segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Barquinhos de papel e um jazz

Um dia disse que não era mais poeta e você acreditou. Ou aquele sorriso era puro escárnio? Você mestra dos assuntos do ventre e dos filhos mais do que o meu coração sabia que seria tormenta em taça de vinho minha lágrima. Ou aquele sorriso era puro cinismo? As mulheres criadoras dos vãos entre nossas costelas de criança sabem que a maternidade não terá volta depois do espanto. E era toda a certeza da chuva o seu sorriso.

Cozinha

Uma semente de mamão sobre a mesa é uma pérola negra aos olhos de um visionário. Seduzo uma formiga em silêncio. 

Nublado

Normalmente viro bicho. O ciúme é a ratoeira e eu [um doce rato] abocanho o queijo. Não imagino que uma mulher espreita e finge não me ver. Os passarinhos têm asas para escapar do amor. E tendem a voar a se perder. O rato não foge. A perdição é o gosto pela lâmina da armadilha.

Romântico

Os olhos não serão os mesmos sem a lembrança do sal. As gaivotas amam os cílios. E pescam lágrimas por amor. Quem um dia se afogou não deixará para trás a delicadeza da estrela marinha. 

domingo, 29 de novembro de 2015

Luz

Sempre que sonho com anjinhos recém-nascidos os céus presenteiam-me um novo amor. Passei a noite cheirando o seu perfume e chorando. Entre a miséria e o arrebatamento prefiro você, minhas lágrimas de jasmim.

domingo, 22 de novembro de 2015

Passarinhos

A vingança é desprezível. Cega-nos de tal modo que matamos até a benzedeira da nossa infância. O amor divino poupa-nos os dedos da lâmina amolada ao cortarmos uma laranja distraídos com a janela aberta e o canto de um pássaro. Abotoe os sapatos da sua mãe e beije-lhe os pés.

Códigos

Ao final de semana, uma nova missão: retirar do sereno e pôr pra tomar banho de sol as sete plantinhas em seus devidos jarros de zinco. Fecharei a janela com a rua deserta e abrirei cedinho ciente de que a vida das meninas em seus jarros de zinco depende da minha lucidez. Terei atenção ao dar a volta pela mesinha de centro. A quina de vidro se pega na artéria do meu joelho, adeus ermitão.

Férias

A escrita é um anzol de nuvens e o que pescamos são estrelas do mar. Prometa que não cruzará a ponte que juro não acender a fogueira debaixo dos seus pés. O vento seca as camisas no varal do banheiro e logo mais engomarei a calça. Sem tristeza, afinal o meu filho dorme no sofá com a beatitude de quem ficou de férias. 

sábado, 21 de novembro de 2015

Musgo

Pra fechar a janela, baby, retiro as sete plantinhas de jarro de zinco e lanço meu último olhar à rua. Passo pela mesinha de centro e derrubo um adorno de natal. Uma bailarina com trajes de fim de ano. Amanhã, estarei de volta. Ainda que morto de saudades, estarei de volta com as mãos trêmulas e quentes. 

Caixinha de blues

Que menina apressadinha de óculos, cabelos curtos e vestido passou agora debaixo da minha janela. O que leva dentro da sua bolsa a tiracolo? Batons ou um livro de poesia? Talvez um spray de pimenta pra jovens senhores curiosos que não têm coisa mais importante na vida do que admirar mocinhas de cabelos curtos, óculos, vestido e bolsa a tiracolo. 

Mosteiro

Quando seguro a faca entre os dentes e brinco batucando os dedos contra o vidro da mesa as palavras fogem. Algumas ficam em estado catatônico. Outras tentam furar meus olhos. E eu não demoro. Passo a faca na carne. Que delícia ver um texto capenga perder as asas e resignar-se a uma cela
com um banquinho, escrivaninha e uma jarra d'água.

Promessas

Choverá. As formigas começam a criar asas e voam pela casa de cachecol. Algumas não resistem e querem conhecer o meu coração por minha boca. Depois de engolir três, bebo água.

