quarta-feira, 25 de julho de 2012

fim do último prelúdio

Por favor e misericórdia,
não me diga nenhum poema
nem pegue minha mão e escreva.

Faça-se cego e me cegue também.
Dê as costas ao jardim do prédio
e das praças.

Não me traga suas flores
e as pontas de cigarro.

Chega de versos, seu moço.
Desmonte o relógio da cozinha.

Dentro do engenho
há uma mosca morta.

E ninguém sabe dessa proeza.
A mosca morreu marcando o tempo.

além dos nossos ossos e da nossa carne

Como acreditar em sonhos
se os meus são tortos e ralos.

Quanta diferença dos sonhos do meu tataravô
que bebia e fumava uma parada lisérgica
para vislumbrar se haveria boa colheita

ou para descobrir onde estava escondida
sua filha caçula depois que um estrangeiro
um estrangeiro sem escrúpulo a desvirginara.

Os antibióticos que bebo são uma tolice.
Não me causam visões e não me dão o dom da profecia.

Sequer consigo desvendar o mistério do desaparecimento
das minhas formigas que outrora eram multidões
de carnavais fora de época.

Já fiz vários testes a jogar pela casa
migalhas de pão e bolacha, colheres
sujas de doce de leite, taças de vinho.

Elas não aparecem.

Terei de apelar pro baú antigo.
Pros artefatos e substâncias místicos do baú antigo
cujo zelo meu avô confiou-me naquela tarde de sua morte.

Nunca vi de perto o que há de fato dentro do baú antigo.
Lembro-me, no entanto, das rugas na testa do meu avô
e da sua voz de oráculo sussurrando coisas
ao meu ouvido antes de morrer.

O que um poeta apaixonado por suas formigas não faz.
Pedirei licença a meu avô, bisavô e tataravô e logo
que caia a tarde pela sombra da janela do banheiro
abrirei o baú antigo e beberei e fumarei
as paradas lisérgicas.

Que eu não tenha um tipo de loucura sinistra
e pense que as formigas são meus dedos
e que meus olhos são os olhos
de girassóis.

o riso de Neruda

Juro que se eu fosse um jardineiro
plantaria uma roseira para Deus
e outra pra ti.

Como só escrevo versos,
então, são todos teus.

Deus não dá a mínima pros poemas.
Quando falo de Deus acredite apenas na imagem.

Deus por sinal é agora uma janela aberta
e ao mesmo tempo um barulho insuportável de motocicleta.

Juro que não farei mal a mim senão através das palavras.
Mas as palavras quando são cuidadas como cuido da minha sinusite
não fazem mal nem trazem desgosto para quem as planta no jardim.

Se eu fosse um jardineiro passava horas a fio
admirando o sol que bate no muro
e faz sombra pras formigas.

Se eu fosse um jardineiro não plantaria roseiras.
Escreveria versos com os pés dentro de um riacho.

Com os pés dentro de um riacho
seria outra história: seria eu
um pescador.

E nós sabemos que todo pescador
tem um laço íntimo com Deus.

Deus ama os peixes.
Mais que aos poetas.

terça-feira, 24 de julho de 2012

o êxodo dos microorganismos

Meu corpo não se defende dos sinais da velhice.
Meus olhos sabem que a visão momentânea é triste.

Penso que serei nada quando a morte bater no meu ombro.
Não direi coisa alguma nem ai nem ui creio que ficarei em silêncio.

Talvez uma tosse.

Os versos não serão os mesmos sem a presença do poeta.
Difícil acreditar que morrerei um dia depois de tantos versos.

Nada levarei nenhuma palavra.
A palavra é dos vivos.

Penso seriamente que a morte ao bater no meu ombro
ainda me dará uma chance para que eu fuja, fuja, fuja.

Para onde se meu quarto não é meu
e se meus objetos sonham com minha morte.

Minha xícara já me deu adeus.
Ganhei um novo par de botas.

As antigas apesar de loucas
mantêm uma seriedade de santa.

O poeta após escrever seus versos
não tem nenhum poder sobre eles,
dizem.

Eu tenho poder sobre eles.
Guardo-os em um lugar secreto.

E a morte sabe onde.
Mas ela é a minha melhor amiga.

Não estragará a surpresa.
A minha surpresa.

amoxicilina

Não digo que seja verdade o que planto no jardim
mas semente de mostarda tem sua importância
no palácio de um passarinho.

