segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Dose única

Ainda tenho muitas orquídeas para enfeitar as árvores da minha rua. Nessas horas, em que só os gatos pretos e outros malhados andam pelas calçadas, planto orquídeas aos caules das oitis. Amanhecerá a minha alma encantada e o mundo nunca saberá quem concedeu ao poeta a triste euforia da palavra.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Solidão

Quem por raríssimas vezes ouve-me em minha plena loucura poética foge de mim em silêncio como se tudo que conversei e gargalhei tivesse sido em vão. Sobre desenganos e exílio conheço bem. 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A poesia é fogo

O dinheiro não compra o coração do poeta. Só o seu cinismo e cínico o poeta seduz o rei e faz amor com a rainha. Sem viajar pra Pasárgada. 

Grife

Os meus dentes estão péssimos, meu amor, mas posso trocá-los por parafusos de ouro. E o meu coração permanecerá apaixonado.



pra uma menina de trajes deslumbrantes

sábado, 5 de dezembro de 2015

Artífice de latão

As sete plantinhas em seus jarros de zinco [as que prometi dar banho de sol cedinho e retirá-las do sereno diante da rua deserta] não sei como vivem. As minhas promessas perdem rápido o título de nobreza. Aproxima-se por minhas vértebras uma preguiça e meu coração esquece o valor dos brasões de batalhas impossíveis. Muitas plantinhas morreram infelizes esperando o meu amor. Nem todas as manhãs de sábado invadem minha alma com extrema brandura. Há manhãs de ouvir, apenas ouvir, os cílios cansados debaterem-se entre si e as últimas lágrimas. Sem mendicância e sem santidade. O amor não espera honrarias de lunático. Crer já é muito. E não cole as asas dos passarinhos que colidiram contra a janela. Você ouvirá um som mais delicado do peito de quem voa trôpego ainda ferido.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Frêmitos dentro de uma ânfora

O meu suor é aquele da infância a chamar passarinhos e formigas. E chegavam entidades felizes ao meu lado e brincavam com os meus olhos. Os jardins eram tão inocentes. As lagartas-de-fogo não queimavam a minha pele. Nunca havia solidão entre o meu silêncio e as palavras. Ainda preciso de coragem para ser essa criança. Não existe tempo. Sei o que somos até o fim. A morte é um descuido da ausência.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Barquinhos de papel e um jazz

Um dia disse que não era mais poeta e você acreditou. Ou aquele sorriso era puro escárnio? Você mestra dos assuntos do ventre e dos filhos mais do que o meu coração sabia que seria tormenta em taça de vinho minha lágrima. Ou aquele sorriso era puro cinismo? As mulheres criadoras dos vãos entre nossas costelas de criança sabem que a maternidade não terá volta depois do espanto. E era toda a certeza da chuva o seu sorriso.

Cozinha

Uma semente de mamão sobre a mesa é uma pérola negra aos olhos de um visionário. Seduzo uma formiga em silêncio. 

Nublado

Normalmente viro bicho. O ciúme é a ratoeira e eu [um doce rato] abocanho o queijo. Não imagino que uma mulher espreita e finge não me ver. Os passarinhos têm asas para escapar do amor. E tendem a voar a se perder. O rato não foge. A perdição é o gosto pela lâmina da armadilha.

Romântico

Os olhos não serão os mesmos sem a lembrança do sal. As gaivotas amam os cílios. E pescam lágrimas por amor. Quem um dia se afogou não deixará para trás a delicadeza da estrela marinha. 

domingo, 29 de novembro de 2015

Luz

Sempre que sonho com anjinhos recém-nascidos os céus presenteiam-me um novo amor. Passei a noite cheirando o seu perfume e chorando. Entre a miséria e o arrebatamento prefiro você, minhas lágrimas de jasmim.

domingo, 22 de novembro de 2015

Passarinhos

A vingança é desprezível. Cega-nos de tal modo que matamos até a benzedeira da nossa infância. O amor divino poupa-nos os dedos da lâmina amolada ao cortarmos uma laranja distraídos com a janela aberta e o canto de um pássaro. Abotoe os sapatos da sua mãe e beije-lhe os pés.

Códigos

Ao final de semana, uma nova missão: retirar do sereno e pôr pra tomar banho de sol as sete plantinhas em seus devidos jarros de zinco. Fecharei a janela com a rua deserta e abrirei cedinho ciente de que a vida das meninas em seus jarros de zinco depende da minha lucidez. Terei atenção ao dar a volta pela mesinha de centro. A quina de vidro se pega na artéria do meu joelho, adeus ermitão.

Férias

A escrita é um anzol de nuvens e o que pescamos são estrelas do mar. Prometa que não cruzará a ponte que juro não acender a fogueira debaixo dos seus pés. O vento seca as camisas no varal do banheiro e logo mais engomarei a calça. Sem tristeza, afinal o meu filho dorme no sofá com a beatitude de quem ficou de férias. 

sábado, 21 de novembro de 2015

Musgo

Pra fechar a janela, baby, retiro as sete plantinhas de jarro de zinco e lanço meu último olhar à rua. Passo pela mesinha de centro e derrubo um adorno de natal. Uma bailarina com trajes de fim de ano. Amanhã, estarei de volta. Ainda que morto de saudades, estarei de volta com as mãos trêmulas e quentes. 

Caixinha de blues

Que menina apressadinha de óculos, cabelos curtos e vestido passou agora debaixo da minha janela. O que leva dentro da sua bolsa a tiracolo? Batons ou um livro de poesia? Talvez um spray de pimenta pra jovens senhores curiosos que não têm coisa mais importante na vida do que admirar mocinhas de cabelos curtos, óculos, vestido e bolsa a tiracolo. 

Mosteiro

Quando seguro a faca entre os dentes e brinco batucando os dedos contra o vidro da mesa as palavras fogem. Algumas ficam em estado catatônico. Outras tentam furar meus olhos. E eu não demoro. Passo a faca na carne. Que delícia ver um texto capenga perder as asas e resignar-se a uma cela
com um banquinho, escrivaninha e uma jarra d'água.

Promessas

Choverá. As formigas começam a criar asas e voam pela casa de cachecol. Algumas não resistem e querem conhecer o meu coração por minha boca. Depois de engolir três, bebo água.

As hienas apaixonam-se muito cedo

Rezo para que a aliança de aço cirúrgico no meu dedo não se enrosque entre os cabelos de amores antigos e eu traga para nosso lar uma lembrança boa. Você não entenderia a minha felicidade poética. 

Caseiro

Os objetos de casa vivem me pregando peças: o cinto pendurado no varal prende-se ao bolso do meu bermudão e me puxa de volta ao banheiro. Sorrio e me desprendo. Sou livre, meu amor.

Diário de um ermitão

Queria alguém pra conversar sobre a escrita. Conversar e pegar na mão. Falar sobre os pontos de luz e os abismos de atração. As escalas de som e imagem. As surpresas das palavras. Mas não tenho ninguém pra conversar sobre a escrita. Conversar e pegar na mão. Resta-me apenas doar a minha cama. Vejo que agora é pessoal o atrito entre a mola solta e a minha coluna.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O sorriso das arraias é diabólico

Um pescador de arraias depois que perde um braço e incham as pernas ainda é um pescador de arraias talhando esculturas com seu canivete de nascença sentado no batente do boteco. Dor são os cílios queimando-se lá em alto mar. 

Poluição

O papel da poesia não é explicar como se forma o vendaval, mas nos fazer sentir os pés acima da terra e os cabelos ao léu. Nunca fui um leitor amante de poesia. Os poemas que amei [graças] enlouqueceram-me para sempre e ainda hoje pago meus pecados pelos horríveis que um dia escrevi.

Galinhada

Quanto tempo, meu bom pai, que não comia uma galinhada. A verdade é que nem me lembro se um dia já comi galinhada. Há quem a conheça por galinha atolada. Galinhada ou galinha atolada ou outro capricho qualquer de mãe africana, a delícia é que me senti um glutão a causar dó aos monges vagarosos e apáticos sorvendo suas sopinhas ralas trancafiados em suas celas. Quando era monge eu mentia. Nunca comi só sopa de legumes ou de ovos. Guardava dentro do travesseiro miúdos e coxas de pato. Tinha uma amiga, uma bela noviça, que driblava os anciãos e chegava até os calabouços da minha cela e me oferecia peças de pato. Sempre pato assado com alecrim. 

Pré-história

Não acredito no amor. Creio no sexo. Cresci. Sou um homem feito. Um jovem senhor de cinquenta anos não acredita mais no amor. Crê no sexo. Crê no doce de leite dentro da geladeira e no copo de água gelada. Crê no perfume da nuca da mulher e crê na vida louca da mulher. No amor não.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Violeta

Meu filho, conquistar e merecer uma sacerdotisa de coração doce e sorriso largo é uma questão de batalha natural contra os teus próprios demônios. Não se tem ao lado uma mulher sacerdotisa por destino, dinheiro ou vaidade - Ela que se aproxima, conhece a tua luz, a tua força e timidez, o teu sagrado moinho que move e purifica teu sangue. Ela - a sacerdotisa de coração justo e sorriso silencioso - chegará a ti sem que tu imagines. Esquece a túnica, o colar de serpente de ouro, a tiara de brilhantes. Ela nascerá nua em tua alma. E será a detentora de teu corpo. Meu filho, enquanto a rajada de vento não te derruba, luta contra os teus demônios. Os teus inimigos sabem da tua fortuna, caso Ela te escolha como homem.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Vício

Apavorante, meu amor, ter um inimigo aos pés. Não poder se entregar a uma taça ou a um cigarro. Não poder gargalhar e subir aos céus, e descer ao fundo do abismo, sem antes espreitar o inimigo e vê-lo como dorme (nunca dorme) e com que armas o inimigo forja a nossa queda. Triste, meu amor, ouvir o coração constantemente. Apontar o cano de um revólver na têmpora. Não descansar um minuto. Se eu mentir, o dia seguinte será de fúria, melancolia e fraqueza. A solidão é o meu par. Não se apaixone por minha dor. Os deuses fazem apostas. E o ventre arde.

Pedim

O meu mestre era um romântico espirituoso de ideias conservadoras. Tinha uma Yamaha Cinquentinha e uma graúna adestrada que saía da gaiola, passeava pela casa, aterrorizava as crianças e voltava para dormir. Uma espinha nas costas do meu mestre virou um problema sério. Ao ser extraída, acabou um sinal afetivo. Cuidei do seu funeral. Desde o corpo no subterrâneo do hospital aos últimos detalhes na funerária. Enfeitei o seu corpo com pétalas. Não bebi em sua memória. Dos seus princípios inabaláveis lembro-me apenas da cicatriz nas suas costas. Da sua Yamaha Cinquentinha e do passarinho inteligente. Só.

Viena

Comprei o bilhete atrasado e você já se apaixonou. Prometa-me, se você separar-se do seu pretendente lerá as minhas cartas. Escrevi coisas simples sobre nós. O quanto amava tirar os fiapos de manga dos seus dentes com os meus beijos. O quanto delirava com os seus olhos inacreditáveis de felicidade naquelas noites em que bebíamos duas tacinhas de vinho. Cheguei atrasado na estação e você já havia sumido. Jure que jogará o corpo do seu pretendente pelo caminho quando você ler as cartas. São coisas tão simples do nosso tempo de café da manhã na cama. Não deixe pistas. Jogue o corpo do seu pretendente de noite. Após o terceiro apito do trem. Ao fazer a curva pela montanha.  Peça o capote do maquinista e não pegue um resfriado. 

Quarta-feira é dia de magia

Um dia bom é descer a escada do prédio uniformizado e perfumado pro trabalho e quase dar um encontrão em uma menina e nos seus dois poodles. Conhecidos os cachorrinhos pelos latidos insistentes e conhecida a menina por sua voz doce e austera a acalmá-los. Dessa vez, nem um pio. Olharam-me os poodles pensativos e surpresos. Enquanto a menina sorria com aquele frescor da juventude.  É uma flor que se cheire essa menina, mas há em suas pétalas abelhas. Sei bem, filho.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Legião

Caminho em campos de batalha revirando os bolsos dos meus amigos à procura de flores secas e selos antigos. Muitos guardaram cartas perfumadas. A minha natureza é caminhar sobre corpos separando os vivos dos mortos e virando pelo avesso os bolsos dos meus compadres. O medo não é o pavor dos rostos, mas acordar algum amigo. O sonho deles, de todos eles, é sereno sob minha presença. Reviro os seus bolsos. Junto as flores secas e os selos antigos e reescrevo suas cartas para os seus amores. Parto de onde morreram.

Ao vencedor, as batatas!

Há mulheres de panturrilhas fascinantes. Nativas do Congo. Camponesas Quakers. Mas o que me fascina nesse divino momento é uma novinha a pular do ônibus. Saltitante. Tão mocinha e já senhora de si. O meu filho, um rapazote de 14 anos, decerto também se encantaria por essa pequena e teria nas mãos a chave do deslumbramento. Sim, falava das panturrilhas maravilhosas de certas mulheres. Amei, em um tempo distante, um par de batatas e chorava sobre essas batatas e fazia massagens nessas batatas quentes com as minhas lágrimas. Um dia, fugiram do meu alcance essas doces batatas. A partir desse infortúnio, nunca mais admirei as panturrilhas de uma mulher. Exceto hoje, no corredor do ônibus, uma feirante. Uma cabocla de tez cintilante.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Espectro

Do amor nada soube. Nada trouxe. Do amor apenas inventei. O ciúme foi meu aliado em questões de delírios e farsas. Cresci sob sua sombra - a do ciúme, não do amor. O amor não tem sombra nem sol. Do amor que nunca aprendi, imagino que não tenha sombra nem sol. Apenas imagino. Do amor sou um pateta. Um servo caolho. Um infeliz. E gente assim não deve mesmo conhecer o amor.