As hienas apaixonam-se muito cedo

Rezo para que a aliança de aço cirúrgico no meu dedo não se enrosque entre os cabelos de amores antigos e eu traga para nosso lar uma lembrança boa. Você não entenderia a minha felicidade poética. 

Caseiro

Os objetos de casa vivem me pregando peças: o cinto pendurado no varal prende-se ao bolso do meu bermudão e me puxa de volta ao banheiro. Sorrio e me desprendo. Sou livre, meu amor.

Diário de um ermitão

Queria alguém pra conversar sobre a escrita. Conversar e pegar na mão. Falar sobre os pontos de luz e os abismos de atração. As escalas de som e imagem. As surpresas das palavras. Mas não tenho ninguém pra conversar sobre a escrita. Conversar e pegar na mão. Resta-me apenas doar a minha cama. Vejo que agora é pessoal o atrito entre a mola solta e a minha coluna.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O sorriso das arraias é diabólico

Um pescador de arraias depois que perde um braço e incham as pernas ainda é um pescador de arraias talhando esculturas com seu canivete de nascença sentado no batente do boteco. Dor são os cílios queimando-se lá em alto mar. 

Poluição

O papel da poesia não é explicar como se forma o vendaval, mas nos fazer sentir os pés acima da terra e os cabelos ao léu. Nunca fui um leitor amante de poesia. Os poemas que amei [graças] enlouqueceram-me para sempre e ainda hoje pago meus pecados pelos horríveis que um dia escrevi.

Galinhada

Quanto tempo, meu bom pai, que não comia uma galinhada. A verdade é que nem me lembro se um dia já comi galinhada. Há quem a conheça por galinha atolada. Galinhada ou galinha atolada ou outro capricho qualquer de mãe africana, a delícia é que me senti um glutão a causar dó aos monges vagarosos e apáticos sorvendo suas sopinhas ralas trancafiados em suas celas. Quando era monge eu mentia. Nunca comi só sopa de legumes ou de ovos. Guardava dentro do travesseiro miúdos e coxas de pato. Tinha uma amiga, uma bela noviça, que driblava os anciãos e chegava até os calabouços da minha cela e me oferecia peças de pato. Sempre pato assado com alecrim. 

Pré-história

Não acredito no amor. Creio no sexo. Cresci. Sou um homem feito. Um jovem senhor de cinquenta anos não acredita mais no amor. Crê no sexo. Crê no doce de leite dentro da geladeira e no copo de água gelada. Crê no perfume da nuca da mulher e crê na vida louca da mulher. No amor não.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Violeta

Meu filho, conquistar e merecer uma sacerdotisa de coração doce e sorriso largo é uma questão de batalha natural contra os teus próprios demônios. Não se tem ao lado uma mulher sacerdotisa por destino, dinheiro ou vaidade - Ela que se aproxima, conhece a tua luz, a tua força e timidez, o teu sagrado moinho que move e purifica teu sangue. Ela - a sacerdotisa de coração justo e sorriso silencioso - chegará a ti sem que tu imagines. Esquece a túnica, o colar de serpente de ouro, a tiara de brilhantes. Ela nascerá nua em tua alma. E será a detentora de teu corpo. Meu filho, enquanto a rajada de vento não te derruba, luta contra os teus demônios. Os teus inimigos sabem da tua fortuna, caso Ela te escolha como homem.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Vício

Apavorante, meu amor, ter um inimigo aos pés. Não poder se entregar a uma taça ou a um cigarro. Não poder gargalhar e subir aos céus, e descer ao fundo do abismo, sem antes espreitar o inimigo e vê-lo como dorme (nunca dorme) e com que armas o inimigo forja a nossa queda. Triste, meu amor, ouvir o coração constantemente. Apontar o cano de um revólver na têmpora. Não descansar um minuto. Se eu mentir, o dia seguinte será de fúria, melancolia e fraqueza. A solidão é o meu par. Não se apaixone por minha dor. Os deuses fazem apostas. E o ventre arde.