A próstata é uma glândula do tamanho de uma semente de mostarda
e vejam só que estrago ela faz quando cresce sem limite
dentro do saco.

Passarinho não tem um saco igual ao do poeta.
Por isso o passarinho mesmo na morte se sente o tal.

O passarinho tem outras glândulas.
Uma em especial se esconde
na base do seu cérebro.

O cérebro do passarinho
é igual ao do golfinho.

E vejam só que alegria eles esbanjam
quando se encontram bordados
no roupão do meu filho.

O golfinho me parece um falastrão.
Não posso esquecer entretanto
que foi ele quem me salvou
naquela noite em alto mar.

As ondas já tinham levado minhas botas.
As ondas já tinham levado as portas do meu quarto.

Mas eles, esses golfinhos falastrões,
pegaram-me pelas orelhas
e me salvaram.

Por falar do meu quarto
os cupins foram todos embora.

Gostaria de saber quem dá a ordem
para que eles comam portas e janelas.

De uma verdade eu desconfio:
As aranhas tiveram um papel importantíssimo.

Vejam só como elas estão gordas.
Gordas e felizes minhas meninas.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

sob tratamento

Meu reino [que não é pouca coisa]
por uma xícara de café bem quentinho.

A minha cafeteira me adora.
Nunca escondeu de mim seus suspiros.

Dentro do meu nariz há um outro nariz de tucano.
Escrevi hoje cedo que o tucano quando espirra
saem bolinhas coloridas das cores do seu bico.

Lembrei depois que o tubo de shampoo
também quando espirra joga pro alto
bolinhas coloridas.

O amor somente é importante
quando alguém vai até à cozinha
e traz pra gente uma xícara de café.

E o nariz de aborígene quando espirra
o que lança pro alto senão brincos
de javali?

Tenho três argolas do casco de javali sobre minha escrivaninha.
Também tenho alguns búzios e logo te direi, madame,
o que será da sua vida.

Para mim é muito fácil basta jogar os búzios com as argolas do casco de javali.
É um mapa espiritual que vejo diante dos meus olhos e já posso te adiantar,

madame,
que a sua vida sem mim será bem mais alegre.

Não se culpe nem pense em suicídio.
Afinal eu tenho minha cafeteira
e você seus cabelos.

domingo, 22 de julho de 2012

um passarinho bluseiro

Tem um passarinho de papo amarelo
na minha janela um tipo
que toca blues

e não se cansa
de assoprar sua gaita -

já lhe perguntei o porquê dessa alegria tão triste
ou dessa tristeza tão feliz e ele só me diz "bliu,
bliu, bliu"

Quisera fosse eu um cara que tocasse blues
pendurado nas janelas dos outros

antes porém de cada música
jogava o chapéu  pras moedinhas.

O passarinho de papo amarelo
não me pede coisa alguma
nem caju nem alpiste.

O negócio dele e me sensibilizar
lembrar-me de que tenho

um coração mole
e uma alma mafiosa

que ora mata,
que ora morre.

sábado, 21 de julho de 2012

Zaratustra é um sujeito bacana

O que fazer com o coração do poeta
em um sábado iluminado como este.

Cheguei à conclusão que o mais correto seria
que transplantassem o coração do poeta
ao peito de um rinoceronte.

O rinoceronte passaria a voar
e colher flores com os olhos doces.

O poeta, em troca,
passaria a andar feito um homem.
Com os músculos e pisadas de um homem.

Já vi um poeta andar feito anjo,
palhaço, monge, bandido,
mas nunca um homem.

O poeta tem medo de andar igual a um homem.
Então, baby, que ande o poeta feito um rinoceronte.

Pisadas cruéis a estraçalhar o jardim.
Um silêncio de amedrontar abelhas.

um bom sábado

Ah, essa vontade de saber das coisas.
Saber simplesmente do fundo do mar
o que sabem as baleias.

Em vão conversei com o profeta
sobre aqueles dias de exílio.

Tudo que Jonas me disse
é que na barriga da baleia
tinha de tudo: garrafas de uísque,
poltronas, mastros de corsários,
porcelanas, ouro e conjuntos de esmalte.

Mas nada de segredo oculto a ser revelado.
Nada de tábua sagrada ou sopro divino.

Ah, essa vontade de saber das coisas.
Saber o que sabem dos céus os pássaros.