Aleluia

Não duvide do milagre. Só o náufrago sabe da alegria em receber de presente a memória de volta. O testemunho é valioso aos quase mortos no fundo do mar. Não gosto mais de mim bêbado. Chega ao fim minhas peripécias infernais. De tanta sobriedade a porta do meu quarto rangerá piedade por meu coração e suplicará loucuras. Morrerá tísica a porta do meu quarto. Não lhe darei ouvido. Ainda sou um náufrago. Peixes carnívoros beijam minhas mãos. E ao descer a escada do teu prédio as minhas pernas correm ao fundo do mar. Uma estrela em forma de papoula encanta-me.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Pastilha

Natural que ao beijar e sorver teu monte de vênus eu beba a delícia do teu gozo de mulher. Assim, canto melhor com a voz rouca um blues.

Comédia

Meu amor, perdão. Ando tão confuso de encantamentos que sigo meu caminho chamando todo o mundo de meu amor. Antigamente chamava os passarinhos de meu amor, as formiguinhas de meu amor, a minha xícara de meu amor. Perdão, se chamei as tuas primas de meu amor, as tuas amigas de meu amor, a tua mãe de meu amor e o teu pai de meu amor. Também morri de vergonha quando chamei o garçom de meu amor. Não almoço mais no mesmo lugar. 

Cordel

Há um quê de farsa em meus tormentos. Gracejos de graúna que nunca será corvo. A dor é tão pequena diante da minha infantil palavra. Já não busco céus. O abismo é comum a quem mais rasteja do que voa. Convido os comparsas para tabernas com a singeleza do homem sóbrio. Os dentes mordem a língua em espaços de tempo que não dou conta. O tempo é um demônio. O único que existe e faz de tolo o curioso. O novelo dentro do novelo só tem pulga. Atente-se, bichano. 

Sexta 13

Depois que você abrir seu coração se acostumará com a minha melancolia e espirituosidade. Reconhecerá que sou uma boa companhia. Só segure minhas mãos. Segure as minhas mãos. Não deixe que eu erga e brinde aos céus a primeira taça. Cante um blues aos meus ouvidos e cubra-me com as suas asas, meu anjo. Dói virar bicho e as noites são eternas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Fortitudine

O amanhã é uma hipótese. Não engomar a farda seria ingenuidade. Se o meu corpo não levantar e o espírito for plantar girassóis em outra freguesia, no mínimo, como prova da minha paixão pela vida,  os desconhecidos que entrarem em casa [sempre aparecem vizinhos para olhar o morto] encontrarão no varal do banheiro, bem passadas e repousando no cabide, a camisa e a calça do trabalho. Incrível o inseto que saiu do bolso da camisa de asas trôpegas. Quase beijou a palma do ferro de engomar em brasa viva. Não sou tão psicopata assim. Só dei um peteleco. E voaram os pelos das asas do inseto sujando o brasão. Inseto de sorte, baby.

Novembro Azul

Deixe-me tomar um banho primeiro. Ou você prefere o meu beijo da rua? Bonachão pra chuchu o seu jovem senhor ultimamente. Completei cinquentinha, lembra? Onde você estava que nem me enviou de presente uma ânfora de cerâmica para os meus novos cabelos brancos? Você sempre soube o quanto simpatizo com esta palavra "ânfora" e também com "próstata". Espero que o dedo do senhor urologista seja um dedo comum. Sem essa de aberrações de circo. Um tempo atrás escrevi um poema onomatopeico em que lembrava um cavalo trotando "prós-ta-ta... prós-ta-ta-ta..." Se a minha glândula de mostarda estiver do tamanho de uma tangerina, por favor, não desapareça. Quero você perto dos tubos. Desligue todos.

O alquimista de vazios

Ando tão contente da vida que faço a barba no escuro para não me apaixonar pelo sinal do meu lábio. Mas não se surpreenda, se eu escrever um texto medonho de um órfão que acabou de matar os pais adotivos e planeja decepá-los. Percebe, meu amor, como é fácil mudar o rumo dos seus sentimentos?

Coroinha

Catei as mais deslumbrantes pedrinhas nas margens do rio da minha cidade. Lavei e sequei as lindas  pedrinhas. Pintei as pedrinhas encantadas de vermelho, azul, amarelo e verde, à tinta guache. Juntei e colei as coloridas pedrinhas esculpindo um palhaço. Guardei o palhacinho dentro de uma caixa de sapatos  forrada a gramíneas e pétalas e ofereci [com todo o amor de um mancebo de treze anos] à minha professora de inglês que esboçou um sorriso e brincou cruel "Cadê as espinhas do palhaço? faltam as suas espinhas no palhaço..." Chorei. Arranquei das mãos da professora Hélia a delicada escultura e fugi ao casarão dos meus avós. Abraçado à caixa de sapatos [forrada a gramíneas e pétalas] chorava lágrimas de ódio. Calei-me. Despertei da manjedoura o palhacinho e lancei-o contra o muro do quintal dos meus avós - que era o mesmo do cemitério. "Palhaço, palhaço, palhaço..." Repetia centenas de vezes e ouvia de volta o palhaço repetir "Palhaço, palhaço, palhaço..."

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Brisa que levanta a toalha da mesa

Não escorrem pelo rosto as lágrimas. Estas são iguais àquelas palavras que não se eternizam pela escrita. Mas pelo que se guarda e se diz murmurando só pra gente ouvir. Estas lágrimas não chegam aos lábios. Não forçam lembranças más ou boas. Como tocam as pontas dos cílios, somem sem deixar os cantos dos olhos nem sequer úmidos. Chamas que eram fogo, apagam-se. E permanece a palma da mão quente e a boca sussurra o que ainda será dito.

Templário

Sempre borrifo um perfume especial no colarinho da minha farda. Nunca se sabe [nem mesmo o Oráculo de Delfos] qual a estagiária que entrará na sala, caminhará até a minha mesa e com o rosto tépido sobre meus ombros exigirá um ofício para o gabinete do secretário. Nessas ocasiões, os meus delirantes escritos são inúteis. O que seduzirá, e despertará encanto na menina, apenas o perfume especial borrifado no colarinho. O poeta e boticário William Blake é um grande amigo. Vive enclausurado no seu sótão a elaborar e me oferecer fragrâncias místicas. Não há estagiária novinha que resista e não enlouqueça.

O Bosque

Lisos à base de pranchinha ou encaracolados a fios de ouro, amo os seus cabelos com tão cálida paixão que cortaria os meus pulsos e ungiria a sua cabeça com o sangue da minha poesia. Entenda, meu bem, que a minha poesia é o Universo silencioso do meu amor - de onde não se roubam nem se perdem palavras. É tudo muito raro, fino, um sopro de canário.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Escritura

Minha mãe de 78 anos [ministra da sagrada eucaristia] acabou de chegar do Shalom e presenteou-me com um saquinho de pipoca doce. Temi que estivesse benta. Pipoca doce só serve se estiver benta para um diabinho como eu. Dona Beatriz sorriu e perguntou-me o que seu filho andava lendo. "Bocage, mãe, o santinho Bocage." A ministra fez o sinal da cruz.

Atordoado

Se você se engraçar, eu me engraço. Viu meu comportamento de lord, nesta manhã, ao pegar o ônibus? Dei-lhe passagem com as mãos de um cândido cavalheiro. Sou muito educado e falastrão, afinal só penso em levá-la pra cama. Dormir contigo seria uma dádiva divina de um deus pagão. Mas sei lá o que ocorre com meu espírito. Acredito que os fantasmas das mulheres a quem escrevi poemas, ou amedrontam quem se apaixona ou me fazem trabalhos específicos carregados de solidão e eu fujo. Tranco a cara. Faço de conta que leio um livro de Eça. Sou mesmo um padreco de Leiria.

Um francês maldito perdido entre tulipas

As palavras antes das sílabas e dos pensamentos são entidades. Germinam-se por simbiose próximas dos seus servos. O ventre do homem e das mulheres comungam-se da fertilidade das palavras. Dos rodopios e dos passos cautelosos das palavras. O mundo que parte da minha realidade é assombrado. A carruagem passa defronte das tabernas. Ouço os ruídos dos dentes frenéticos dos possessos e felizes homens. As mulheres, lânguidas, desmaiam em sonhos com um batom. Distraídas? Nunca. As mulheres quando se olham no espelho com o batom suspenso em sinceros afagos nos lábios jamais viajam distantes de quem amam. E as palavras atacam-nas. Sem piedade. Os caballos arrastam minha carruagem pelas tabernas. As palavras se forjam no silêncio [antes das sílabas e dos pensamentos]. Não vivo nessas horas. Não conto com a vida nessas horas. O meu mundo é assombrado, baby.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Angico

Quando conheci Dom Quixote de La Mancha ainda não era responsável juridicamente por meus atos, fato que me levou aos abusos sobre a alma do Cavaleiro da  Trista Figura. Não o deixava em paz um segundo. Galopava ao seu lado entre os campos de girassóis e de papoulas e bebia da fonte luminosa dos seus delírios. Os moinhos eram de fato terríveis gigantes e nunca meus olhos toparam diante de uma dama tão formosa quanto a senhorita Dulcinea del Toboso. Sancho Pança servia-nos a cada terço de hora um cachimbo com cactos da Patagônia e sorríamos muito quando o meu mestre dançava xaxado fingindo-se incorporado da altivez e sobriedade de Lampião. Ao cair da noite, Dom Quixote reservava-se intimo e confidenciava aos meus ouvidos em voz roufenha o seu pesar. Nessas horas, Sancho Panço dormia ruidosamente envolvido entre as patas do seu burrico. O meu mestre confessava-me que não tinha certeza das suas ideias e dos seus arroubos. Insistia que era eu o seu verdadeiro mestre e que minha a divina incumbência de ensinar-lhe a arte do flerte e da conquista através das palavras escritas. Sofrendo um absurdo, respondia ao meu senhor [tantas vezes o mesmo angustiante assunto do coração de um bêbado] que há tempos rasguei e queimei as minhas cartas amorosas de idílios, namoros e matrimônios. O meu mestre Dom Quixote de La Mancha, O Cavaleiro da Triste Figura, gargalhava e mudava de assunto crente que um dia eu daria mostras do meu amor por seu espírito venturoso e dedicaria todas as noites de lua cheia a segredar-lhe os meus escritos líricos. Confiante em tal esperança, oferecia-me mais vinho dos monges do Mar Morto e voltava a dançar xaxado abraçado à sua lança como os cangaceiros abraçavam seus fuzis Mauser com delicadeza e luxúria.

domingo, 8 de novembro de 2015

Periodontia

Os dentes de uma hiena estão melhores de que os meus. Depois que a minha dentista segurou-me as mãos e disse que andava sofrendo muito, nunca mais retornei ao consultório. Só queria que cuidassem dos meus dentes. O meu coração não tem cura. São nervos loucos.

Patchouli

Creio que as mulheres percebem o meu amor e minha volúpia. As mulheres que sentam ao meu lado no ônibus, as que trabalham na mesma sala, as da fila dos caixas de supermercado e lotérica, as que tocam meus braços nas calçadas. Em todos os lugares que as mulheres passam e olham os meus olhos, envio algum sinal de amor e volúpia. Nunca se encantam mais que um minuto dentro da alma dos meus olhos. Dentro da alma dos meus olhos as mulheres entendem o risco de amar um santo. Minha mãe disse que sou um santo, portanto sou um santo. [Quem é louco de duvidar de uma ministra da sagrada eucaristia?] Nem os deuses presenciam os meus rituais de homem perverso e egoísta, exceto quando amo e me perfumo. Neste caso, baby, o mundo todo sabe.

Cisne

Fugi do manicômio devendo algum dinheiro. Não voltarei pra pagar a minha dívida nem oferecerei cigarros ao porteiro. O meu pescoço roliço e meus ombros fortes esqueceram o passado. As musas se não forem desvirginadas antes do banquete, a tragédia será eterna ao homem ingênuo de olhos fraternos. Distante de toda aquela vaidade de morfina, as vozes que não cooperam com meu estado criativo não duram muito tempo no meu quarto. A solidão sabe criar amigos. Naquele tempo, cercado de artistas, poetas e escritores fabulosos, a vida não era delicada como agora. O que escrevo não tem importância aos olhos cúmplices e cínicos. O que escrevo é uma força a mais para mover o moinho e deixar quieto o manicômio com sua vaidade de morfina. A cegueira surge dos olhos cúmplices e cínicos. E já estou bem de óculos novos.

O campanário

Quem me vê engomando a camisa de linho do trabalho [o cuidado em não passar o ferro sobre o brasão do fardamento] decerto, pensariam tratar-se de um tecnocrata meticuloso. Ora bolas, tolice. Não veem o outro olho medonho de Kafka ansioso por uma nódoa de fezes de pombo no colarinho? A língua entre os dentes é apenas uma questão de transe e mordida. A lucidez é epiléptica, catatônica e apocalíptica. Às vezes, ousamos calçar sapatos para que as asas não fujam dos ombros.

Cana da Nazaré

Costumava, a séculos atrás, empilhar livros na palma direita e na esquerda. Com os olhos fechados, calculava o peso e a mão que mais pesasse seria escolhida como leitura da semana. Depois que virei pescador, em alto mar, faço o mesmo com um punhado de peixes em cada palma de mão. Certa manhã, chovia bem fininho, abri os olhos e dançava na palma da mão direita um cavalo-marinho. Não pesava coisinha de nada, mas era um cavalo-marinho grávido que trazia no coração sonhos de corais. Uma arraia-manta que pesava na palma da minha outra mão lancei fora. O meu irmão, admirando tal loucura, apenas sorria e sussurrava "irmão louco... meu irmão louco..."  As ondas - obra do corpo cheio de tentáculos de um aterrorizante monstro a debater-se e a mergulhar - afundaram nosso barco. Seríamos náufragos e possíveis comida do monstro, se não nos socorresse o cavalo-marinho. Segurando-lhe a cauda, e puxando meu irmão pelo punho, segui o meu mágico cavalo-marinho que nos conduziu a uma ilha encantada. Casei-me por lá com uma nativa que havia enviado sob feitiço de matrimônio esse cavalo-marinho. O meu irmão retornou pro Ocidente. E canta essa história em mesas de bares de pescador. Depois do terceiro trago, prestam mais atenção e depois de duas garrafas de pinga os pescadores da minha aldeia juram que estavam ao meu lado e que ainda têm na lembrança o meu doce sorriso de felicidade, no altar, segurando a mão da filha do Grã-Sacerdote. Só me falta ter coragem e aprender a surfar. A menina adora ondas gigantes de Nazaré. 