Pedim

O meu mestre era um romântico espirituoso de ideias conservadoras. Tinha uma Yamaha Cinquentinha e uma graúna adestrada que saía da gaiola, passeava pela casa, aterrorizava as crianças e voltava para dormir. Uma espinha nas costas do meu mestre virou um problema sério. Ao ser extraída, acabou um sinal afetivo. Cuidei do seu funeral. Desde o corpo no subterrâneo do hospital aos últimos detalhes na funerária. Enfeitei o seu corpo com pétalas. Não bebi em sua memória. Dos seus princípios inabaláveis lembro-me apenas da cicatriz nas suas costas. Da sua Yamaha Cinquentinha e do passarinho inteligente. Só.

Viena

Comprei o bilhete atrasado e você já se apaixonou. Prometa-me, se você separar-se do seu pretendente lerá as minhas cartas. Escrevi coisas simples sobre nós. O quanto amava tirar os fiapos de manga dos seus dentes com os meus beijos. O quanto delirava com os seus olhos inacreditáveis de felicidade naquelas noites em que bebíamos duas tacinhas de vinho. Cheguei atrasado na estação e você já havia sumido. Jure que jogará o corpo do seu pretendente pelo caminho quando você ler as cartas. São coisas tão simples do nosso tempo de café da manhã na cama. Não deixe pistas. Jogue o corpo do seu pretendente de noite. Após o terceiro apito do trem. Ao fazer a curva pela montanha.  Peça o capote do maquinista e não pegue um resfriado. 

Quarta-feira é dia de magia

Um dia bom é descer a escada do prédio uniformizado e perfumado pro trabalho e quase dar um encontrão em uma menina e nos seus dois poodles. Conhecidos os cachorrinhos pelos latidos insistentes e conhecida a menina por sua voz doce e austera a acalmá-los. Dessa vez, nem um pio. Olharam-me os poodles pensativos e surpresos. Enquanto a menina sorria com aquele frescor da juventude.  É uma flor que se cheire essa menina, mas há em suas pétalas abelhas. Sei bem, filho.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Legião

Caminho em campos de batalha revirando os bolsos dos meus amigos à procura de flores secas e selos antigos. Muitos guardaram cartas perfumadas. A minha natureza é caminhar sobre corpos separando os vivos dos mortos e virando pelo avesso os bolsos dos meus compadres. O medo não é o pavor dos rostos, mas acordar algum amigo. O sonho deles, de todos eles, é sereno sob minha presença. Reviro os seus bolsos. Junto as flores secas e os selos antigos e reescrevo suas cartas para os seus amores. Parto de onde morreram.

Ao vencedor, as batatas!

Há mulheres de panturrilhas fascinantes. Nativas do Congo. Camponesas Quakers. Mas o que me fascina nesse divino momento é uma novinha a pular do ônibus. Saltitante. Tão mocinha e já senhora de si. O meu filho, um rapazote de 14 anos, decerto também se encantaria por essa pequena e teria nas mãos a chave do deslumbramento. Sim, falava das panturrilhas maravilhosas de certas mulheres. Amei, em um tempo distante, um par de batatas e chorava sobre essas batatas e fazia massagens nessas batatas quentes com as minhas lágrimas. Um dia, fugiram do meu alcance essas doces batatas. A partir desse infortúnio, nunca mais admirei as panturrilhas de uma mulher. Exceto hoje, no corredor do ônibus, uma feirante. Uma cabocla de tez cintilante.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Espectro

Do amor nada soube. Nada trouxe. Do amor apenas inventei. O ciúme foi meu aliado em questões de delírios e farsas. Cresci sob sua sombra - a do ciúme, não do amor. O amor não tem sombra nem sol. Do amor que nunca aprendi, imagino que não tenha sombra nem sol. Apenas imagino. Do amor sou um pateta. Um servo caolho. Um infeliz. E gente assim não deve mesmo conhecer o amor.

