveitando-se desse vacilo, o pai da
menina pegou de volta a pistola e meteu bala.
Dona Teresa amou à primeira vista o homem
solitário de 44 anos. Alugou-lhe o quitinete e na entrega da chave o rapaz
abriu dentro do coração da mulher uma imensa porta para o encantamento. Dona
Teresa sempre esteve perto do poeta: lavando-lhe e engomando as roupas,
oferecendo-lhe todas as noites um pedacinho de bolo, pedindo-lhe emprestado um
livro para nunca ler, perguntando-lhe como estavam suas finanças, oferecendo-se
solícita e leal em todas e quaisquer situações. A mulher constantemente dava
mostras do quanto gostava do bardo, mas o sujeito não via. Era cego ao girassol que
sorria a um palmo dos seus cílios. Dona
Teresa sentiu seu sonho ruir no dia em que ouviu os gemidos e pelas
frestas vislumbrou a flor do cerrado nua e bela deitada no piso de cerâmicas brancas do
quitinete.
O pai da menina apertou o gatilho e a bala
da pistola .45 queimou na direção do cara. Dona Teresa, mártir, meteu-se no
meio e aparou a bala no peito para defender o seu homem. “Deus! não! não!” O
cara desesperou-se e a flor do cerrado ficou em silêncio apenas olhando para o
corpo da dona do quitinete. Não houve palavras de despedida. Dona Teresa apenas deu um longo suspiro e sorriu tristonha sem tirar os olhos do seu jovem senhor.
O pai da menina, o político pulha, moveu a
mão em direção ao cara. E dessa vez, somente a menina para pular na
frente da bala. “Agora tu morre, seu puto!” - vociferou o maldito.
Seu Pedim era coxo. Um tipo de
paralisia infantil. Sempre que arrastava a perna tremia-lhe o rosto e colado na
pálpebra do olho esquerdo também tremia um sinal. Parecia pelanca de galinha
com pelos pretos ao redor. Uma boa alma seu Pedim. Quantas e quantas vezes o
poeta almoçava de graça pedindo pro dono do boteco pendurar a conta e nunca
pagava. No íntimo, o cara sentia que seu Pedim gostava dele e em muitos
momentos jurava ver lágrimas dentro dos olhos do dono do boteco quando os dois
a sós, e animados por uma pinguinha, conversavam sobre a mocidade de um e a velhice
do outro. O rapaz, certo dia, quase ousou perguntar se o dono da espelunca
havia conhecido sua mãe. Nessas ocasiões, seu Pedim, temendo esse tipo de
pergunta, inventava qualquer desculpa e arriava os portões do boteco com a
perna paralisada arrastando todo o peso do corpo. O rapaz ajudava a boa alma e
jurava em silêncio que naquelas horas seu Pedim de fato chorava e o seu sinal
pelanca de galinha tremia bem mais que o de costume.
A florzinha do cerrado viu seu pai apertar
o gatilho e também viu seu Pedim aparecer na porta com uma escopeta e também
apertar o gatilho. Não se sabe qual das balas queimou primeiro, mas sabemos que
um tiro de escopeta são vários estilhaços tórridos fazendo mil buracos e um
tremendo estrago no corpo de quem estiver no meio. Nesse caso, o corpo do
político ladrão e bestial. “Pai!” - gritou a menina. “Seu Pedim!”- gritou do
outro lado o rapaz. Os gritos dos apaixonados fizeram tremer as paredes do
quitinete. Tanto o mau político quanto o espirituoso dono do boteco tombaram de
imediato. Seu Pedim havia se arrastado até a cama e na quina encostara a nuca.
Tinha um rosto puro e os olhos brilhavam de contentamento, nem parecia que
estava vendo a morte de perto. O rapaz ajoelhou-se diante do dono da espelunca.
Chorava. “... meu Deus... a bala era pra mim... pra mim...” O dono da espelunca
com uma mão apertava o ferimento estancando o sangue e com a outra mão tentava
calar a boca do rapaz. Conseguiu. E com a voz de um homem que dá seu último
suspiro, balbuciou – “fi... lho... sou... seu pai...” Fechou os olhos. A perna paralisada, enfim, descansou.
A menina deixou seu pai morrer à míngua
em companhia dos seus demônios. Abraçada ao seu amor, despedia-se de seu Pedim
benzendo-se três vezes. O rapaz respirou fundo.
Beijou a testa do dono do boteco. E antes que lhe viesse qualquer outro sentimento de pesar, teve medo que um dia tivesse aquele mesmo sinal pelanca de galinha
do seu pai.
Fim
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