Platônico

De tantos amores à distância, em companhia de filósofos, dentro de cavernas a comer pão sírio e beber vinho de alto teor alcoólico, aprendi algumas palavras devastadoras à alma feminina. De todas que ouvi da boca de hedonistas, a mais infeliz é "adúltera." A mulher não suporta ser chamada de adúltera. Morre. Enlouquece. Adúltera, aos seus ouvidos, é como cravar um punhal de ponta envenenada em seu coração. Até suporta a mulher ser reconhecida como vadia e cachorra - algumas, por sinal, cantam felizes em bailes funk, na cozinha ou na cama. Adúltera não, por misericórdia. Adúltera lembra aquela passagem bíblica em que um messias desencoraja e envergonha um bando de homens brutos e tolos - já munidos de pedras nas mãos ansiosos a apedrejar uma mulher. Adúltera é além da traição. Adúltera é seduzir a própria serpente e fazê-la experimentar da própria maçã. Adúltera é o reconhecimento de toda a força carnal e religiosa de que uma mulher dispõe ao seu deleite e tragédia. O homem adúltero é um canalha. Apenas um canalha. Nunca atingirá a elevação espiritual da mulher. Um canalha é um canalha. Enquanto a mulher adúltera, quase sempre, é uma alma superior e bela. Amo as mulheres adúlteras. E lavo os seus pés e beijo o seu ventre e faço-lhes um penteado novo.

sábado, 7 de novembro de 2015

Ciclope

O cego que é puro ama as multidões e prepara o banquete. O cego que é puro, de vez em quando, envolve-se entre as vozes e os perfumes. Perde a noção. Dirige seu barco ao precipício. A pureza não é falta de sentidos, mas acúmulo e vazão de sentidos apurados. O cego que é puro mergulha. Admira-se com o fundo do poço. Embriaga-se da própria falta de ar. Apaixona-se pelos calafrios. Sagrada vertigem quando a porta fecha-se diante dos seus olhos. Ninguém por perto. Ninguém distante. O cego que é puro lembra-se das ovelhas a roubar da caverna. Alimentá-las sob as estrelas. O vento da planície. A brisa que parte do meio do mar. O cego que é puro pesca sardinhas. Faz fogueiras. Bebe vinho. Ninguém a lembrar. Ninguém que se lembre dos seus olhos. A pureza nasce de tal calidez que o cego que é puro não controla as mãos. Ainda tem dentro do alforje peles das últimas ovelhas. Estica sobre a perna a pele de uma ovelha. Rasga com os dentes algumas palavras. Diria que é um poema, mas o cego que é puro não enxerga bem. E levanta a pele da ovelha contra o brilho das estrelas. É, parece um poema. 

Teu silêncio

A ação em contemplar da janela uma árvore é libertadora. Os meus braços acordaram longos para derrubar os antigos vícios. Caem da mesa cartas, poemas e fotografias. Por que, baby, tantos segredos e arrebatamentos, se um dia acordamos bem? Quase conscientes de que a vida é cruel e mansa qual um bisão em época de florescimento dos cabelos das cerejeiras. Um bisão apaixonado é louco. Um homem é menos. As cerejeiras balançam os cabelos e caem meus vícios da mesa: poemas, cartas, fotografias e um cálice de absinto. Acordei bem. Quase liberto das tragédias que me ofereceram com o meu nascimento. Não falarei das minhas cicatrizes. Os meus cílios que por vontade própria voaram dos olhos à palma da minha mão trouxeram-me mais sorte. Coisa boa é saber [sem palavras] que existe amor. Um bisão apaixonado é cruel e manso como a vida. E sou um homem loucamente apaixonado pela vida. De onde, baby, você imagina que surge queimando minhas artérias a doce melancolia?

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

2,5 em química

Incrível como o Universo mudou. No meu tempo, não havia tantas estrelas. Cada poeta vivia em uma. Abraçado até o fim da vida a essa estrela de nascença. Hoje, pelo que vejo, são tantas estrelas e poetas que me emociono. Tanta gozação e luxo. Ninguém corta pulsos. Ou mete o rosto em um saco plástico e abre a torneirinha do botijão de gás. Hoje em dia, escolhe-se quantas estrelas desejar. Mentir é um bom caminho. Ninguém é mais aleijado. Passos endireitados e altivos. Sorrisos de felicidade. Na base do meu cérebro, meu amor, não existe estrela. Só um caroço. E explodirá de cansaço. O ermitão cansado é uma piada. Um fim trágico. O céu não me diz o que fazer [tantas estrelas assim, meu amor, a quem confiar minha melancolia?] Não sairei para beber nem beberei em casa debaixo da mesa. Por favor, nem me lembre de que em certas noites cuidei de rosas. Troquei a água do jarro de vidro. Joguei ao lixo as hastes secas e mais espinhosas. Se hoje é sábado? Dizem os poetas que é a melhor noite para enlouquecer. As bruxas vestem cinta-liga.

sábado, 31 de outubro de 2015

Quadro de família

Quando todas as pessoas da fotografia morrerem, retirem o quadro. Passem duas ou três mãos de cal ocultando a marca vazia do retângulo da parede. Apaguem a lâmpada da sala e fechem a porta. Não entreguem as chaves nas mãos de desconhecidos. As lembranças da minha família são sagradas. E todos mortos, inclusive eu, seremos mais vistosos como fantasmas de um século atrás. Guarde-nos na boa memória de risos e de lágrimas, meu filho. E convide os filhos dos seus filhos para um último adeus.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Anjo da guarda de jazigos

Não corri para abraçar tuas pernas e impedir a tua partida. Os meus irmãos mais velhos, aos prantos, tentavam te arrastar de volta pra casa. Da janela, não movi um músculo. Duas lágrimas queimaram meu rosto. Tenho poucas lembranças de ti. As que sobraram, minhas mãos gastaram todas a fantasiar e embelezar sobre tua cabeça e teu espírito o heroísmo de D. Quixote. A verdade que tu construías túmulos com um pano em volta da cabeça e depois do trabalho bebias uma pinga no boteco da esquina da rua do cemitério. Sabemos que é perigoso mexer em cicatrizes mortas. A criança, depois de atingir um delicado nível de sofrimento, prefere o silêncio. Estamos quites e não devemos [nem a nós próprios nem ao outro] algum tipo de perdão. Somos muito parecidos. Temos os mesmos cabelos brancos. Os mesmos cabelos brancos, pai.

Psicografado

Meu fraco é sorrir. Daí, a alcunha "Risadinha". Gente que tem compulsão por bebida. Outros por sexo. Minha fraqueza é o riso frouxo. Certa vez, na missa de corpo presente do finado Joca, meu primo "grande Joca", uma abelha pousou no seu nariz. Entrou pela narina. Saiu. Chegou aos lábios. Forçou entrada no canto da boca. Jovita, sua esposa, enlouquecida  de tanta aflição, esbofeteou o rosto do defunto Joca. Caí na gargalhada e não existia alma viva, ou morta, que interrompesse a hilária febre do meu vício. A família, então, sob assembleia de notáveis, chegou ao seguinte veredicto: expulsão da minha pessoa a pontapés. Deolindo, mais três vaqueiros do Exu, solícitos e felizes, resolveram a pendenga. E me expulsaram com requinte de crueldade. Não me avexo com hematomas e fraturas, se sou agraciado com o riso frouxo. O meu bálsamo. O meu ópio de Charles Dickens. Nunca mais fui convidado a batizados, casamentos e atos fúnebres. Tornei-me um pária na minha cidade. Minha mãe deserdou-me. Meu vô baniu-me. Exu ficou mais triste. Conheci um monge andarilho. Segui seus passos. Alcancei a Iluminação. Hoje, vivo nas montanhas da Patagônia, rindo à toa pras lhamas de lá. Tranquilo. Sem ser apontado na rua como um louco e canalha.

domingo, 25 de outubro de 2015

Mística

Já joguei búzios, acredita? Antes de fechar os olhos, e abrir as portas do sobrenatural, mastigava uma flor de cacto do Atacama. Trouxe amados sumidos às suas apaixonadas mulheres saudosas e solitárias. Indiquei caminhos de luz. Quebrei encantos do mal. Cobrava o preço justo. Após cada consulta, ouvia um blues e fumava um charuto. Charuto bom, afinal só pedia aos meus clientes, como honorários dos orixás, charutos e uísques dos bons. Escrevia cartas também. Cobrava mais caro por esse tipo de transe. Muita força e emoção ouvir entes queridos em outro plano. Fiz minha aposentadoria aos 47 anos, acredita? Tenho umas terras no interior de Minas. Uns gados. Não tenho automóveis. Nunca aprendi a dirigir. Não, nunca mais joguei búzios. A intimidade com seres de outras dimensões tem o seu tempo certo de acabar. Uma noite, avisaram-me: ao jogar os búzios, estrelas do mar caíram no tapete vermelho e explodiram. Subiu uma fumaça, sabe. Nunca mais joguei búzios. Agora sou jornalista, ou melhor, consultor de gastronomia. Tenho receitas ótimas de comida africana e asiática. Vem, preparo pra você. Não me peça pra ler sua mão. Não acredito que as linhas das mãos mostrem o destino ou o passado. As linhas das mãos, no meu inocente julgamento, são apenas marcas do tempo em que éramos crianças na lavoura ou na boa vida de burguês. As minhas linhas não me confessam coisa alguma da minha solidão. Vem, preparo um prato especial da culinária africana ou asiática. Você escolhe. A propósito, gosto de vinhos e você vai adorar uma garrafa holandesa do século XVII. Presente que ganhei de uma alma antiga que precisou dos meus serviços. Não me peça pra ler suas mãos, por favor. 

Teu nome

O meu primeiro amor era leonina. Cabelos castanhos e olhos de mel. 17 anos de sedução e malandragem. Risinho no canto dos lábios e bochechas rosadas. A partir do nosso providencial encontro, acreditei em milagres. E como não poderia ser diferente, a nossa energia amorosa causou tanta inveja, ciúme, ódio. O seu perfume Eau de L'arc, ainda hoje, circula pelos vasos sanguíneos da minha alma. E todas as cartas tive de queimar ou enlouqueceria para sempre. Vivíamos grudados no batente da igreja, nos bancos da praça da Sé, nas almofadas e sofá da casa de minha tia. E os nossos inimigos faziam trincheiras nas calçadas e nos bosques. Forjavam flechas com pontas de veneno de rã. Escreviam e espalhavam missivas anônimas. Invocavam as forças demoníacas para nos separar. Perdi muito tempo com sonhos de eternidade. Na hora em que tinha de ser, a minha mestiça ofereceu-me as chaves dos seus segredos. Perdi muito tempo com palavras e sensações de perda. Escaparam as chaves dos meus olhos e caíram no bueiro onde um rato enorme [há muito de olho na minha pequena] roubou a minha felicidade. Enlouqueci para sempre. E o meu primeiro amor perdeu um seio. 

Banquete

Meus amores, joguem nas minhas mãos todos os tipos de louças e lavarei cada textura de prato e panela e feitios diversos de xícaras e talheres com o mesmo zelo e contemplação. Amo lavar os trens, sobretudo do almoço, e odeio engomar. As minhas camisas e calças do trabalho, os jeans e os bermudões, entrego para uma portuguesa fazer o serviço infernal. Da minha avó imagino o martírio das inúmeras e infindáveis peças de linho do meu avô. Nunca vi, na minha infância, minha vó franzir o cenho, morder os lábios, balbuciar azedumes ao engomar as vestes do seu amado. Se a portuguesa, a quem ofereço as dobras dos meus panos, não fosse comprometida e mãe de quatro filhos, até poderia considerá-la um belo partido. Casaria. Claro, uma única condição, se a matrona admitisse extrair aquele sinal acima do lábio. Um sinal exótico de pelos ruivos. Ou não, bem. Vai que sou apaixonado justamente pelo sinal da portuguesa. Um sinal de pelos ruivos tem o seu charme. Quase um convite lúbrico.

Orgias de um noviço

Não é lenda, baby. De fato, a leitura pode enlouquecer. Imagine uma dúbia alma entre a filosofia oriental e o mundo bukovskiano. Lembro que acordei em um sofá estranho abraçado aos meus livros, de botas e um cigarro apagado na boca e outro aceso nos dedos. Sob a luz natural do candeeiro - que é a lua cheia - cheguei à cidade e os bares todos abertos. Recomecei a misturar bebidas com xarope e só então as vagas imagens das noites anteriores iam se refletindo nos rostos dos boêmios, putas, traficantes. E não largava os meus livros. Deveria ter sido padre ou matador sniper, mas naquela noite ainda era um fraco errante de mente furada e coração viciante. Não desprezo o meu tempo insano. Não cuspo contra o vento. Entretanto, hoje em dia, longe desses lugares posso adivinhar com clareza a minha morte. O meu espírito junta no alforje as minhas últimas memórias e não me arrependo do vazio. A pureza não cai do céu, meu amor. O sórdido caminha com desenvoltura, após lembrar-se dos abismos. Nem sequer uma cicatriz em carne viva. Parece-me que passei incólume pelo inferno. Só que não. Morderam-me a ponta da língua. Lembra que lhe falei do seu fantasma a me visitar, baby?