Aleluia

Não duvide do milagre. Só o náufrago sabe da alegria em receber de presente a memória de volta. O testemunho é valioso aos quase mortos no fundo do mar. Não gosto mais de mim bêbado. Chega ao fim minhas peripécias infernais. De tanta sobriedade a porta do meu quarto rangerá piedade por meu coração e suplicará loucuras. Morrerá tísica a porta do meu quarto. Não lhe darei ouvido. Ainda sou um náufrago. Peixes carnívoros beijam minhas mãos. E ao descer a escada do teu prédio as minhas pernas correm ao fundo do mar. Uma estrela em forma de papoula encanta-me.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Pastilha

Natural que ao beijar e sorver teu monte de vênus eu beba a delícia do teu gozo de mulher. Assim, canto melhor com a voz rouca um blues.

Comédia

Meu amor, perdão. Ando tão confuso de encantamentos que sigo meu caminho chamando todo o mundo de meu amor. Antigamente chamava os passarinhos de meu amor, as formiguinhas de meu amor, a minha xícara de meu amor. Perdão, se chamei as tuas primas de meu amor, as tuas amigas de meu amor, a tua mãe de meu amor e o teu pai de meu amor. Também morri de vergonha quando chamei o garçom de meu amor. Não almoço mais no mesmo lugar. 

Cordel

Há um quê de farsa em meus tormentos. Gracejos de graúna que nunca será corvo. A dor é tão pequena diante da minha infantil palavra. Já não busco céus. O abismo é comum a quem mais rasteja do que voa. Convido os comparsas para tabernas com a singeleza do homem sóbrio. Os dentes mordem a língua em espaços de tempo que não dou conta. O tempo é um demônio. O único que existe e faz de tolo o curioso. O novelo dentro do novelo só tem pulga. Atente-se, bichano. 

Sexta 13

Depois que você abrir seu coração se acostumará com a minha melancolia e espirituosidade. Reconhecerá que sou uma boa companhia. Só segure minhas mãos. Segure as minhas mãos. Não deixe que eu erga e brinde aos céus a primeira taça. Cante um blues aos meus ouvidos e cubra-me com as suas asas, meu anjo. Dói virar bicho e as noites são eternas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Fortitudine

O amanhã é uma hipótese. Não engomar a farda seria ingenuidade. Se o meu corpo não levantar e o espírito for plantar girassóis em outra freguesia, no mínimo, como prova da minha paixão pela vida,  os desconhecidos que entrarem em casa [sempre aparecem vizinhos para olhar o morto] encontrarão no varal do banheiro, bem passadas e repousando no cabide, a camisa e a calça do trabalho. Incrível o inseto que saiu do bolso da camisa de asas trôpegas. Quase beijou a palma do ferro de engomar em brasa viva. Não sou tão psicopata assim. Só dei um peteleco. E voaram os pelos das asas do inseto sujando o brasão. Inseto de sorte, baby.

Novembro Azul

Deixe-me tomar um banho primeiro. Ou você prefere o meu beijo da rua? Bonachão pra chuchu o seu jovem senhor ultimamente. Completei cinquentinha, lembra? Onde você estava que nem me enviou de presente uma ânfora de cerâmica para os meus novos cabelos brancos? Você sempre soube o quanto simpatizo com esta palavra "ânfora" e também com "próstata". Espero que o dedo do senhor urologista seja um dedo comum. Sem essa de aberrações de circo. Um tempo atrás escrevi um poema onomatopeico em que lembrava um cavalo trotando "prós-ta-ta... prós-ta-ta-ta..." Se a minha glândula de mostarda estiver do tamanho de uma tangerina, por favor, não desapareça. Quero você perto dos tubos. Desligue todos.

O alquimista de vazios

Ando tão contente da vida que faço a barba no escuro para não me apaixonar pelo sinal do meu lábio. Mas não se surpreenda, se eu escrever um texto medonho de um órfão que acabou de matar os pais adotivos e planeja decepá-los. Percebe, meu amor, como é fácil mudar o rumo dos seus sentimentos?

