sábado, 7 de novembro de 2015

Ciclope

O cego que é puro ama as multidões e prepara o banquete. O cego que é puro, de vez em quando, envolve-se entre as vozes e os perfumes. Perde a noção. Dirige seu barco ao precipício. A pureza não é falta de sentidos, mas acúmulo e vazão de sentidos apurados. O cego que é puro mergulha. Admira-se com o fundo do poço. Embriaga-se da própria falta de ar. Apaixona-se pelos calafrios. Sagrada vertigem quando a porta fecha-se diante dos seus olhos. Ninguém por perto. Ninguém distante. O cego que é puro lembra-se das ovelhas a roubar da caverna. Alimentá-las sob as estrelas. O vento da planície. A brisa que parte do meio do mar. O cego que é puro pesca sardinhas. Faz fogueiras. Bebe vinho. Ninguém a lembrar. Ninguém que se lembre dos seus olhos. A pureza nasce de tal calidez que o cego que é puro não controla as mãos. Ainda tem dentro do alforje peles das últimas ovelhas. Estica sobre a perna a pele de uma ovelha. Rasga com os dentes algumas palavras. Diria que é um poema, mas o cego que é puro não enxerga bem. E levanta a pele da ovelha contra o brilho das estrelas. É, parece um poema. 

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