Noivado

Prometo-lhe orgasmos múltiplos e uma rosa branca todas as manhãs. Juro ouvi-la sobre o seu trabalho, as suas amigas, o vestido novo, o best seller adolescente e a antiga novela das oito. Em dias estressantes, farei massagens nos seus pés, costas e ombros. Depilarei as suas pernas. E se for seu sonho, depilarei o seu jardim de mel. Caso você goste de andar de bicicleta, darei voltas contigo na pracinha e, à noite, se você se embebedar com aquele vinho de jabuticaba, limparei seu vômito, tirarei seus sapatos e deitarei o seu corpo sobre lençóis novos e travesseiros perfumados. Minha palavra que nunca a deixarei sozinha naqueles dias de pura sensibilidade da sua alma feminina [em que você imagina o fim do mundo e que é a mais infeliz das mulheres]. Se algum amigo ligar não atenderei. Se o número for privado, permitirei que você vasculhe a agenda do meu celular. Palavra. Só lhe peço duas coisas: não me faça perguntas sobre minha infância no orfanato e não ria do meu nariz.

sábado, 24 de outubro de 2015

Pai & filho

Comprei mil batatinhas, amendoins e um garrafão de três litros de guaraná. Eu não, meu filho. Grana dele. Não comprei nem uma latinha. A minha lucidez é necessária em sua presença. O rapaz argumenta situações delicadas e complexas sobre as quais ou estou lúcido ou perco a delícia do papo cabeça. Meu filho tem quatorze anos e ama a tecnologia do militarismo de ponta. Não gosta de poesia. Mas inclina-se, agora, a ler os meus escritos. Uma vez que lhe confessei que não escrevo mais versinhos de moça tísica. A poesia é pura, esclareço-lhe. O poeta é um errante. E precisa o poeta ter coragem. Não tive. E entupo-me de batatinhas e amendoins. O rapaz gargalha e pergunta qual dos últimos escritos que gostei. "A maçã" E completo: "Trata-se do desejo de uma mulher pela imortalidade da sua bunda." O carinha espanta-se. Fita-me em silêncio. Creio que talvez o rapaz leia. Melhor que leia "A maçã" primeiro, depois poderá ler o Corvo.

Lírica

Apaixonar-se por uma violinista é viver chorando pelos cantos da casa. Depois que os passarinhos sumiram da minha janela, a ideia que tive para permanecer cálido com os olhos febris foi apaixonar-me por uma violinista. Bárbara não costuma conversar. Sorri muito, entretanto. E passa o tempo da eternidade afiando e modelando as unhas no seu violino. E choro. Sobretudo após o almoço quando Bárbara escolhe a mais doce melodia para que o seu amado repouse. Quem há de sentir saudade de passarinhos, se Bárbara viaja em gestos gentis tocando o seu instrumento? Apaixonar-me por uma violinista salvou a minha alma. Já andava triste da minha vida com tanta melancolia, apatia e fúria. Bárbara adivinha meu silêncio e entorpece o meu coração com nuvens de fumaças sopradas de uma distante chaminé.

Bordados

Mulheres têm medo de barata. Normalmente, as de sangue mais frio e acostumadas a pisar no coração do poeta. Merece. O poeta merece o salto alto agulha trespassado em seu coração. O poeta que não merecesse viveria traficando armas, papoulas e figurinhas raras de álbum de infância. Graças que não sou mais poeta. Cansei de escrever poemas e da vaidade ridícula do invisível. Se o antigo poeta que vestia minha carne e calçava os meus ossos ousar invadir a minha alma - explode. Não sou tolo, baby, vivo protegido por minas terrestre e naval. Chego a ouvir gritos de pavor e voam artérias por sobre a minha cabeça de santo. Sou um santo. No mínimo, o meu nome é de um santo. O mais jovem não mártir canonizado pela igreja católica. Puxa, baby, você não imagina como esse meu nome de santo ajudou-me [facilitou as coisas] quando passei uma temporada no inferno. Notou minha ausência? Poetas têm medo das mulheres que não têm medo de barata. Que coisa, hein? 

O poder do delírio

"Pecaminoso, carnal, distraído, mas com o coração cheio de amor." A frase que usei para flertar uma dama. "Fútil." Respondeu-me a senhora com o dedo entre as páginas 19 e 20 de Stendhal. "Desculpe, mas não sou fútil." Retruquei. A dama suspendeu os óculos sem tocá-los. "Não me referi a você, estranho. Digo que esse cara que escreveu esse livro é um fútil." Espantei-me. "Stendhal?!" A moça levantou-se. Encaixou o livro entre outros na estante da biblioteca da UFSC e perguntou-me séria. "Vamos cair fora desse lugar e fazer sexo lá em casa?" "Libidinosa e maluquinha..." Sorri. Assim que chegamos, a dama acendeu um cachimbo de ópio e me confessou que era sacerdotisa. "Não ligo." Beijava-lhe as coxas. "Tem certeza que não se importa?" Sussurrava a dama. "Sim, meu doce... claro..." As suas pernas mudaram de forma. E o que eram pés passaram a nadadeiras. E os braços asas. Uma entidade naquela hora era muito azar. A mulher era sacerdotisa. Vesti-me e voltei pra biblioteca da UFSC. É batata sempre encontrarmos por lá jovens deslumbrantes. Sacerdotisas e entidades também.

A maçã

O tesouro de Jackeline era a sua bunda. Uma dádiva da natureza. Descrevê-la? Impossível, meu filho. Nem mesmo os artistas do submundo parisiense conseguiriam uma imagem visível e palpável daquele monumento de bunda. Uma coisa fabulosa, mágica, estonteante. E Jacke, desde adolescente, fazia um imenso sucesso no colégio, shopping, pracinha e até na missa quando Jacke caminhava na fila da comunhão. Era um pecado a bunda de Jacke. Os niños morriam de amor pela bunda de Jacke e venderiam serenos suas almas. As amigas de Jacke e as inimigas de Jacke viviam com edema de glote de tanto ciúme. Jacke não teve filhos para não desfigurar a sua bunda. Tinha medo que virasse geleia o seu tesouro. E muitas portas abriram-se para Jacke, ou melhor, para o seu encanto de bunda. Aos cinquenta e três anos Jacke cuida muito bem do seu prêmio divino. Malha, faz dieta especial, não passa muito tempo sentada [que é pra não achatar a forma celestial da sua bunda], caminha na pracinha e adora quando os cavalheiros inclinam a cabeça e levantam a cartola em respeito à sua bunda e muito mais adora quando os peões das obras gritam dos andaimes elogios descarados em honra da sua extraordinária bunda. Jacke não tem namorado. Só fãs. Um dia escrevi um poema pra Jacke, digo, pra sua bunda e recebi uma mensagem de volta. "Obrigada, poeta, "ela" adorou..." A bunda de Jacke é uma entidade à parte. E se "ela" - a bunda - gostou do poema que escrevi, sinto-me lisonjeado. Não interessa o que Jacke pensa. As suas ideias. Seu espírito. Doce e carnal é a sua bunda arrebitadinha. Quando Jacke completar a idade cruel do corpo humano em que tudo despenca, tenho medo que Jacke tente o suicídio. Motivo pelo qual, nesses últimos anos, vivo trancado no meu sótão entre fórmulas da Renascença tentando uma poção secreta para oferecer a Jacke. Seria uma heresia um dia a bunda de Jacke perdesse o seu feitiço. Já consegui algum êxito em agrupar células sintéticas sem enfraquecer a longevidade da natureza espontânea. Creio que a bunda de Jacke [sob o deleite dos pagãos] logo será uma bunda imortal.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Carruagem

No final do século XIX, fui cocheiro. Não existia toda essa intimidade com os passageiros de que alguns taxistas se vangloriam. O meu lugar era fora da cabine. Sentado no alto, lá fora, recebendo no rosto geada, chuva, poeira, fuligem, sol e sereno. E pagavam míseras moedas. Ninguém queria saber das minhas mazelas. Da sopa rala. Da minha esposa tísica. Do meu filho que tinha epilepsia e sofria do boato que circulava pela vila de que era um fruto maligno o meu garoto. Não justifico os meus crimes. Mas enforcar as damas e esfaquear os senhores, em noites escolhidas por acaso, causava-me um certo prazer imaginando que as minhas vítimas não jogariam mais pro alto as míseras moedas como se eu fosse um mendigo. Um maldito bêbado. Estrangulei muitos pescoços de damas indefesas. Pescoços alvos com medalhas de santos. E sujei as mãos de sangue do baço e fígado dos senhores entre 60 e 70 anos. No final do século XIX, sobrevivi conduzindo [no meu veículo puxado a cavalos] mulheres elegantes e homens abastados. E muitos eu matei. E ao chegar em casa era um cocheiro igual a muitos. Um inútil fantasma.

O maravilhoso mundo dos gatos

O que pensam os bichanos? Descobri que os mais novos só pensam em brincar. Os mais velhos só pensam em sexo. E brincam nos telhados e nos becos. O maravilhoso mundo dos gatos é uma brincadeira. Só não entendo por que vejo tantos deles mortos: encostados ao meio-fio, canteiros e no meio das ruas. Para onde vai aquela contemplação? E todo aquele sexo? Descobri que os mais novos quando morrem acabam espíritos que cuidam dos poetas tristes e os mais velhos cuidam dos mais tristes. Os poetas vivem por graça dos gatos que morrem na juventude e na velhice. A história de passarinhos, poeta com alma de passarinhos, é uma lenda, meu amor. Os poetas são gatos tristes. Debaixo da mesa ou largados pelas calçadas em noites frias. Pelo menos, quando fui poeta, era triste. Contudo, há outros poetas que são ratos, rinocerontes, pardais, lagartas-de-fogo, elefantes e tartarugas.

Jocoso

As minhas amigas [em tom de galhofa] perguntam-me se não tenho medo que roubem a tua aliança de aço cirúrgico. Explico-lhes que anteriormente usava uma de latão, em seguida, alumínio, depois bronze e que, na verdade, espero a mulher que valha uma de ouro. Algumas amigas entendem e requebram-se em sorrisos e simpatia. As mais radicais [daí, pouco espirituosas] passam a me odiar ferozmente e dizem que sou presunçoso e machista. Veja só, minha pequena, como este jovem senhor de óculos novos e sem cavanhaque é incompreendido. Nem imaginam, quando volto pra casa, o mais gentil dos homens com a mulher que senta ao meu lado. Agora à tarde, por exemplo, ofereci a uma menina uma caixinha de caramelos que um vendedor amputado vendia com a voz de locutor de corrida de cavalos. Só depois, lembrei que não é de bom-tom um lobo mau oferecer doces às menininhas. Quase morri do coração. Sou tímido demais pra essas aventuras pueris e delicadas.

Sexta

Curioso, baby, ultimamente os meus lençóis e travesseiros tão perfumados. Embora não acredite em eventos sobrenaturais que o coração não explique, inclino-me a suspeitar que o seu fantasma [mais vaidoso que você enquanto era viva] visita-me todas as noites. E acordo feliz atordoado entre jasmins, almíscar e patchouli. Feliz não é bem a palavra. Acordo com um riso no canto dos lábios. Você sempre me disse que este meu sorriso é maldoso, cínico e superior. A felicidade talvez seja assim, baby. Perversa.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Homérico

Quando o circo pega fogo é um equívoco imaginar que o palhaço foge. Quando o circo pega fogo o palhaço realiza os seus sonhos: entra na jaula dos leões, gira de moto no globo da morte, lança facas contra o corpo da bailarina, equilibra-se na corda bamba, cruza a plateia feito uma bala de canhão, veste a cartola de dono do circo e anuncia o último e aguardado número. Quando o circo pega fogo o palhaço é o homem mais feliz do mundo. Ninguém imagina como o palhaço é feliz quando o circo pega fogo. Chega a apaixonar-se e dorme acompanhado das meninas do cabaré. As francesinhas de cílios postiços e sinais com lápis delineador acima dos lábios, quando o circo pega fogo o palhaço engravida todas elas. Sujeito de sorte. Só lhe falta coragem para atear fogo enquanto há tempo e vida.

Charme

Você não acredita, nunca mais te vi, mas continuo com a aliança de aço cirúrgico que você me deu de presente. E vivo mostrando às minhas amigas, às conhecidas e às desconhecidas o dedo vizinho ao mindinho da minha mão direita. Claro que é sedução. Não sei jogar pôquer, então, tento o meu silêncio deixando à mostra a aliança de aço cirúrgico que você me deu de presente naquele final de tarde em que bebi todas. O dedo vizinho ao mindinho da mão direita o que significa mesmo, baby? A propósito, as mulheres sacam o jogo e sorriem da minha ansiedade em mostrar tua aliança de aço cirúrgico. Algumas até supõem a minha solidão. Outras reconhecem que não sou um homem confiável. E sorriem mais sapecas e felizes.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Lentes progressivas

Os óculos chegaram, meu bem. Custaram-me os olhos da cara, literalmente. E escrevo sem foco. Baixando a cabeça, girando o globo ocular, buscando uma vista agradável ao espírito que move minhas mãos. Escrevo ainda incerto das palavras. Da estrutura física das palavras. Estiro o braço e a minha mão não toca nos seus cabelos. Claro que não, você nunca entendeu a minha poesia e os seus cabelos voavam de medo. Agora que não escrevo poesia, até que os seus cabelos poderiam caminhar ao meu encontro. Deixar de tanta frescura. No dia em que eu cheirar os seus cabelos morrerei feliz. Parece-me que a dor de cabeça era mesmo por falta de grau nos meus olhos apaixonados. Era cego o poeta.

