quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

ceifa

Só não fiquei louco no deserto
porque já cheguei por lá com
aquele olho míope da vovó.
E minha cabeça
não é estúpida:
logo fez pacto
com o coração.
Sustentaram a barra
e a peteca da alma.
Minha alma é daquele tipo de visita
que não sabemos muito bem se
de verdade ou ideia solta
de Platão.
Na saída,
ainda guardei
minhas dúvidas.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Idílios

Você diz que é onda
outra quase morre
de preocupação
e o que sei
é do frio
na nuca.
A artéria
do braço
aos pulos.
A lágrima pontuda
furando o canto
do olho.
O teu rímel de café
na boca da minha
xícara branca.

Família

Gastei muita energia
com palavras.
Preciso recuperar meu estado de pura contemplação
e atrair com o sinal da minha boca os passarinhos
das oitis da calçada. Os outros do hospital
ficaram para trás:
varal, pátio,
pé de romã.

Ciência

Estudei profundamente os passos
do último século do meu coração.
Concluo que substituir as válvulas doentes
por válvulas cardíacas suínas é estranho,
amor.
Imagina só,
um dia desses
você vem e inclina
seu ouvido ao meu peito
e, ui, ouve
um grunhido.

O Bolero dos Enforcados

O poeta todas as manhãs
acorda com o pé esquerdo.
De noite, tardão da noite,
cai-lhe na cabeça um raio.
Muito mais tarde, se não dormir,
reconstitui-se sua face profética.
E volta a plantar batatas,
a colher maçãs e lavar
as cuecas.
Não tenho ideias de ti,
mas minha vida é de uma
atmosfera patética de asas.
De corvos
a pardais.


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Lar

Você não tem
entre as suas coisas
outra música e outro livro?

Lembre-me da sua vida
e dos seus projetos.

Diga-me como vai
o seu grande amor.

Atire pela janela
aquele poema
triste.

Não mate
nosso blues.

Calce seus sapatos
e suba os degraus
da minha forca.

A corda foi bem roída
até a última dobra
pelos rouxinóis.

Meu pescoço
viu-se livre
das suas
mãos.

E quem haverá de saber se as romãs
estão ou não envenenadas?

Não me escreveram
sobre a minha morte.

Então estou vivo,
é isso, criança?





Ligação

Reencontrei a minha xícara branca de café
de lábios bem mais úmidos (romãs?) Sim,
romãs e rouxinóis. Não abri a agenda,
doutora.

E não há documento
tão sério quanto
o primeiro
perfume.

Na verdade,
seu perfume
(de muito cuidado)
atingia só minha alma.

Minhas narinas de bisão
pareciam mortas pra carne.

Theatro

A alma da mulher
no seu esmalte.

Nas unhas roídas,
nas cores sumidas,
na última invenção.

E o poeta (só ele sabe)
cuida daquele tímido olhar
pra que não passe do encanto
à loucura e do flerte à escravidão.

As tuas eram
de recatada nuance -
uma quase nua e a outra purpurina.

Sagrado

Acostumo meu coração
aos seus cabelos
e nome.

Deixo a agenda
apurar a alquimia -

palavras e romãs,
e vento, e pássaros.

Não mostro meu rosto,
resguardo-me doutro filho.