Coroinha

Catei as mais deslumbrantes pedrinhas nas margens do rio da minha cidade. Lavei e sequei as lindas  pedrinhas. Pintei as pedrinhas encantadas de vermelho, azul, amarelo e verde, à tinta guache. Juntei e colei as coloridas pedrinhas esculpindo um palhaço. Guardei o palhacinho dentro de uma caixa de sapatos  forrada a gramíneas e pétalas e ofereci [com todo o amor de um mancebo de treze anos] à minha professora de inglês que esboçou um sorriso e brincou cruel "Cadê as espinhas do palhaço? faltam as suas espinhas no palhaço..." Chorei. Arranquei das mãos da professora Hélia a delicada escultura e fugi ao casarão dos meus avós. Abraçado à caixa de sapatos [forrada a gramíneas e pétalas] chorava lágrimas de ódio. Calei-me. Despertei da manjedoura o palhacinho e lancei-o contra o muro do quintal dos meus avós - que era o mesmo do cemitério. "Palhaço, palhaço, palhaço..." Repetia centenas de vezes e ouvia de volta o palhaço repetir "Palhaço, palhaço, palhaço..."

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Brisa que levanta a toalha da mesa

Não escorrem pelo rosto as lágrimas. Estas são iguais àquelas palavras que não se eternizam pela escrita. Mas pelo que se guarda e se diz murmurando só pra gente ouvir. Estas lágrimas não chegam aos lábios. Não forçam lembranças más ou boas. Como tocam as pontas dos cílios, somem sem deixar os cantos dos olhos nem sequer úmidos. Chamas que eram fogo, apagam-se. E permanece a palma da mão quente e a boca sussurra o que ainda será dito.

Templário

Sempre borrifo um perfume especial no colarinho da minha farda. Nunca se sabe [nem mesmo o Oráculo de Delfos] qual a estagiária que entrará na sala, caminhará até a minha mesa e com o rosto tépido sobre meus ombros exigirá um ofício para o gabinete do secretário. Nessas ocasiões, os meus delirantes escritos são inúteis. O que seduzirá, e despertará encanto na menina, apenas o perfume especial borrifado no colarinho. O poeta e boticário William Blake é um grande amigo. Vive enclausurado no seu sótão a elaborar e me oferecer fragrâncias místicas. Não há estagiária novinha que resista e não enlouqueça.

O Bosque

Lisos à base de pranchinha ou encaracolados a fios de ouro, amo os seus cabelos com tão cálida paixão que cortaria os meus pulsos e ungiria a sua cabeça com o sangue da minha poesia. Entenda, meu bem, que a minha poesia é o Universo silencioso do meu amor - de onde não se roubam nem se perdem palavras. É tudo muito raro, fino, um sopro de canário.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Escritura

Minha mãe de 78 anos [ministra da sagrada eucaristia] acabou de chegar do Shalom e presenteou-me com um saquinho de pipoca doce. Temi que estivesse benta. Pipoca doce só serve se estiver benta para um diabinho como eu. Dona Beatriz sorriu e perguntou-me o que seu filho andava lendo. "Bocage, mãe, o santinho Bocage." A ministra fez o sinal da cruz.

Atordoado

Se você se engraçar, eu me engraço. Viu meu comportamento de lord, nesta manhã, ao pegar o ônibus? Dei-lhe passagem com as mãos de um cândido cavalheiro. Sou muito educado e falastrão, afinal só penso em levá-la pra cama. Dormir contigo seria uma dádiva divina de um deus pagão. Mas sei lá o que ocorre com meu espírito. Acredito que os fantasmas das mulheres a quem escrevi poemas, ou amedrontam quem se apaixona ou me fazem trabalhos específicos carregados de solidão e eu fujo. Tranco a cara. Faço de conta que leio um livro de Eça. Sou mesmo um padreco de Leiria.