Aurora

Iniciar o dia admirando as coxas desnudas de uma fêmea é um belíssimo presságio. Nem sempre sou agraciado com tal dádiva. O desapontamento, entretanto, foram os míseros minutos em que o carro de passeio [da fêmea em questão] parou abaixo da janela do meu ônibus. Nem sequer deu tempo do meu coração confabular com as artérias carótidas do sangue divino o despertar da minha alma. Em todo caso, levo esse encanto à monotonia da manhã que segue. E juro [depois de bater o ponto] não cometer uma chacina.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Acidente

Não vi a morte de perto. Mas, ontem, rodopiou na minha frente um fiat depois de haver batido na frente do meu ônibus. Sempre pego Papicu-Parangaba quando retorno do meu trabalho. Uma senhora que estava ao meu lado, na cadeira alta, próxima ao motorista, entrou em pânico. Abraçou-me. Pediu-me o telefone. Confessou-me, ainda tresloucada, tremendo muito, que foi Deus que me enviou como anjo. Perguntei por que anjo e o que fiz. A senhora, elegante, apesar de louca, jurou-me que se eu não estivesse ao lado dela provavelmente nunca teria tido coragem pra olhar os meus olhos e perceber que sou um filho-da-mãe solitário e cheio de tristeza no coração e na alma. Eu gargalhei. E fugi. Muitos passageiros ainda ficaram na calçada esperando outro ônibus. Eu fui caminhando até em casa. Uns bons e longos quarteirões. Não tenho barriga. Mas fico muito tempo sentado diante do computador na sala de Epidemiologia e almoço besteira. Já pensei em levar marmita. Não tenho quem a prepare e entregue nas minhas mãos com aquele ar de ternura de uma nutricionista apaixonada. Não vi a morte de perto. Só uma senhora carente que lia um livro e quase se lançou contra o para-brisa. Em outra situação, convidava-a pra beber um café. Se a dama quisesse uma bebida, teria de pagar o meu drink e ouvir toda a minha loucura.

Um sonho de verão

O meu amor liga pra uma clínica. "Bom dia, qual o endereço da clínica?" Do outro lado, ouve-se a voz de uma recepcionista entre triste e distraída. "Que clínica, senhora?" O meu amor não entende. "Ué, aí não é uma clínica?" A recepcionista acorda. "Ahhh.... desculpe, senhora... é que ontem o meu namorado... sabe, eu soube tudo do canalha com minha prima... " O meu amor consola a recepcionista. "Puxa, menina, sei bem como é... sabe, também tenho primas tipo cachorras gostosonas..." Sorri e olha pra mim o meu amor. Uma mulher não esquece. 

sábado, 17 de outubro de 2015

Fruto De Um Coração Louco

30 de novembro de 2012


Sem grana, morando sozinho em um quitinete sombrio, sem amigos, sem mulheres, sem futuro, escrevendo versinhos de moça tísica e acessando sites pornôs.  “Isso não é o inferno...” – refletia o poeta.

O que realmente gelava os seus ossos era não ter ao lado uma alma feminina para ouvir os seus versinhos e um corpo perfumado da mesma alma feminina para compartilhar com ele da volúpia pegajosa de todos os solitários.

Naquele sábado chuvoso, o rapaz pensou em reativar a sua conta do facebook, embora fosse muita tolice um cara como ele que lia Schopenhauer e amava Baudelaire entrar em uma rede social para encantar mulheres com seus poeminhas. Do balaio de perfis femininos que o cara tinha visitado, entretanto, existia uma em especial, a mais bela de todas, que havia lhe escrito a seguinte mensagem - “espero que sejamos grandes amigos, ou algo mais, também adoro poesia...”

Com aquela mensagem na cabeça, o cara não conseguia mais dormir. Nem após sua punhetinha de praxe tardão da noite após lavar as suas cuecas. Transformara-se em um insone apaixonado pela menina, diga-se de passagem, uma menina deslumbrante: um docinho. Caso fosse mesmo dela o rosto e corpo no perfil. Poderia ser um fake aquelas fotos maravilhosas. Brincadeira de uma mulher feia e solitária.

O poeta passou várias madrugadas embevecido escrevendo versos dos olhos e lábios da moça. Na sétima madrugada, criou coragem e enviou os poemas. Não demorou muito, recebeu inúmeras mensagens - “estou chorando..." "que poemas bonitos... minha alma está chorando, obrigada...” "apaixono-me..." O cara não trabalhou mais. Não se alimentou mais. A sua vida se resumiu a escrever e enviar poemas pra sua musa e não demorava o cara recebia mensagens de volta - “você é a coisa mais bela que me aconteceu ultimamente...” “você escreve com o coração cravado na alma... “você é o meu poeta...” O rapaz suspirava e os seus suspiros quebravam suas costelas. Mas teve de encarar a realidade. Recuperou-se da falta de ar, dos tremores e voltou ao trabalho. Três dias depois, por graça e cumplicidade do destino, sofreu um acidente. Quebrou o braço. A sua bicicleta da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos furou o pneu. Pegou uma licença de três meses. Comunicou à menina o seu infortúnio e sob dengos e firulas explicou ao seu docinho o motivo da ausência dos poemas. O braço quebrado era justamente aquele da sua mão direita responsável pelos versinhos. “Com o gesso, meu docinho, desastroso até pra puxar o cordãozinho de nylon e dar descarga ou pôr uma colherinha de açúcar no meu cafezinho preparado pela minha simpática cafeteira...” Galhofeiro sorria o rapaz com ar esnobe. E completava “... minha cafeteira, antes de você, meu docinho, era o meu único anjo da guarda...” Terrível o rapaz. Diria eu, patético.
  
Durante os três meses de puro ócio, o cara conversava direto na cam e deslumbrava-se todos os dias da beleza da pequena. Já namoravam debaixo daqueles risinhos angelicais e daqueles papos mais picantes. Vivia corado o rapaz e também vivia pálido. Rindo feito um anjo de olhos brilhantes qual um demônio ávido por cocaína.

Na última semana de sua licença, o sujeito foi ao aeroporto esperar a garota que vinha passar um tempinho com ele. Estava do jeito de sempre, largadão: bermudão surrado, tênis topper preto, camisa polo e a cabeça raspada. Usava uns óculos escuros. O cara tinha 1,76, era esbelto, andava solto balançando os ombros. Não era um moço bonito, mas podemos dizer que tinha uma estampa exótica.

Sob a expectativa da vinda da garota, o sujeito comprara uma xícara de desenhos floridos e uma taça de cristal pra sua musa. Mimos de um bardo apaixonado. A xícara seria para o seu famoso e especial café e a taça de cristal ao aguardado vinho que beberiam juntos de noitinha. O cara era sincero e ingênuo - peças importantes pra formar uma linda imagem de sua alma na cabeça daquela menina que chegava a passos de fada, ninfa e bruxa.

Se o cara era largadão, a menina estonteante: blazer branco, um jeans de tom manchado colado no corpo e uma sandália de salto alto de uma elegância suprema. A pequena andava com uma desenvoltura que fazia as pessoas, homens e mulheres, quebrarem o pescoço atingindo inacreditáveis ângulos pra admirá-la uma última vez.

Chegou até o cara e falou assim a menina - “oi, amor...” O rapaz tremeu como tremem os apaixonados. Beijaram-se e quem os visse de longe ou quem passasse por eles sentiriam um aroma de amor eterno e de libido infernal.

Dentro do táxi, os apaixonados não falavam outra língua senão as deles - línguas vermelhas e molhadas. O taxista tinha um cândido sorriso nos lábios. Como se desejasse aos pombinhos toda a felicidade do mundo. Do mundo? Felicidade perigosa essa.

Chegaram ao quitinete. A menina livrou-se da mochila de couro sintético e caíram enlouquecidos de tesão na cama box solteiro do poeta. A libido dos esquizofrênicos tem um suor forte que atravessa paredes. Certamente aquela menina era uma louca varrida por sexo. Montada no cara galopava com tal graça e volúpia que a deusa Ártemis [em suas célebres orgias entre uma caçada e outra] morreria de inveja - e o que dizer da inveja de Apolo ao ver aquela delícia de fêmea em galopes tântricos sobre o corpo do mortal cujo destino até pouco tempo era um destino inútil de quem acessa sites pornôs e escreve versinhos de moça tísica.

Só de noitinha, levantaram-se da cama box solteiro e resolveram comer alguma coisa. Na pequena e antiga geladeira havia um lampejo de banquete. O cara fizera uma comprinha decente: queijo, presunto, leite, suco, pão de forma, coxinhas de padaria, frutas e um bom vinho.

O poeta não entendeu quando a menina riu um risinho malandro no canto da boca e disse - “espera um pouquinho...” E lá veio a donzela com um baseadinho enrolado em um papel dourado. Tudo naquela menina lembrava ouro e felicidade. O cara sorriu bonachão e deu uns tapas. A menina sussurrou - “desde o primeiro dia, sabe, amor, que você me mandou aqueles poemas... sabe, te amo...” O cara  só sorria, nada falava, ouvia tudo e só sorria. Os olhos, ah, os olhos do sujeito brilhavam. E não pareciam mais com os olhos de um demônio amante de cocaína, mas de um anjo surpreso com as batidas do próprio coração.

“Amor... você também me ama?” – insistia a menina com a voz de veludo. “ ... sim, baby, eu também te amo...” Abriu a boca o rapaz, enfim. A menina [qual uma devota apaixonada de um guru hedonista] segurou a cabeça do rapaz e beijou-o soprando a fumaça do baseado garganta adentro do seu poeta. Até pareceu um batismo aquele beijo trocado com tamanha alucinação.

Do quase banquete, saciaram-se os amantes da fome do corpo e da alma. O paraíso regado a um bom vinho é sempre mais deleitoso. O poeta segurando o seu copinho de plástico azul e a sua musa com a taça de cristal finérrima.

O cara, depois do místico e alucinógeno beijo, passou a sorrir muito mais bobo e tudo que repetia era - “sou sozinho na vida, baby, sozinho...” Não falou de sua mãe que morrera de complicações no parto nem que foi criado por sua tia em uma pequena cidade. Só repetia que era sozinho na vida e não parava de dar beijinhos no rosto da pequena e a descer afagos nos cachos castanhos até a nuca da sua baby sob uma aura romântica de beija-flores, andorinhas, cavalos-marinhos e golfinhos em doce balé de jazz.

A menina arrepiava-se e queria saber mais sobre o seu poeta que lhe escrevera poemas tão fortes e apaixonantes. O sujeito mudava de assunto. E ela consentia, afinal não tinha do que reclamar. Estava satisfeita com o que via e ouvia do rapaz. Embora o sujeito pouco falasse, seus gestos e olhares eram de uma imensidão intrigante. Verdade seja dita, o cara tinha um olhar misterioso e desse olhar não refletia o estigma que carregava por matar a sua mãe no parto. A sua infância, apesar da maldade de muitas criancinhas que faziam troça repetindo - “o bobão matou a mãe, matou a mãe o bobão...”, foi uma infância mágica onde formiguinhas reclamavam com as flores do calor infernal daquele verão. E o rapazinho feliz ouvia as formiguinhas e as flores nos canteiros da praça reclamando do El Niño. Feliz, digo, até o dia em que a sua segunda mãe, a tia que o criara, morrer de AVC. A partir desse segundo infortúnio, uma nuvem de pesar invadiu o seu coração e nem formiguinhas e nem flores ousavam interromper com história de aquecimento global a sua imensa dor e solidão.

“Fala mais de você, amor... vai, fala, amor...”- implorava a menina com uma vozinha doce de pêssegos . “Não tenho muita coisa pra contar de mim... só que moro sozinho e sou só na vida, baby...”- repetia o sujeito todo charmoso e cheio dos dengos.

Em um gesto delicado e inesperado, o rapaz levantou-se do chão, onde eles banqueteavam-se, e puxou pelo braço a menina - os dois de pé, as pontas dos cílios quase coladas. O cara assoprou um cacho de cabelo castanho dos olhos de sua musa e perguntou - “por que você tem o olhar tão triste?” A menina desvencilhou-se dele, foi até a mochila, tirou uma toalha e respondeu com outra pergunta - “onde é o banheiro?” Como se fosse difícil encontrar uma porta dentro de um cubículo daquele. O cara apontou com o dedo pra única porta que existia. Ela beijou-lhe o rosto, entrou no banheiro, deixou a porta aberta e abriu o chuveiro.

O poeta mordia os lábios de felicidade achando-se “o cara”, enquanto o deus Apolo sofria terrivelmente de ciúme: a beleza de uma musa de um mortal é dilacerante aos deuses invejosos, sobretudo tomando banho e dando pulinhos.

A pequena devia ter no máximo 26 anos: os seios apetitosos, sem exageros, os braços de pelugens oxigenadas de nascença, as pernas delineadas e rígidas de bailarina, as panturrilhas de uma passista de frevo e uma bundinha de ninfeta branca sem marcas de biquíni. Pendurada ao pescoço a menina carregava uma medalha de São Bento. Ainda tinha uma tatuagem na nuca: uma flor vermelha aberta, mil tentáculos, carnívora.

O cara babava e Apolo também [e com mais volúpia]. Ambos admiravam aquela natureza vivíssima tomando banho - de vez em quando, a mocinha se afastava do chuveiro, olhava pro cara e piscava o olho. Voltava pra debaixo do chuveiro. E o deus Apolo agonizava-se de ódio do mortal e de paixão pela musa estonteante.
  
Apesar do feitiço e deslumbre da pequena, o sujeito pensava - “por que será que a minha baby não me respondeu?” Encucara-se o sujeito pelo simples fato da menina não haver lhe confessado a causa do olhar triste. Que tolice do sujeito, meu pai, diante de toda aquela felicidade a lhe queimar as artérias carótidas.

Depois do banho, terminaram a garrafa de vinho e decidiram passear pela cidade. A cidade do poeta era aquele tipo de cidade de extremos próximos em que o nativo diz ao turista dando uma informação – “senhor, suba como quem vai ao sertão e desça no rumo da praia”. Ou seja, quem estivesse em uma barraca bebendo água de coco, ou uma cervejinha, bastaria pegar um Pégaso e pouco mais de trinta minutos estaria no alto de uma serra agasalhado - ou tocando violão ou ouvindo grilos.