Nem Ícaro que chegou tão perto da montanha encantada.
Tempo depois eu soube que não foi o sol seu grande inimigo.

Havia um pássaro sacana dentro da sua alma.
Certamente havia uma baleia sacana dentro da alma de Jonas.

Aliás dentro de todos os náufragos dos céus e dos mares
existe uma alma sacana plantada para nos enlouquecer.

E é loucura essa vontade de saber das coisas.
Bastaria que meus olhos se contentassem
com a roseira lilás na minha frente.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

telefonema

Para falar de amor tenho hoje
a meu favor uma rosa murcha.

Quem diria que há dois minutos
ela encantara uma legião de besouros.

Você sequer imagina quantas rosas murchas
eu lancei ao lixo ainda de ressaca e tão triste.

Era o corpo torto,
meu bem,

que ainda sentia
a dor do vinho.

A rosa murcha
em sua singular melancolia
não é o retrato da minha loucura.

A tristeza,
a minha pelo menos,
vem da alegria do sangue quente.

Depois,
que nunca se perca o costume,
brilha em meu peito a doçura da morte.

exercício de liberdade

Uma folha seca fazendo piruetas entra pela janela.
É um bom agouro -

preparo meus olhos e o silêncio
para os primeiros versos.

O poema tem seus truques
igual a uma velhinha que pensa
em morrer logo e nascer uma flor.

Mas a velhinha não morre
embora viva tombando
pelo jardim.

Que tem a ver folha seca
com uma velhinha moribunda
senão este ensaio de dramaticidade:

a folha seca que engana o poeta
com sua imagem repentina,

enquanto a velhinha
ilude Deus com sua morte.

terça-feira, 17 de julho de 2012

sinos do poente

O poema se faz mesmo quando não se deseja.
A gente olha pras paredes e ele está lá.

A gente abre a geladeira
e ele continua nos seguindo.

O poema é dono de si.
O poema é senhor do poeta.

O filósofo não percebe a hora de ir ao banheiro.
O filófoso pensa que é a vontade a soberana.

Mas é o poema que dita as regras da urina.
Também é o poema que dita as regras da sede.

um quase entardecer

para que tanto caminho, poeta
se tuas asas são de gergelim

e a cada passo os pássaros
comem de volta toda a trilha 

diz-me, poeta
quem te seduziu primeiro

se a lucidez
ou se a tristeza

para que tantos guerreiros
se a tua grande batalha
é íntima

lá dentro, poeta
onde só tu habitas

só tu fazes o fogo
e somente tu morres de frio

diz-me, poeta
quem és tu além
desse olhar inacabado

quem és tu, poeta
juntando teus ossos
fazendo um embrulho
de tua carne
e pele

que sobra de ti
senão os versos

e os versos além desse olhar
poeta, por ordem de quem?

os pássaros já comeram tua memória
e não há como buscar aquilo
que é fumaça

tua trajetória
vem da lama

os pássaros sob chuva
não dançam e não amam
a tua alma

poeta,
ah, poeta

diz-me qual o fuzil
que não treme

nas mãos
de um louco.

a brandura de um homem

despedi-me do mundo
sem fazer inimigos

assim como quem entra em uma casa nova
abre os braços, fecha os olhos
e sente uma energia boa

despedi-me do mundo
com os bolsos vazios

sem ouro, sem moeda
mas elegante, firme
e forte

despedi-me do mundo
correndo pelas calçadas

louco, louco, louco olhando pro céu
afinal é do céu que caem as coisas do mundo -

sementes de passarinho, folhas secas,
pipa sem rabo, raio, um pingo de chuva.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

uma garrafa de água benta

A verdade é simples -
não tem vestes
nem faces

não há caminho
debaixo dos seus pés
nem mestres que lhe segurem a mão.

A verdade é mansa
de uma ternura louca -

se nos embriagamos
perdemos seus olhos

e se acordamos sérios
ela gargalha, ela desdenha.

A verdade é uma permanência
que enfraquece as escamas
e cria mofo nas asas
de uma serpente.

Um suspiro sem lembranças.
Uma memória vaga e ardente.

A verdade alimenta-se do tempo.
A verdade tem filhos com o tempo.

A verdade tem três filhos com o tempo.
Um perdeu-se no mundo.
O outro vive dentro
de um túmulo.

O último é dúbio
e tem os olhos
tristes.

A verdade é simples, meu filho,
tão simples que me causa espanto.