Um francês maldito perdido entre tulipas

As palavras antes das sílabas e dos pensamentos são entidades. Germinam-se por simbiose próximas dos seus servos. O ventre do homem e das mulheres comungam-se da fertilidade das palavras. Dos rodopios e dos passos cautelosos das palavras. O mundo que parte da minha realidade é assombrado. A carruagem passa defronte das tabernas. Ouço os ruídos dos dentes frenéticos dos possessos e felizes homens. As mulheres, lânguidas, desmaiam em sonhos com um batom. Distraídas? Nunca. As mulheres quando se olham no espelho com o batom suspenso em sinceros afagos nos lábios jamais viajam distantes de quem amam. E as palavras atacam-nas. Sem piedade. Os caballos arrastam minha carruagem pelas tabernas. As palavras se forjam no silêncio [antes das sílabas e dos pensamentos]. Não vivo nessas horas. Não conto com a vida nessas horas. O meu mundo é assombrado, baby.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Angico

Quando conheci Dom Quixote de La Mancha ainda não era responsável juridicamente por meus atos, fato que me levou aos abusos sobre a alma do Cavaleiro da  Trista Figura. Não o deixava em paz um segundo. Galopava ao seu lado entre os campos de girassóis e de papoulas e bebia da fonte luminosa dos seus delírios. Os moinhos eram de fato terríveis gigantes e nunca meus olhos toparam diante de uma dama tão formosa quanto a senhorita Dulcinea del Toboso. Sancho Pança servia-nos a cada terço de hora um cachimbo com cactos da Patagônia e sorríamos muito quando o meu mestre dançava xaxado fingindo-se incorporado da altivez e sobriedade de Lampião. Ao cair da noite, Dom Quixote reservava-se intimo e confidenciava aos meus ouvidos em voz roufenha o seu pesar. Nessas horas, Sancho Panço dormia ruidosamente envolvido entre as patas do seu burrico. O meu mestre confessava-me que não tinha certeza das suas ideias e dos seus arroubos. Insistia que era eu o seu verdadeiro mestre e que minha a divina incumbência de ensinar-lhe a arte do flerte e da conquista através das palavras escritas. Sofrendo um absurdo, respondia ao meu senhor [tantas vezes o mesmo angustiante assunto do coração de um bêbado] que há tempos rasguei e queimei as minhas cartas amorosas de idílios, namoros e matrimônios. O meu mestre Dom Quixote de La Mancha, O Cavaleiro da Triste Figura, gargalhava e mudava de assunto crente que um dia eu daria mostras do meu amor por seu espírito venturoso e dedicaria todas as noites de lua cheia a segredar-lhe os meus escritos líricos. Confiante em tal esperança, oferecia-me mais vinho dos monges do Mar Morto e voltava a dançar xaxado abraçado à sua lança como os cangaceiros abraçavam seus fuzis Mauser com delicadeza e luxúria.

domingo, 8 de novembro de 2015

Periodontia

Os dentes de uma hiena estão melhores de que os meus. Depois que a minha dentista segurou-me as mãos e disse que andava sofrendo muito, nunca mais retornei ao consultório. Só queria que cuidassem dos meus dentes. O meu coração não tem cura. São nervos loucos.

Patchouli

Creio que as mulheres percebem o meu amor e minha volúpia. As mulheres que sentam ao meu lado no ônibus, as que trabalham na mesma sala, as da fila dos caixas de supermercado e lotérica, as que tocam meus braços nas calçadas. Em todos os lugares que as mulheres passam e olham os meus olhos, envio algum sinal de amor e volúpia. Nunca se encantam mais que um minuto dentro da alma dos meus olhos. Dentro da alma dos meus olhos as mulheres entendem o risco de amar um santo. Minha mãe disse que sou um santo, portanto sou um santo. [Quem é louco de duvidar de uma ministra da sagrada eucaristia?] Nem os deuses presenciam os meus rituais de homem perverso e egoísta, exceto quando amo e me perfumo. Neste caso, baby, o mundo todo sabe.