A menina vestiu uma sainha. O rapaz mostrou todo o seu amor por um vestidinho. A menina fez a vontade do seu amado, trocou de peça e foram embora felizes e saltitantes. Chutavam tampas de refrigerante nas calçadas e marcavam gols.  A pequena festejava jogando-se aos braços do seu poeta.

O cara deu pra filosofar silencioso. Um dos seus ouvidos ouvia a menina falando sem parar excitada em uma cidade nova ao lado do seu amor e o outro ouvido ouvia as suas próprias reflexões sobre o instante epifaníaco que se prolongava em seu peito e por isso assustava-o - “caramba, o que é isso... que loucura é essa... que loucura!” O rapaz estava apavorado e tentava entender o batuque inefável do seu coração. Mas como adejar razão sobre a magia de duas almas vivendo um tempo mágico? Se a mente encontrasse o fio da meada, o encanto viraria pó, vapor, água de temporal debaixo da ponte. A cabeça do cara não entendia aquela menina - um mar de mistérios e um céu de doçura. E espantava-se, sobretudo, como ela havia chegado à sua vida. Há muito tempo julgava-se um sujeito morto e enterrado. Uma carta fora do baralho do suposto pôquer da felicidade humana. Um pária. Aquele de quem os deuses gargalham quando nasce e acendem um charuto e bebem um conhaque felizes pela desgraça providencial desse tipo de espécie humana.

“Amor, vamos à praia?” - dengosa sussurrou a menina. Num cantinho isolado, deitaram-se na areia e de cabeças coladas admiravam as estrelas. “Você não me respondeu...” – começou o rapaz. A menina balbuciou deitada - ”oi? quê?” Ele subiu um pouco a cabeça e desceu seu rosto pra menina que agora tinha dois olhos inquiridores no lugar das estrelas. “Baby, sobre a tristeza do teu olhar...” - concluiu o rapaz.  A menina deu um pulo - “merda! puta que pariu! que merda!”

Inacreditável, amigos leitores, como aquela menina de voz tão suave, uma verdadeira lady, aquarela de invejável beatitude, falasse tais palavrões. O cara teve um treco. Engasgou-se com o próprio espanto e medo. A menina não parava mais - “porra, grilado com essa merda!” O cara recuperou a voz e atitude de homem - “não grite!” A menina exasperou-se - “como não gritar se tu tá gritando, porra!”, “lava essa boca, mocinha!” – devolveu o rapaz.

Do primeiro batismo desse casal lembram-se? Foi aquele beijo com fumaça quando dividiam um baseado. O segundo batismo, eis agora: a primeira briga dos pombinhos.

A menina afastou-se em direção ao mar e as ondas beijavam os seus pezinhos [vejo que ela tem em volta do tornozelo esquerdo uma pulseirinha de palha amarrada com três nós]. Ela segurava suas sandálias. Nossa, que menina linda: a brisa do mar batia-lhe no rosto e a cada uivo das ondas ela fechava os olhinhos e os seus cabelos dançavam reggae levados pelo canto das sereias.

A inveja pairava no ar. As sereias roíam as unhas enciumadas com a presença daquela menina na praia delas e Apolo [novamente Apolo] chorava de emoção embriagado do misterioso devaneio que ataca os homens sensíveis, sejam mortais ou deuses. Apolo sentiu no peito uma vontade insana de fazer churrasquinho do cara de tanto ódio. Mas conteve-se, e até se apiedou do sujeito deitado na areia da praia chorando qual um bebê desencantado das fadinhas.

Depois de alguns minutos, o poeta sacou que a menina não viria ao seu encontro, foi o poeta até a menina, enlaçou-a por trás, beijou-lhe a nuca, bem na tatuagem de flor aberta vermelha carnívora, e pediu perdão. Pronto, o cara estava na mão daquela menina. Havia escrito sua sentença de morte. Paixão e dependência. A cabeça ostentada na bandeja de prata de uma rainha tirana.

“Eu que peço desculpa, meu amor, fiquei nervosa... sabe, minha vida não é tão maravilhosa... desculpa, meu amor...” A menina disse aquelas palavras com lágrimas no rosto. O cara também chorava. Abraçaram-se e rapidinho aquela outrora discussão de xingamentos chulos deu lugar a uma esfregação libidinosa de corpos febris na areia da praia deserta.

Unhadas, mordidas, sussurros, gritinhos, enlaces de pernas e dança de quadris: o ritual da parte dela - e dele via-se na alma uma tropa de sertanejos sedentos de gozo marchando sobre a terra cálida do corpo de uma fêmea. Dessa tropa de sertanejos, caros leitores, lembro-me de quando eu era adolescente, nas colinas do mediterrâneo, e aos primeiros sinais de masculinidade [a testosterona explodindo no meu intestino] chutei a porta do quarto da minha serva e rasguei-lhe a túnica e meti na sua gruta, escondida por um matagal, meu falo de lobisomem. Eu era um lobisomem adolescente. Mas a minha história é insignificante, voltemos ao casal de pombinhos.

De manhãzinha, os primeiros surfistas encontram aqueles amantes nus e abraçados. Uma cena tão angelical que um dos garotões despertou o casal com uma voz de anjo aconselhando-os a se vestirem e darem o fora, pois uma anciã asiática que fazia Tai Chi Chuan chamara a polícia. Deram um pulo os apaixonados e às gargalhadas vestiram-se do que as sereias não levaram e pegaram o beco. Sumiram na fumaça dos surfistas. Antes, é claro, a menina deu um tapa e beijou o rosto do seu bom samaritano. O rapaz também sorriu, mas não aceitou o baseado nem beijou o rosto do surfista negro de cabelos tingidos com água oxigenada.

O cara curtia Bob Dylan e a menina acordou ouvindo “Just like a woman”. Caminhou na ponta dos pés a princesa e abraçou por trás o seu poeta [que fazia um cafezinho com o semblante de quem prepara um desjejum pra beija-flores]. “Amor, você é um sonho...” Sussurrou a pequena ao ouvido do rapaz. O cara pensou em dizer a mesma frase, palavra por palavra - calou-se reflexivo. O sujeito tinha medo - incutiram-lhe no espírito, quando ainda era um rapazote, que homem que fala de amor pra uma mulher perde para sempre o amor e a mulher. O cara não era supersticioso. Mas olhando aquela menina - um sonho de virtudes e de beleza - bom não duvidar dos fantasmas da sua mocidade e melhor ficar de bico fechado sem dar chances para vodus.

O sujeito recordava muito bem da única mulher com quem vivera a ilusão de um amor eterno - e a danada fugiu com um colega seu de trabalho, coincidência ou não, justamente após ele ter falado da pureza e exuberância do amor. A mulher em questão ouviu todo o seu lenga-lenga de boca aberta e de olhos arregalados. Minutos depois, a dama caiu fora tão apavorada daquele conto de fadas quanto um gato no meio da rua que se assusta com a buzina de caminhão. Nunca mais se teve notícia. Nem da mulher que fugiu com o seu colega de trabalho nem do gato que se assustou com a buzina de caminhão.

Ao encher de água o depósito da cafeteira e ajeitar as pontas do filtro de papel pediu pra que a menina pegasse o pote de café. A menina sorriu de felicidade, como se fosse pegar no alto da montanha um lírio raro para ofertar ao seu amado.“Onde está o café, amor?” - dengosa perguntou a menina. Na sua frente, sobre a mesa, sua tonta. Diria eu. Mas o cara sorriu e disse com a voz mansa de um bobão apaixonado e apontou - “aí, baby, pertinho....”

O cara não conseguia mesmo pôr as colherinhas do pó de café dentro do filtro de papel. A menina não parava de beijar-lhe o pescoço e a lhe morder a orelha e sussurrava - “ouviu, amor, o que eu disse... ouviu? você é um sonho... um sonho...” O rapaz tremia, arrepiava-se, suava, tinha calafrios. Não aguentou, virou-se, pegou a menina pela cintura. Eis outra lírica cena de sexo delicioso e explícito, dessa vez no piso de cerâmicas brancas do quitinete.

“Ué, estão batendo na porta, amor?!” - perguntou a mocinha com ar de espanto. O cara apenas se levantou do chão, enrolou-se em uma toalha e foi ver quem era. “Por favor, todo mundo está ouvindo a pouca vergonha...” - sussurrou dona Teresa, a proprietária do quitinete,  com um olhar de puritana justiceira ao ver o cara de toalha em volta da cintura. “Desculpa, dona, por favor, desculpa...”- suplicava o rapaz. “Logo o Sr. por quem eu tinha tanta consideração...” - insistia na advertência a proprietária. O cara pediu mais uma vez desculpa, pela terceira vez, e disse que esse fato jamais aconteceria de novo. A fim de amenizar o péssimo humor da dona do quitinete, pagou o mês que ainda não havia chegado ao fim e tudo ok.  Dona Teresa retirou-se com cara de pouquíssimos amigos. Diria eu, furiosa. Certamente a dona do quitinete arrastava asas pro rapaz e aqueles gemidos acabaram com a sua esperança.

Enquanto o rapaz morria de pedir desculpas e mais desculpas, a mocinha já estava no banho com o seu sabonete líquido e seu shampoo hidratante. Da nuca da menina espumas caíam pelas costas, desciam pela espinha dorsal até o estreito da divisão das nádegas e no final da travessia faziam uma curva e molhavam uma cavernazinha de pelugens douradas do seu sexo visto por trás.

A imagem deslumbrante da moça debaixo do chuveiro poderia causar sérios distúrbios a quem fosse normal ou curar de qualquer insanidade um louco solitário. Apolo, que nunca foi um deus normal tampouco um louco solitário, aproveitava-se das prerrogativas de divindade olímpica e mais uma vez estava lá espiando aquele arroubo de sonhos.

“Baby, quando tu tá gozando grita muito doida... rsrsrsrs... a dona do quitinete reclamou... rsrsrs”. Havia um longo tempo em que o cara não sorria assim. A última vez foi quando ganhou no seu aniversário um livro de Neruda “Confesso Que Vivi”, presente de um brother mano de guerra assassinado em uma discussão no campus universitário da capital entre quem era o mais foda, se Heráclito ou Nietzsche. O brother mano de guerra morreu pelo primeiro e hoje em dia nem Heráclito nem Nietzsche cuidam das flores do seu túmulo.

O brother mano de guerra [além de seu mestre indiano, tutor beat e irmão mais velho] foi o seu único amigo desde a adolescência. Muitas vezes, ocupava até o lugar de seu pai do qual nunca ouviu falar nem o nome. Ao perder a mãe no parto, cresceu sob a ameaça de heresia caso perguntasse sobre o pai que fugira ao engravidar a sua progenitora. A sua tia, a mãe que o criou, era de um silêncio jurídico ácido, feroz e incontestável de um Tribunal Divino. E o noviço aprendeu a esquecer o mistério do homem que emprenhara a sua bela mãe ainda bem mocinha.

Tempos difíceis aqueles de rosto cheio de espinhas e de apatia digna de lagartixa debaixo de uma sombra de oiti. As meninas odiavam sujeitos como ele [creio que ainda hoje odeiam], davam-lhe as costas ou riam quando apressado com a marmita na mão o rapazinho atravessava a praça principal.

Queridos leitores, um caso pitoresco e vexatório veio-me agora à mente: a manhã em que o rapazinho ao atravessar a praça da catedral a tampa da marmita caiu e saiu rodando pelos bancos dando curvas inacreditáveis, como se guiada pelo sobrenatural, e o rapazinho correndo atrás e todo o mundo, principalmente as meninas mais lindas, gargalhando. Naquele dia, o rapazinho pensou seriamente em pular na frente do trem. E que os seus pedaços de carne e ossos fossem lançados à praça da Sé pelos canteiros,  aos pés das árvores de oiti e dentro da fonte luminosa em um domingo após a missa.

Pouco depois da adolescência, dos dezoito aos vinte e dois anos, o tempo continuava tenebroso e o rapazinho, já homem feito, tentou realizar seu velho sonho - o suicídio. A morte que ganhou foram cicatrizes róseas de uma lâmina de barbear enferrujada no pulso esquerdo. Para não fugir do clichê, o sujeito também experimentou de tudo: álcool, comprimidos, maconha, cocaína e por fim, aos vinte e dois anos, mastigou uma bandinha de ácido. Conseguiu apenas fama de louco, além de feio, covarde e sem graça. Em outras palavras, um bosta fracassado.

Ao relembrar todo o inferno da sua vida, natural então que o cara levitasse de encanto a olhar aquela menina no banho cantando Legião Urbana. Tire suas mãos de mim Eu não pertenço a você Não é me dominando assim Que você vai me entender Eu posso estar sozinho Mas eu sei muito bem aonde estou Você pode até duvidar Acho que isso não é amor. Será só imaginação? 

O cara não perdia uma oportunidade para suas reflexões paranoicas de vítima. Começou a analisar os últimos versos da letra de Renato Russo - ”Acho que isso não é amor. Será só imaginação?” Refletia o sujeito - “por que ela canta essa música? será que ela não me ama mais e já está pensando em cair fora?” Diria eu, dane-se, seu patético! Mas a menina, um anjo, pareceu ler a mente e ouvir o pensamento do sujeito e do banheiro lançou-lhe um sorriso e gritou - “essa música é linda, mas não é a nossa música, ouviu, amor?” O cara assustou-se com a natureza telepática da menina cutucando sua mente doentia - “ah, tá, entendi, baby... e qual seria a nossa música?”