Mas não é dor o espanto
nem encanto o que ilude.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

quando faço a barba sangro

ou meu rosto é de seda
ou a lâmina do prestobarba
é uma guilhotina sedenta por sangue

cortei-me esqueci sei lá quantas vezes
hoje o sinal acima do lábio direito
escapou com vida, viçoso
e arrogante

lembrei que milagre
é tão natural quanto

meu sabonete com sangue
com o sangue do meu rosto

ou meu rosto é uma pele de manga-rosa
ou o prestobarba é uma peixeira afiada
afiadíssima na ponta de um seixo

um seixo alvo e liso
do rio da nossa infância.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

origami e seus segredos

é para você que faço uma flor de origami
ou prefere um barquinho de papel?

no mês de julho venta tanto
a flor já abre as asas

e sonha voar
pela janela

o barquinho de papel que espere a chuva
o meio-fio correnteza e nenhum pirata
triste no convés

aprendi com um samurai
a fazer flores de origami

apenas para que em noites sombrias como esta
eu fosse até sua casa e lhe presenteasse
uma orquídea

não pense que é fácil
fazer uma orquídea
de origami.

terça-feira, 10 de julho de 2012

coxo e caolho

Se eu encontrar dinheiro no lixo eu fico com o pacote
e se vier alguém atrás eu fujo com o coração na boca.

Não sou um bom moço e gosto de dinheiro achado no lixo.
Esbanjaria toda a grana com bebidas, mulheres e livros.

Então saibas ladrão que rouba restaurante
se eu encontrar dinheiro no lixo eu pego
e se tu vieres atrás de mim eu fujo.

Não tenho uma boa alma
meu espírito é delirante
e o meu silêncio
sacana.

o mestre que todos nós somos

espere-me
agora me espere

a vida não é o que você pensa
a vida é o que sempre foi -
cruel com os fracos

se você for fraco
pegue suas coisas
e vá embora

sua orelha é apenas
um calo de sangue

e a sua boca
uma armadilha

espere-me
agora me espere

de madrugada as paredes
são gatos pardos

levite e beije minha face
levite e beije minha face.

domingo, 8 de julho de 2012

sigilo

Não abra a porta da sua casa para seu inimigo
ou questão de segundos você perderá o rumo
não saberá quem é você nem qual a alma dele.

Cruze seus braços e não desça ao abismo
sabemos que a vertigem causa deleite
a quem é na verdade um rato
e nunca foi pássaro.

Deixe-o do lado de fora.
Deixe-o morrer de sede.

Não abra a porta da sua casa para seu inimigo
ou questão de segundos à mesa da sua cozinha
você e ele alegres e bêbados
hão de marcar o dia
da sua morte.

Acredite você estará feliz
e ele com um olhar cínico

lhe dará um abraço
quebrará sua costela.

sábado, 7 de julho de 2012

dizendo versos baixinho

plantei uma árvore que não tem raízes
e voa com as nuvens sem destino

disseram-me e ainda dizem
que ao sussurrar versos
aproximo-me
da loucura

mas a árvore continua sem raízes
e sem espaço definido

entre um rodopio
e um abismo

disseram-me e ainda dizem
que a minha sorte
é que a poesia
é torta

por isso meu canto engana
os que andam aduncos
por natureza

não são eles parte da árvore?
e não é a árvore somente minha?

então tudo que voa
brilhante e empoeirado
em suas folhas e no seu orvalho

é da minha vontade
e do meu delírio

que me importa se o abismo acorda
e o que foi lindo entristece

por encanto
e maldade
...

domingo, 1 de julho de 2012

Ganesh

Não me lembro da última vez
em que bebi o café da manhã

na varanda balançando os pés
e piscando o olho pras plantinhas

vejam só, até assobiando
e dando pulinhos -

meu deus,
que é isso?

A primeira andorinha
que pousar no parapeito
peço-lhe que me belisque -

decerto estou doente
ou sonhando.

Agora é na cozinha
que danço um bolero
agarrado à minha xícara.

Deus,
que é isso?

Nunca fui dado
a tanto festim
assim, sóbrio
e patético.

A primeira andorinha
que pousar no meu ombro
tentarei sufocá-la com um beijo.

Mas é difícil,
ah, deus tão difícil -

as andorinhas não colaboram
e não passam batom cereja no bico.

Diga-me, deus,
como beijar essas andorinhas
de bico ainda úmido do orvalho das calçadas?