Cisne

Fugi do manicômio devendo algum dinheiro. Não voltarei pra pagar a minha dívida nem oferecerei cigarros ao porteiro. O meu pescoço roliço e meus ombros fortes esqueceram o passado. As musas se não forem desvirginadas antes do banquete, a tragédia será eterna ao homem ingênuo de olhos fraternos. Distante de toda aquela vaidade de morfina, as vozes que não cooperam com meu estado criativo não duram muito tempo no meu quarto. A solidão sabe criar amigos. Naquele tempo, cercado de artistas, poetas e escritores fabulosos, a vida não era delicada como agora. O que escrevo não tem importância aos olhos cúmplices e cínicos. O que escrevo é uma força a mais para mover o moinho e deixar quieto o manicômio com sua vaidade de morfina. A cegueira surge dos olhos cúmplices e cínicos. E já estou bem de óculos novos.

O campanário

Quem me vê engomando a camisa de linho do trabalho [o cuidado em não passar o ferro sobre o brasão do fardamento] decerto, pensariam tratar-se de um tecnocrata meticuloso. Ora bolas, tolice. Não veem o outro olho medonho de Kafka ansioso por uma nódoa de fezes de pombo no colarinho? A língua entre os dentes é apenas uma questão de transe e mordida. A lucidez é epiléptica, catatônica e apocalíptica. Às vezes, ousamos calçar sapatos para que as asas não fujam dos ombros.

Cana da Nazaré

Costumava, a séculos atrás, empilhar livros na palma direita e na esquerda. Com os olhos fechados, calculava o peso e a mão que mais pesasse seria escolhida como leitura da semana. Depois que virei pescador, em alto mar, faço o mesmo com um punhado de peixes em cada palma de mão. Certa manhã, chovia bem fininho, abri os olhos e dançava na palma da mão direita um cavalo-marinho. Não pesava coisinha de nada, mas era um cavalo-marinho grávido que trazia no coração sonhos de corais. Uma arraia-manta que pesava na palma da minha outra mão lancei fora. O meu irmão, admirando tal loucura, apenas sorria e sussurrava "irmão louco... meu irmão louco..."  As ondas - obra do corpo cheio de tentáculos de um aterrorizante monstro a debater-se e a mergulhar - afundaram nosso barco. Seríamos náufragos e possíveis comida do monstro, se não nos socorresse o cavalo-marinho. Segurando-lhe a cauda, e puxando meu irmão pelo punho, segui o meu mágico cavalo-marinho que nos conduziu a uma ilha encantada. Casei-me por lá com uma nativa que havia enviado sob feitiço de matrimônio esse cavalo-marinho. O meu irmão retornou pro Ocidente. E canta essa história em mesas de bares de pescador. Depois do terceiro trago, prestam mais atenção e depois de duas garrafas de pinga os pescadores da minha aldeia juram que estavam ao meu lado e que ainda têm na lembrança o meu doce sorriso de felicidade, no altar, segurando a mão da filha do Grã-Sacerdote. Só me falta ter coragem e aprender a surfar. A menina adora ondas gigantes de Nazaré. 

Platônico

De tantos amores à distância, em companhia de filósofos, dentro de cavernas a comer pão sírio e beber vinho de alto teor alcoólico, aprendi algumas palavras devastadoras à alma feminina. De todas que ouvi da boca de hedonistas, a mais infeliz é "adúltera." A mulher não suporta ser chamada de adúltera. Morre. Enlouquece. Adúltera, aos seus ouvidos, é como cravar um punhal de ponta envenenada em seu coração. Até suporta a mulher ser reconhecida como vadia e cachorra - algumas, por sinal, cantam felizes em bailes funk, na cozinha ou na cama. Adúltera não, por misericórdia. Adúltera lembra aquela passagem bíblica em que um messias desencoraja e envergonha um bando de homens brutos e tolos - já munidos de pedras nas mãos ansiosos a apedrejar uma mulher. Adúltera é além da traição. Adúltera é seduzir a própria serpente e fazê-la experimentar da própria maçã. Adúltera é o reconhecimento de toda a força carnal e religiosa de que uma mulher dispõe ao seu deleite e tragédia. O homem adúltero é um canalha. Apenas um canalha. Nunca atingirá a elevação espiritual da mulher. Um canalha é um canalha. Enquanto a mulher adúltera, quase sempre, é uma alma superior e bela. Amo as mulheres adúlteras. E lavo os seus pés e beijo o seu ventre e faço-lhes um penteado novo.