A menina saiu do banheiro nua, nem sequer a toalha enrolada na cabeça, molhando o piso de cerâmicas brancas. O cabelo da menina era castanho igual à cor dos olhos, algo raro - olhos e cabelos de uma mulher da mesma cor. Molhados aqueles cabelos pareciam mil braços de sedução pedindo que fossem puxados naquela famosa posição feminina de quatro. É bem certo que o cara tarado, taradão, taradíssimo, tinha pensado nesse deleite. Porém, ao mesmo tempo, as barrigas dos amantes roncaram. Gargalharam. Afinal desde que chegaram da praia, melhor, depois que a menina chegou da viagem, o casal de pombinhos ainda não tinha comido arroz com feijão. Uma comida com sustância.

“A nossa música, amor, nós vamos descobrir com o tempo...” - sussurrou a menina ao sentar-se no colo do sujeito e beijou-o tão ternamente, juro, amigos leitores, que me vieram lágrimas.

No exato momento em que o rapaz apertava o cadeado do portãozinho do quitinete pra sair, dona Teresa apareceu vestindo um shortinho de malha e camiseta do Botafogo. Era uma senhora enxuta no auge dos seus cinquenta anos e as formas das suas coxas indicavam que a senhora malhava e que ao alugar o quitinete pro rapaz passou a ser ainda  mais assídua na academia. Olhou pro sujeito com o cenho franzido e olhou pra menina com umas presas de fêmea pit bull indócil.

Na calçada a menina gargalhou e o cara apreensivo olhou pra trás temendo que a dona do quitinete tivesse ouvido a gargalhada da flor do cerrado. Sim, aquela menina era uma flor do cerrado. Com o tempo, amigos leitores, vocês saberão o porquê de “flor do cerrado”. Agora o importante é matar a fome de batalhão dos pombinhos. Se lhes surgisse uma gazela, correriam atrás, pegariam-na pelo pescoço e devorariam a presa sem molho e sem farofa.

Entraram em um boteco. Segundo o cara, a comida caseira simplesmente ma-ra-vi-lho-sa. Assim, soletrando, que o cara convenceu a menina, a flor do cerrado, a entrar naquela espelunca. A mocinha entrou, pediu uma água com gás, o cara uma cerveja e ficaram trocando olhares sedutores que só exalavam sexo.

Taxistas, mecânicos, pinguços, vendedores de loterias, aposentados, catadores de papelão e latinhas, sem exceção, sobretudo o seu Pedim, dono da respectiva espelunca, perceberam no ar aquela atmosfera de volúpia. E não desgrudavam os olhos dos amantes.

Enfim, a iguaria. Prato feito. A mistura vinha separada em uma tigelinha duralex. O cara pedira galinha à cabidela; a mocinha, bife. O prato feito era generoso com porções vastíssimas de arroz, feijão, macarrão, farofa e verdura. Era um prato de peão -  alta e íngreme montanha. Motivo pelo qual a mistura vinha à parte. “Creio que esse prato aí é mais elevado que o Everest...” disse a mocinha, apontando para o prato, às gargalhadas.

Devo esclarecer que a menina deu uns tapas noutro baseadinho antes de sair. A flor do cerrado adorava aquele cigarrinho que abria o seu apetite e fazia com que dormisse tão serena. Uma vez a mocinha misturou com vodka e vomitou uma meleca verde e outra vez misturou com cocaína e perdeu o rumo de casa.  

O cara tentava acalmar a flor do cerrado da crise de risos preocupado com os frequentadores do Bar & Restaurante O Seu Pedim. Vai que algum cliente cismasse que era com ele aquele deboche todo da menina? Não adiantava, a menina ria, ria, ria sem parar. Chorava de tanto rir. Uma comédia. E justo naquele momento de riso frouxo, para desespero do rapaz, e mais gargalhadas da menina, entrava cada figura: primeiro um senhor calvo de óculos escuros, cheio de pulseiras, vários colares de “prata” que ao pedir uma pinga ouviu-se a sua gagueira; depois uma cigana de bigode vendendo bonecas de pano e alegando que eram mágicas e choravam ao anoitecer; ainda teve um terceiro, albino, que já adentrou o recinto todo serelepe sorrindo com uma dentadura na mão - a julgar pela boca desdentada era sua a dentadura.

Imaginem, queridos leitores, toda essa presepada em um mesmo recinto diante de uma pobre menina que já estava a ponto de desmaiar sem fôlego de tanto rir. Imaginem.

Foi preciso que seu Pedim se intrometesse naquela doideira de risos da flor do cerrado. Com o semblante fechado inquiriu - “a moça tá rindo de quê? Não gostou de minha comida? Pensa que babado é bico, é?” A menina não podia explicar ao dono do boteco que não era culpa dela, mas do bagulho federal que a mocinha tanto amava e trouxera de sua cidade escondido dentro de um bolsinho secreto na sua mochila de couro sintético. Por respeito, a menina conteve-se, pediu desculpas e, educadamente, experimentou do bife. Adorou. E bem depressa deu cabo da montanha do prato feito e da mistura na tigelinha duralex. Lambeu os beiços e pediu um cafezinho.

Chegaram a uma pracinha e o cara deitou-se com a cabeça no colo da menina. Quem os via de longe torcia o nariz. Para o sujeito torciam por ser velho para a mocinha. E torciam para a florzinha do cerrado por ser ela um mimo de juventude para aquele velhaco. Velhaco? Se Bukowski ouvisse o pensamento daquele povo preconceituoso quebraria os dentes deles e depois tomaria um trago. Certamente no boteco do seu Pedim. Bukowski adorava uma espelunca.

Regressando aos pombinhos, o cara criou coragem e começou a falar -“  baby, meus colegas de trabalho são uns cínicos, querem ver a minha caveira... só por que eu escrevo... sabe, já publiquei uns livros...” Diria eu, e daí? Ganhou o Pulitzer? O Jabuti? Mas a florzinha do cerrado era um anjo e exclamou com uma voz suave de maracujá - “como?! ah, eu quero um autografado!” O cara não calava mais a boca, continuou - “meus colegas de trabalho são uns babacas... sabe, baby, qualquer dia desse meto bala...” 

A menina bocejou.  Aquele papo de lamentações fúteis com a cabeça sobre seu colo não tinha nada a ver com a exuberância da praça – passarinhos se equilibrando nos galhos das árvores de oitis, crianças nos canteiros brincando de triângulo e bola de gude, dois cães um cheirando o traseiro do outro, beatas entrando na igreja, um mundo de coisas acontecendo e o cara lá com a cabeça no seu colo se martirizando por tolices. “Sabe, baby, não gosto de ficar entregando cartas e embrulhos de casa em casa, em condomínios e seus porteiros desgraçados, fugindo de cachorro e de ladrão... um saco!” – continuava a ladainha o sujeito. A menina cansou e disse - “por que você não muda de vida?” O cara pulou do colo da menina tão depressa que desarrumou a florzinha do cerrado que naquela hora estava vestindo uma minissaia jeans. O falastrão ajeitou um dos cotovelos sobre a coxa da menina e falou qual um cético pedante - “Já tenho 44 anos... não tenho mais esperança nem vontade pra realizar sonhos...” “Então não reclame da vida que tem, ué...” - rebateu irônica a florzinha do cerrado. O pateta percebendo o gênio da mocinha perguntou-lhe - “qual teu signo, baby?” A florzinha do cerrado sorriu e respondeu moleca - “sou leonina, amor...” Deixou a boquinha entreaberta de onde brilhavam verdadeiros marfins e pérolas.  

“Com esses dentes, meu docinho, pode me matar de mordidas e comece as dentadas pelo meu coração...” Pensou o cara extasiado. Ficou uns cinco minutos hipnotizado olhando aqueles dentes, depois continuou - “baby, você trabalha em quê?” A menina deu uma gargalhada. A flor do cerrado gostava de gargalhar e, confesso, eram gargalhadas estonteantes e naturais. “Amor, prestou atenção que é a primeira vez que a gente conversa sobre trabalho? No face a gente só curtia poesia...” - respondeu a menina do seu jeito.

A menina estava certa, o casalzinho a partir do instante em que ficaram íntimos na internet só falavam de Leminski, Drummond, Quintana, Fernando Pessoa e outras pencas de poetas. Nunca tiveram um papo enfadonho. A florzinha do cerrado não se interessava por títulos, conta bancária, vida social e econômica do seu poeta. Às vezes, muito distante, o rapaz apenas se lamentava por não mais existir aquela aura do antigo carteiro - um mito de amarelo que entregava cartas perfumadas de saudades e reencontros e cartas sombrias de dor e desespero. O sujeito, na verdade, guardava um segredo: gostaria de ter sido diplomata por um tempinho e boêmio até o fim da vida igual ao poetinha Vinicius. A sua vida, no entanto, era outra: sem canções, sem rodas de amigos, sem amores e sem boemia. Até a sua dor era apática e, decerto, não teria a coragem de Rimbaud para traficar armas.

A florzinha do cerrado caía em um silêncio profundo sempre após suas gargalhadas. Sua mente divagava e a mocinha parecia não estar onde estava. O cara, com seu complexo costumeiro, avexou-se - “te cansei, baby?” “não, amor...” - respondeu a mocinha ainda com o olhar perdido vendo um saco plástico levado pelo vento.  “Se te cansei, desculpa, tá?” - o cara insistia. “Foda!” - gritou a menina. Queridos leitores, tirem as crianças da sala, pois mais uma vez se inicia o vocabulário chulo da florzinha do cerrado.

O cara ficou amarelo e a voz trêmula - “vai começar, baby?” A menina estava completamente fora de si - “começar o quê? puta que pariu!” O cara não suportou mais aquela grosseria e falou - “queres ir embora? compro agora tua passagem...” - disse o sujeito com uma voz de jogador de xadrez. A menina zangou-se - “vá à merda, seu merda!” O cara continuava impassível, sarcástico - “baby, queres que eu compre a tua passagem de volta?” A florzinha do cerrado ao entender o jogo foi ainda mais fria e irônica - “com que grana? vai pedir emprestado ao senhor do boteco ou vai pedir à senhora do quitinete, hein, seu pé-rapado?” Essa foi de doer e esmagar. O maracanã lotado exclamou - “Uuuuuuuuuuuu...” Mas o cara, exímio jogador de xadrez, mostrava-se imperturbável. Cruelmente, piscou o olho -“baby, tens certeza que não queres que eu compre a tua passagem de volta?” A menina não suportou e deu-lhe uma cuspida no rosto. Os dois ao mesmo tempo olharam-se aterrorizados - espanto e medo. A flor do cerrado chorava pelo ato desprezível de haver cuspido no rosto do seu amado e o cara também chorava por merecer aquela cuspida. Não disseram absolutamente uma palavra. Abraçaram-se. E choraram desesperados e soluçaram por mais tempo.

Os pombinhos, depois de mil juras de amor e súplicas de perdão, passaram todo o entardecer na praça brincando de pega-pega pelos canteiros. Cansaram e deliciaram-se com sorvetes. Dividiram pipocas na boquinha. Compraram DVDs piratas e fizeram caras e bocas, de tão sensíveis e manhosos, para escolher os filmes. Ao crepúsculo, enfim, quedaram-se agarradinhos ouvindo encantados a balbúrdia das andorinhas nas copas das árvores. Só despertaram-se do alumbramento quando os sinos da igreja bateram seis horas, Ave Maria. Deram-se as mãos e retornaram ao ninho de amor, no caso dos pombinhos, o quitinete de dona Teresa.

Lá estava a ninfeta no banho outra vez. Não sei ao certo o que a flor do cerrado sentia: se muito calor, ou se tinha um firme propósito de matar o seu poeta do coração e enlouquecer Apolo [que transitava entre o Olimpo e o quitinete ofegante e de rosto vermelho só para admirar aquela  musa mortal tão bela e, por tabela, odiar o tal poeta].  

A mocinha adorava ficar com os olhos fechados e os braços abertos debaixo do chuveiro assemelhando-se a uma bruxa no alto do penhasco na hora do sacrifício. A florzinha do cerrado tinha duas covinhas, uma em cada face. Esqueci-me de mencionar esse seu sinal de beleza. Mesmo que a pequena não sorrisse, os dois furinhos nas bochechas eram notados e tinham como intento enfeitiçar os seus fãs - “admirai-me, viajantes, admirai-me que vossos segredos hão de ser enterrados nas minhas covinhas...” era o que pensava a pequena dos outros moços, sorrindo diabólica pro espelho, antes de conhecer o seu poeta. No espelho do banheiro do quitinete do seu amor, a mocinha só reparava em sua felicidade a brilhar em seus olhos de uma fenomenal luminosidade castanha.

De noite, haveria na pracinha [a mesma pracinha da cuspida e do encantamento amoroso] um show de jazz e blues. A menina caprichou no visual: pulseiras e colares de sementes e pedras semipreciosas, um brinco de pena azul, uma saia lilás longa bordada, sandálias de dedo e um chapéu estilo dançarina de cabaré francês. O rapaz ficou boquiaberto quando a menina pediu pra que ele abrisse os olhos - “pode abrir, amor... e aí, como estou?” A florzinha do cerrado sorria maquiavélica. Naquele mágico momento o sujeito definitivamente entregou a sua alma e seria escravo por toda a vida. E pra selar o seu domínio sobre a alma daquele jovem senhor a menina [sempre sorrindo] brincou movendo os braços e o pescoço em coreografia de break e finalizou a gaiatice imitando Michael Jackson em seu famoso passo moonwalk.

Entre um e outro solo de guitarra, o cara tentava impressionar a florzinha do cerrado explanando sobre a origem do blues: Lead Belly, Sam Carr, Jelly Roll Kings. Falou ainda de Charlie Parker e da história que seu fôlego vinha de um terceiro pulmão presente de um místico que vivia em outro planeta. A menina estava sob êxtase e tudo que o carinha falasse, mesmo que nem ouvisse direito e não entendesse bem, seria digno de louvação.  E o cara bebia frenético latinhas de cerveja e caipirinhas de limão, gengibre e cravo e caipirinhas de caju e misturava os copinhos de plástico sorridente e falante.