Não me lembro da última vezem que cantei uma música
olhando as paredes.

Deus,
que é isso?

Devo estar mesmo doente
ou apaixonado por meus cabelos brancos.

ávido

Não me chames de amor
assim facilmente, sabemos
que as palavras têm poder

[vê lá, hein] tu podes acordar
imaginando que sou teu poeta

enquanto não passo de uma lagarta
trêmula na calçada esquivando-se
dos bicos das andorinhas.

O amor não me tolera -
é conhecido esse meu desastre.

Mas quem sabe
quem sabe,
né?

Vinde então, moças
estou só e aflito

preciso de um trago
e de outra língua.

Mas não me chames de amor
as palavras têm poder e loucura.

sábado, 30 de junho de 2012

setenta anos

O sol hoje trouxe alegria
até para meus fantasmas
que sorriem ao meu lado

pegam-me pelo braço
e enlouquecem afoitos
pela calçada

também sorrio
porque sou cínico
bem mais que eles

esses meus fantasmas
na verdade são meninos

graças a deus sem correntes
presas a calcanhares

tudo que temos
eu e eles

são asas douradas
ora lilases e brilhantes

que ontem
tarde da madrugada
roubamos do meu pégaso

coitado,
ainda esperando
das estrelas um atestado
de lealdade e concupiscência

hoje o sol acordou bacana
cheio de manha e música

meus fantasmas já estão lá
na calçada correndo atrás
dos pombos coxos

e brincando de abraçar folhas secas
antes que caiam ao chão 

eu sorrio da janela
e escrevo versos

porque sou tão cínico
quanto o sol malandro

que hoje acordou estranho
mais devasso que de costume

queimando meu rosto
beijando minha nuca

saudoso
que tenho medo

dos meus fantasmas
sofrerem noutro dia

porque os fantasmas são meninos:
creem na eternidade dos bons momentos.

terça-feira, 26 de junho de 2012

metódico

Todo passarim sabe
que o entardecer
é mui delicado:

caem monstros
das estrelas.

Portanto,
para dentro
moço de cabelos brancos.

Fuja da varanda,
beba seu café
tranquilo.

Prefira o idílio dos olhos
da mulher que não te vê.

Aqueles guardados dentro do bolso do bermudão
fizeram-te tanto bem que quase te cegaram.

Para dentro do quarto
moço de cabelos brancos.

A varanda é para donzelas e jarros tristes.
Flores alegres a gente tranca dentro da gaveta.

Parece que a varanda também é para cronista abençoado.
Sempre vem um e outro passarim a deitar-se na almofada
ou naquela cadeira dura dos meus avós.

Já para dentro
moço de cabelos brancos.

Seu tempo de devaneios
é tão simples quanto
o seu tempo
de enganos.

Acabou-se aquele tipo de engasgo
que surge com a esperança.

Volte para seu quarto
e mate seus cupins.

Eles depois de comerem as portas e as janelas
não duvide hão de comer suas botas.

São tenazes e lépidos esses cupins
do mesmo código genético
dos chineses.

Pegue o veneno
e não cheire.

É forte pra chuchu o veneno
e tão leves os cupins
com o vento.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

amor não é fábula

Confesso que perdi as asas durante o mergulho
mas o bico continua úmido de pétala
e qual a flor me diga

que rejeita um pássaro trôpego
de bico encantado?

A gaita de Bob Dylan
toca agora doutro lado
passando pela montanha

logo após o último arco-íris
enquanto eu sonhava
e tu me iludias.

Juro que os teus peitos
foram mamados
com doçura
e lealdade

e ao dormir,
também te juro,

eu sabia de cada detalhe da saudade
que acordava com tua escova antiga
e os meus dentes amarelos.

Confesso que sem asas
o voo é seguro -

encostando o bico
na ponta do abismo

tiramos mel
do jardim.

Até creio que o céu
é todo abismo secreto

onde há pétalas de orquídeas
e bico molhado de pássaros trôpegos

[acreditas?]

sexta-feira, 22 de junho de 2012

chuva

Esperava essa chuva
para enviar-lhe
meu coração -

faça bom proveito
e não esqueça:

um beijinho
em cada face
é o seu maior dengo.

Em dias de insônia
deixe-o bater seu tambor
e dançar com suas entidades.

