sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Carruagem

No final do século XIX, fui cocheiro. Não existia toda essa intimidade com os passageiros de que alguns taxistas se vangloriam. O meu lugar era fora da cabine. Sentado no alto, lá fora, recebendo no rosto geada, chuva, poeira, fuligem, sol e sereno. E pagavam míseras moedas. Ninguém queria saber das minhas mazelas. Da sopa rala. Da minha esposa tísica. Do meu filho que tinha epilepsia e sofria do boato que circulava pela vila de que era um fruto maligno o meu garoto. Não justifico os meus crimes. Mas enforcar as damas e esfaquear os senhores, em noites escolhidas por acaso, causava-me um certo prazer imaginando que as minhas vítimas não jogariam mais pro alto as míseras moedas como se eu fosse um mendigo. Um maldito bêbado. Estrangulei muitos pescoços de damas indefesas. Pescoços alvos com medalhas de santos. E sujei as mãos de sangue do baço e fígado dos senhores entre 60 e 70 anos. No final do século XIX, sobrevivi conduzindo [no meu veículo puxado a cavalos] mulheres elegantes e homens abastados. E muitos eu matei. E ao chegar em casa era um cocheiro igual a muitos. Um inútil fantasma.

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