sábado, 7 de novembro de 2015

Ciclope

O cego que é puro ama as multidões e prepara o banquete. O cego que é puro, de vez em quando, envolve-se entre as vozes e os perfumes. Perde a noção. Dirige seu barco ao precipício. A pureza não é falta de sentidos, mas acúmulo e vazão de sentidos apurados. O cego que é puro mergulha. Admira-se com o fundo do poço. Embriaga-se da própria falta de ar. Apaixona-se pelos calafrios. Sagrada vertigem quando a porta fecha-se diante dos seus olhos. Ninguém por perto. Ninguém distante. O cego que é puro lembra-se das ovelhas a roubar da caverna. Alimentá-las sob as estrelas. O vento da planície. A brisa que parte do meio do mar. O cego que é puro pesca sardinhas. Faz fogueiras. Bebe vinho. Ninguém a lembrar. Ninguém que se lembre dos seus olhos. A pureza nasce de tal calidez que o cego que é puro não controla as mãos. Ainda tem dentro do alforje peles das últimas ovelhas. Estica sobre a perna a pele de uma ovelha. Rasga com os dentes algumas palavras. Diria que é um poema, mas o cego que é puro não enxerga bem. E levanta a pele da ovelha contra o brilho das estrelas. É, parece um poema. 

Teu silêncio

A ação em contemplar da janela uma árvore é libertadora. Os meus braços acordaram longos para derrubar os antigos vícios. Caem da mesa cartas, poemas e fotografias. Por que, baby, tantos segredos e arrebatamentos, se um dia acordamos bem? Quase conscientes de que a vida é cruel e mansa qual um bisão em época de florescimento dos cabelos das cerejeiras. Um bisão apaixonado é louco. Um homem é menos. As cerejeiras balançam os cabelos e caem meus vícios da mesa: poemas, cartas, fotografias e um cálice de absinto. Acordei bem. Quase liberto das tragédias que me ofereceram com o meu nascimento. Não falarei das minhas cicatrizes. Os meus cílios que por vontade própria voaram dos olhos à palma da minha mão trouxeram-me mais sorte. Coisa boa é saber [sem palavras] que existe amor. Um bisão apaixonado é cruel e manso como a vida. E sou um homem loucamente apaixonado pela vida. De onde, baby, você imagina que surge queimando minhas artérias a doce melancolia?

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

2,5 em química

Incrível como o Universo mudou. No meu tempo, não havia tantas estrelas. Cada poeta vivia em uma. Abraçado até o fim da vida a essa estrela de nascença. Hoje, pelo que vejo, são tantas estrelas e poetas que me emociono. Tanta gozação e luxo. Ninguém corta pulsos. Ou mete o rosto em um saco plástico e abre a torneirinha do botijão de gás. Hoje em dia, escolhe-se quantas estrelas desejar. Mentir é um bom caminho. Ninguém é mais aleijado. Passos endireitados e altivos. Sorrisos de felicidade. Na base do meu cérebro, meu amor, não existe estrela. Só um caroço. E explodirá de cansaço. O ermitão cansado é uma piada. Um fim trágico. O céu não me diz o que fazer [tantas estrelas assim, meu amor, a quem confiar minha melancolia?] Não sairei para beber nem beberei em casa debaixo da mesa. Por favor, nem me lembre de que em certas noites cuidei de rosas. Troquei a água do jarro de vidro. Joguei ao lixo as hastes secas e mais espinhosas. Se hoje é sábado? Dizem os poetas que é a melhor noite para enlouquecer. As bruxas vestem cinta-liga.