Ele é louco mesmo
e tem muito ciúme

do puro sangue
que se derrama
com as lágrimas.

domingo, 8 de abril de 2012

o bufão de sorte

Para quem tem um quarto
com rachaduras nas paredes

das quais escapam coelhinhas
todas seminuas e sorridentes,
como ser triste?

Para quem tem um par de botas
que me leva a reinos encantados
onde se pode beber vinho
à vontade

e não dar bandeira na casa do rei
pegando firme a rainha,
como ser triste?

Para quem tem traças inteligentes
que adoram ler de tudo na estante

e me sussurram aos ouvidos
livros que tive preguiça
de chegar ao fim,
como ser triste?

Para quem tem vários passarinhos
que se revezam a cada manhã
e tocam Bach

deslizando gravetos nos bicos
em sensíveis movimentos,
como ser triste?

quinta-feira, 5 de abril de 2012

a mulher calçada para matar

Não sou um bom moço
mas nunca deixo ao relento

inseto ferido
ao pé da porta.

Penso que poderia ser minha
aquela alma desventurada

vítima de um salto alto
no primeiro degrau
da escada.

O que me surpreende
já quase morto

é o inseto ainda ter força
para me confessar sorrindo

que morrerá
feliz -

"o salto alto da vizinha
atravessou-me o coração
qual uma chama
de donzela."

Como são tolos os insetos
e todos os homens debaixo

do salto alto
de uma mulher.

Morra, ó miserável
e não me traga
escorpiões

pela fresta
da porta.

quarta-feira, 28 de março de 2012

o senhor do tempo

Não sei como
o coração pula
da caixa torácica

e caminha sozinho
pelas calçadas

chutando tampinhas
de refrigerante.

Chove muito ultimamente
e meu coração adora

essas calçadas frias
com pontas de cigarros
chicletes e sujeira de poodles.

Quem sou eu para trazê-lo de volta
ele é louco e só retorna quando
sente fome e sede

então se encaixa
entre as costelas

começa a bater seu tambor
tão confiante que dos céus
logo caem

andorinhas desprevenidas
ainda com bobes na cabeça.

segunda-feira, 26 de março de 2012

química

Somos amigos,
tão amigos -

eu e esse sabor antigo
de café ao entardecer.

Nem preciso olhar pela janela
a cor do céu - é o mesmo
do primeiro dia.

E tu me perguntas,
"e os passarinhos?"

Namoram no escurinho
entre os galhos de oiticicas.

tempestade

Pronto, tirei a barba
[pasmem] dessa vez

não feri o sinal
acima dos lábios;

o cabelo, entretanto, não corto,
permanecem os cachos
crespos e brancos -

pareço um louco
escrevendo cartas

dentro do olho
de um tufão.

Fantástico é que tenho
voando a meu dispor -

livros, estante, geladeira,
flores, vacas, camponesas.

Até uma chinesinha
com o olhar tão doce.

domingo, 25 de março de 2012

meu quarto é um oratório

fico imaginando seus joelhos
se alguma cicatriz, verruga

ou simplesmente
lisos e rosados -

fico imaginando
se no joelho direito
teria espaço suficiente
para escrever um poema

e no esquerdo
desenhar um coração,
beijá-lo e encostar meu rosto

abraçado
às suas pernas
...

fábula pra repousar o espírito

Os deuses da poesia são três:
o Arrebatado, o Altivo
e o Justo.

Vivem a socos
e pernadas

disputando o amor
da bela princesa.

O Arrebatado sempre gagueja
em companhia da donzela.

O Altivo é um tolo esnobe
e logo entedia a distinta senhora.

O Justo até que bom moço
mas não há mulher que aprecie

tantos salmos e provérbios
em noites de lua cheia.

A princesa só não vive triste
no alto da sua torre

porque todas as noites
escala sua janela um esquilo

cujos dentões mordem
os pés da princesa

que ri e que chora
em profundo êxtase,

sobretudo quando o esquilo
sobe por sua longa perna
e beija sua virilha.

sábado, 24 de março de 2012

o maquiavélico

diga-me onde você malha
e venderei chocolates
na esquina

só pra ver de perto
seu olhar de repúdio

e o seu biquinho
de reprovação -

não que eu seja
um sujeito canalha

mas é que adoro sua dúvida
de roer-lhe a alma
entre

a delícia do chocolate de amêndoas
em saborosa calda de leite moça

e a sua disciplina de louca
com mil séries de glúteos.

quinta-feira, 22 de março de 2012

o banquete da memória

Segundo os antigos
os pontinhos brancos
nas unhas são mentiras terríveis

desde o tempo em que crianças
eram anjos de cara lisa
e asas tortas,

então concluo
que essa nódoa branca
na unha do meu mindinho

é o meu pecado mais mortal
que já se aproxima dos céus.

o viciado em coisas invisíveis

agora que ando sóbrio
sem ressaca e sem delírios

penso que sou eterno
e que o mundo
é um sonho

os fantasmas não gostam dessa nova vida
e tentam me seduzir com cítaras

em vez de correntes
presas a tornozelos

mas como disse,
agora que ando sóbrio
sem ressaca e sem delírios

penso que sou eterno
e que o mundo
é um sonho

digo adeus aos fantasmas
deixo-os tristes pela casa

calma, calma, calma
fantasmas bebês chorões

o amanhã ainda não existe
quem sabe no último dia

eu acorde
alma penada

mas por enquanto,
agora que ando sóbrio
sem ressaca e sem delírios

penso que sou eterno
e que o mundo
é um sonho
...

quarta-feira, 21 de março de 2012

tarde nublada

veja as palmas das minhas mãos:
navios de pirata, corsários ingleses,
céus, nuvens, linha do horizonte,
uma ilha deserta, filhotes
de tartaruga fugindo
pro mar -

são palmas de mãos sonhadoras
que só fizeram da vida
apertar o próprio
sangue -

beije as minhas mãos
e ponha no seu peito

a saudade
delas
...

só quero atingir seu coração novamente

algumas horas atrás
eu falei das joaninhas

e olha só como elas rebolam
em um jardim plano
sem armadilhas

são dondocas
essas meninas

casaquinho florido
e um olhar indiferente -

parecem tanto contigo
naquele dia quando
parou a chuva

e tu recusaste
meu braço amigo

foste pisando poças
sem ao menos

um pulinho
de bailarina
...

terça-feira, 20 de março de 2012

o equinócio de uma minhoca

os meus pés estão cansados e frios
as estrelas somem com o dia longo

a tinta forte das paredes recém-pintadas
alegra-me o peito [penso em ópio e vinho]

não me levanto da cama
o sonho sempre foge
quando tenho sede

deixo-me então
assim, a garganta seca
e um sabor de peixe na boca

meu caixão ainda não está totalmente pronto
faltam os tamancos e as almofadas
do meu último pranto
...

entrevista

fui entrevistado no blog roxo-violeta,
da poeta Tânia Regina Contreiras
leiam a entrevista clicando aqui

segunda-feira, 19 de março de 2012

o mais invisível do tátil

juro que eu não sabia
que as fadas sentem cólicas
e têm fortes dores de cabeça

imaginava como único atributo das fadas
salvar aqueles pombos loucos
que tiram os tênis
nike vermelho

e levam choques
nos fios de alta tensão

agora que sei que as fadas
choram e trincam os dentes

morrendo de dor
às vezes encabulada

por sofrer igual
a uma mulher comum

serei atento
e mais sensível -

diz-me, fada
desejas minha mão sobre teu ventre
energizando os teus hormônios
e a boa circulação sanguínea

ou preferes tão somente
meus beijos por tua nuca?

Creio que os meus beijos
hão de te arrepiar todo o corpo

e segundo as fadas superiores
corpo sob frêmitos
é um bom sinal
de cura
...

domingo, 18 de março de 2012

versos que escrevo dormindo

uma nuvem de gafanhotos
não é tão infernal

se cada inseto
traz aos dentes

uma asinha
de borboleta -

calma, os gafanhotos
apenas salvaram uma borboletinha
das corredeiras de um rio assustador

não chores,
é facil montar

afinal as borboletas
vivem sem o corpo

basta que recuperemos
os mínimos detalhes
das asas

cada ângulo
com sua cor

e teremos
para nossa alegria

até mesmo a imagem
do último voo sobre
um lindo jardim
...

o carrasco

perdi a conta de quantos tubos de pasta dental
meu filho torceu o pescoço
e ainda hoje torce

o pivete tem uma especial habilidade
em tirar o chapéu branco da kolynos
ou da colgate

e sorrindo o carinha espreme
até a última lágrima
de flúor

dá-me pena ver a horrível morte
desses amigos tubos de pasta,

pescoço quebrado
e olhos revirados
de tanta dor
...

sábado, 17 de março de 2012

a unicidade do instante

Não deixo pra amanhã as cuecas de agora
pode ocorrer uma tragédia

e o pedacinho de sabão
sumir pelo cano
da pia.

Lavar cuecas com sabonete
ou amaciante fofo?

Isto não,
da última vez

vieram à janela
todos os tipos de andorinhas -
gordas, viúvas, ninfetas, loucas.

sexta-feira, 16 de março de 2012

a tua gargalhada

se me perguntassem o que levaria a uma ilha deserta,
a tua gargalhada, claro

seria uma festa - eu, os golfinhos
e uma turma de peixinhos malandros

bebendo água de coco
e nos deliciando

com tua gargalhada boa
com tua gargalhada
doutro mundo

os reis quando esperam a visita de um príncipe
não são trombetas que tocam os arautos
mas tiram da túnica uma caixinha
e ao abri-la,

eis a tua gargalhada
a invadir salão,
masmorra,
cozinha

chega até aos ouvidos
dos cocheiros

que entram em transe
e acabam bebendo
todo o vinho

recém chegado
de Portugal

a tua gargalhada
tem esse poder
louco

se me perguntassem se não queria
levar para a ilha deserta
também teu corpo,

boca,
seios
e coxas

diria que não,
que a tua gargalhada
seria suficiente para meu encanto

a tua gargalhada
[não fiques com ciúme]

iria trazer à praia
tantas sereias,

tu nem imaginas quantas
do mar báltico

dormiriam
com o poeta

a tua gargalhada
não é a risada
de Irene

mas te juro,
se Caetano

de longe a ouvisse
pensaria compor
uma música

se eu deixasse
e eu não permito

tua gargalhada é só minha
e dos meus golfinhos
e dos peixinhos
malandros

e do rei e de todo o seu séquito
e dos cocheiros e das sereias

de Caetano não,
deixa-o com a risada de Irene
...

quinta-feira, 15 de março de 2012

a parábola do pai generoso

agora que tu sabes
que as hienas são ferozes
e mordem mesmo fundo a carne

volta pra tua cabana
pro teu jardim

as sementes
lançadas pelos passarinhos
já crescem as vagens de feijão verde

agora que tu sabes
que as hienas são macabras
que destrincham até os ossos

foge da companhia delas
foge da tempestade

debaixo de uma árvore
o raio que racha o tronco

também parte ao meio
a tua cabeça

retorna pra tua cabana
lá as paredes do teu quarto
sonham em te apertar o peito

e os teus livros abertos
guardam entre páginas
flores

perfumadas
que nunca morrem
...

terça-feira, 13 de março de 2012

quarentena

quando as coisas estiverem boas
bem-te-vis felizes fora da gaiola
aranha com o besouro predileto

então eu te convido
para um cineminha

no momento aceita
estes meus cabelos
secos e compridos

estes meus dentes
vândalos e amarelos

esta minha barbicha
de náufrago erudito

estes meus tendões molengas
estes meus olhos apagados

deixa o sol distante
da minha calçada

nunca pensei um dia
amar tanto a frieza
dos meus chinelos
...

quarta-feira, 7 de março de 2012

punhal no peito

o primeiro amor é único
ornado de inocência
e muita febre

presente do cupido-mor
que não é um anjo
mas o próprio
deus

tão velhinho
e apaixonado

se tu perdeste o teu primeiro amor
no trem ou no foguete ou de patins

é bom dar-te à bebida e ao luto
porque não virá outro sol

nunca será igual àquele
de shortinho na primavera

se estás a lembrar assim meio mole
do teu primeiro encanto
então acredita

aproxima-se
um milagre

porque o cupido-mor
o próprio deus de barbicha

às vezes aprecia na gente
a desventura e a tragédia

e traz de volta
outro amor

mais dolorido
e passageiro
...

terça-feira, 6 de março de 2012

fim da comédia

digo adeus aos versos
o que serei agora
se não sou
poeta?

plantarei batatas
e verei o entardecer

doutro lado
da montanha

deixo as palavras em paz
sem a minha boca
e meu sopro

deixo a minha dor silenciosa
a cabeça que não está boa
o coração que já partiu

[o que sobra
a um louco?]

deixo meus livros filhos das traças
deixo minhas botas encostadas à parede

não vejo graça
nem beatitude
dentro da alma
que já é morte
...