No final do show, houve uma entrada apoteótica de uma banda cabaçal “irmãos Aniceto”. O cara pirou de vez. Arrastou a menina pela mão até o meio da praça. O cara dançava entortando a espinha dorsal, balançando a cabeça feito uma lagartixa, levantando os braços, gingando com a cintura, dando saltos estilosos pra frente e pra trás. A florzinha do cerrado achava aquilo uma cultura exuberante e esforçava-se para acompanhar o seu poeta. 

Quando a exibição acabou, o cara sob um rompante de ébrio fugiu por alguns minutos até trazer um dos integrantes da banda cabaçal do Crato. “Baby, veja, veja!” Parecia uma criança o maluco - “Esse é o nosso legítimo bluseiro!” Estava embriagado o sujeito das mil latinhas de cerveja e das sei lá quantas caipirinhas de limão com cravo e gengibre e das de caju. A menina apenas sorriu e estendeu a mão pro mestre cabaçal que pegou e não soltou mais a mão da pequena, enquanto o cara falava e falava e falava - “sabe, baby, antigamente os tambores eram de pele de bode...  esticado na cabaça... entendeu, baby?“ Só então o tocador de pífano interrompeu o delírio do cara - “ainda é de bode o couro do tambor, seu moço, ainda é, oxente...” Todos riram -  e a florzinha do cerrado, a honrar a sua expansividade afetiva, soltou sonoras gargalhadas a ponto de tremerem os ninhos das andorinhas. Naquela hora, furiosas as doces aves tentando dormir. Acordam cedinho as andorinhas.

Desde o momento em que a menina pôs os pés na cidade, o cara vivia em profundo enlevo. Sua mente, enfim, cessara com aquelas tolas reflexões sobre felicidade. O sujeito até havia se esquecido da sua maldição por ter matado a sua mãe no parto. O rapaz naquela noite de blues, jazz e banda cabaçal, explodiu e falou do amor que sentia e abriu o seu coração para a mocinha - a sua flor do cerrado.

Shakespeare segurando o seu próprio crânio fugiu apressado correndo como o diabo corre fugindo da cruz, quando o cara levado por um último arroubo antes de vomitar declamou - “a alma humana estará salva enquanto houver a esperança do sonho/ que não demorem os suspiros do amor/ que não tardem os sonhadores...” Depois vomitou o bardo e desmaiou. Sobrou ao mestre cabaçal, com ajuda da mocinha, levar o maluco aos trancos e barrancos ao quitinete. E lá foram as três almas sob a lua cheia da cidade de serras e mar.

Os dois pombinhos acordaram tarde. A florzinha do cerrado acordou tensa. O cara sondou - “você está estranha, baby...” A menina não retrucou, ao contrário, beijou a cabeça do rapaz, levantou-se da cama e pegou uma água e um comprimidinho para curar a ressaca do seu amado. O cara sentia um aperto horrível dentro do coração, ou pior, um buraco horrível dentro do peito. Não era vergonha das sandices de ébrio da noite anterior. O frio cadavérico que o cara sentia era medo. Medo de que a sua flor do cerrado sumisse. Evaporasse de sua vida. Fugisse das falanges dos seus dedos e linhas das palmas de suas mãos.

A paranoia da sua mente de novo surgiu com toda a crueldade do Oráculo de Delfos que enlouquece os espíritos fracos quando não seguem a prudência divina. “... não devia ter falado de amor... merda, a minha menina vai embora... eu me mato... eu me mato...”

Que psicótico o rapaz, contudo a flor do cerrado estava mesmo esquisita, misteriosa, melancólica e distante. “Amor, vou te falar uma coisa...” - disse a menina ao entregar-lhe o copo d’água e o comprimido. O sujeito de tão avexado e trêmulo quase não conseguiu segurar o copo e o comprimido caiu no chão e rolou até meter-se debaixo da geladeira. “Pode dizer, baby...” - a  voz do sujeito estava irreconhecível. A menina sentou-se na beirada da cama, pegou firme a mão do rapaz, as duas, e falou - “amor, meu pai é aquele deputado envolvido no tráfico de influência, corrupção, o diabo a quatro...”

Simpáticos leitores, devo um ajuste de contas. Esclareço-lhes agora por que a menina é uma “flor do cerrado”, simples: a menina nasceu em Brasília de onde partiu linda e feliz ao encontro do rapaz que, naquele dia, largadão no aeroporto, esperava-a ansioso e morrendo de medo. Voltemos ao casal, pois o tempo deles urge e urra.

”Aquele do desvio de verbas?” - perguntou o cara com as faces lívidas e os olhos arregalados. “Sim, meu amor, aquele monstro...” - respondeu a mocinha chorando. O cara, como ainda estava deitado e a florzinha do cerrado sentada ao seu lado, fez um pequeno esforço e puxou o rosto da menina contra seu peito. Envolveu a menina com a mesma candura que Dom Quixote abraçara Dulcineia Del Toboso tantas vezes nos sonhos mais delirantes. A mocinha sentiu-se apertada e segura e sorriu com os lábios molhados de lágrimas tão tenras.

Os pombinhos iam se beijando, os cílios já se tocando, quando bateram à porta, bateram é eufemismo, tentaram derrubar a porta. “Ué, estão batendo na porta?” Diria eu - não, sua tonta, é um elefante tocando trombeta. Mas o cara respondeu de fala mansa, um gentleman - “espera, baby, já volto...” Abriu a porta e lá estava dona Teresa pálida. “O que foi, dona Teresa?” – perguntou assustado o rapaz. A mulher não respondeu. Pálida e muda atropelaram-na dois homens. Verdadeiros brutamontes. “Ei, que é isso!” – o cara tentou impedi-los. Os brutamontes jogaram o poetinha ao chão abrindo espaço para que entrasse um terceiro - elegante, terno e sapatos à la Don Corleone. “Papai?!” – morreu de susto a mocinha.

Pois bem, vejam vocês, queridos leitores, o tal político corrupto, o demônio em pessoa, chegara à cidade e não demorou para saber do paradeiro da sua única filha - a  florzinha do cerrado. “Minha querida, ah, quanta saudade...” - sussurrou o político com um risinho cínico no canto da boca. “Seu desgraçado! seu filho da puta!” - berrava a menina. O cara não entendia absolutamente nada do que acontecia. Creio que vocês também não, meus simpáticos leitores, passemos logo ao diálogo, antes, porém, abro um pequeno prólogo: a menina sabia muita merda sobre o pai, um dos chefões de uma quadrilha poderosa do Planalto com várias articulações mafiosas, portanto, a pequena, a florzinha do cerrado, era uma testemunha bomba ambulante, um arquivo vivo, uma ameaça. O pai pensava seriamente em fugir pra um país do leste europeu e levá-la com ele, antes que a menina desse com a língua nos dentes e alguém, outro político chefão-foda, temendo merda no ventilador, mandasse matá-la e sumirem com o corpo. Ideia que já cogitavam.

“Pai, seu filho da puta, como o Sr me encontrou? ah, pai, que merda!” – a menina estava arrasada e com a mesma boca suja de sempre. A dona do quitinete havia sido empurrada para dentro e continuava lá encostada à geladeira com um semblante de morta-viva. E muda. Os brutamontes cercavam o cara que tinha se levantado e tentava a todo custo chegar à sua musa e abraçá-la.

“Filha, você sabe que não pode ficar no Brasil... vamos, querida, pegue suas coisas e vamos...” Enfim, o cara berrou - “caiam fora! fora! eu amo sua filha! amo!” Os brutamontes sinistros e o político safado caíram na gargalhada. Dona Teresa continuava muda, mas os mudos sorriem cruéis. O que fez a dona do quitinete com toda a sádica satisfação de uma mulher que é trocada por outra.

“Mande esse idiota calar a boca ou eu mesmo meto uma bala no olho dele!” Aquele político devasso fazia parte, sem dúvida alguma, da turma do mal. Percebemos alguém de energia aterrorizante pela voz e a voz daquela criatura era de gelar a espinha. “Deixa ele, pai! ele não tem nada a ver com sua ladroagem!” – gritou a florzinha do cerrado batendo o pé como se tivesse 9 anos e ainda fosse aquela princesinha adorada  do seu painho.

A pequena tentava desvencilhar-se da mão de seu pai que lhe segurava o braço. Até hoje, não sei como o cara escapou dos brutamontes. Esbarrou na dona do quitinete. Chegou até a sua florzinha do cerrado. Abraçou-a. Um abraço forte de São Jorge que mata dragões e de Espártaco que derruba um centurião com um soco. Um abraço forte que nada lembrava aquele solitário cheio de recalques e martírios. O cara abraçou a sua menina como um Titã e beijou-a, apesar de toda aquela situação de perigo, beijou a florzinha do cerrado com um romantismo piegas de filme de ator bonachão de lenço branco em volta do pescoço e uma cabeleira esvoaçante.

“Que merda é essa, seu puto!” O político deu um solavanco no cara e menos de um minuto os brutamontes já tinham afastado o apaixonado da sua amada. O político corrupto, idealizador de falcatruas, puxou do bolso do paletó uma pistola .45. Esfregou o cano do trabuco no nariz do cara - “quer morrer, seu filho de uma puta, quer morrer?" O rapaz tentou tirar a arma do pai da menina e um tiro escapou pegando o peito de um dos brutamontes. Pronto, meus doces leitores, agora não tem jeito de dar meia volta e inventar outro fim menos trágico. O pai da florzinha do cerrado olhou pro cara como Drácula olha para um padre sem fé e acuado - “seu puto! vai morrer!" espumou o político facínora. “Deixa ele, pai!” - a menina chorava copiosamente.

O cara altivo, com olhos de touro enfurecido, enfrentava o pai da menina e até ousava partir pra cima. “Dê um passo, seu puto, dê um passo que te mando bala!” – ameaçava o político escroto. A filha do político verme não suportando aquela situação desesperadora, e imaginando a desgraceira que seu pai podia fazer com o seu poeta, arqueou os ombros, suspirou e jogou a toalha - “tá bom, pai... vamos... vamos...”

O rapaz tombou de joelhos aos pés da menina - “não, baby, não!” O político patife deu-lhe um chute no estômago - “cai fora, seu rato!” Não se conteve apenas com um chute, deu mais outro e outro e outro. Não demorou, estavam o pai da menina mais o último brutamonte machucando de verdade o sujeito. A menina tentou impedir e acabou levando um safanão pesado do próprio pai.

O poeta em transe ao ver o asqueroso esbofetear o seu único amor, mesmo esfolado, criou forças, sabe-se lá de onde e saltou sobre o político mau-caráter e roubou-lhe a arma. Com a pistola .45 na mão tentou pela última vez - “vão embora... agora! ou disparo... olha que aperto o gatilho...” A voz trêmula não convenceu o brutamonte que partiu em sua direção e levou um tiro na barriga - “ui, puf, ui... o merdinha me acertou...”

Meus leitores amigos, um balaço de .45 na barriga é lancinante, de modo que “ui, puf, ui... o merdinha me acertou...” era tudo que a vítima podia dizer. E disse e tombou.  Agora são dois.

“Ah, meu amor, não, não...” A florzinha do cerrado abraçou seu amado “Eu matei o canalha... eu matei... matei...” - murmurava o cara em estado de choque. Aproveitando-se desse vacilo, o pai da menina pegou de volta a pistola e meteu bala.

Dona Teresa amou à primeira vista o homem solitário de 44 anos. Alugou-lhe o quitinete e na entrega da chave o rapaz abriu dentro do coração da mulher uma imensa porta para o encantamento. Dona Teresa sempre esteve perto do poeta: lavando-lhe e engomando as roupas, oferecendo-lhe todas as noites um pedacinho de bolo, pedindo-lhe emprestado um livro para nunca ler, perguntando-lhe como estavam suas finanças, oferecendo-se solícita e leal em todas e quaisquer situações. A mulher constantemente dava mostras do quanto gostava do bardo, mas o sujeito não via. Era cego ao girassol que sorria a um palmo dos seus cílios. Dona Teresa sentiu seu sonho ruir no dia em que ouviu os gemidos e pelas frestas vislumbrou a flor do cerrado nua e bela deitada no piso de cerâmicas brancas do quitinete.

O pai da menina apertou o gatilho e a bala da pistola .45 queimou na direção do cara. Dona Teresa, mártir, meteu-se no meio e aparou a bala no peito para defender o seu homem. “Deus! não! não!” O cara desesperou-se e a flor do cerrado ficou em silêncio apenas olhando para o corpo da dona do quitinete. Não houve palavras de despedida. Dona Teresa apenas deu um longo suspiro e sorriu tristonha sem tirar os olhos do seu jovem senhor.

O pai da menina, o político pulha, moveu a mão em direção ao cara. E dessa vez, somente a menina para pular na frente da bala. “Agora tu morre, seu puto!” - vociferou o maldito.

Seu Pedim era coxo. Um tipo de paralisia infantil. Sempre que arrastava a perna tremia-lhe o rosto e colado na pálpebra do olho esquerdo também tremia um sinal. Parecia pelanca de galinha com pelos pretos ao redor. Uma boa alma seu Pedim. Quantas e quantas vezes o poeta almoçava de graça pedindo pro dono do boteco pendurar a conta e nunca pagava. No íntimo, o cara sentia que seu Pedim gostava dele e em muitos momentos jurava ver lágrimas dentro dos olhos do dono do boteco quando os dois a sós, e animados por uma pinguinha, conversavam sobre a mocidade de um e a velhice do outro. O rapaz, certo dia, quase ousou perguntar se o dono da espelunca havia conhecido sua mãe. Nessas ocasiões, seu Pedim, temendo esse tipo de pergunta, inventava qualquer desculpa e arriava os portões do boteco com a perna paralisada arrastando todo o peso do corpo. O rapaz ajudava a boa alma e jurava em silêncio que naquelas horas seu Pedim de fato chorava e o seu sinal pelanca de galinha tremia bem mais que o de costume.

A florzinha do cerrado viu seu pai apertar o gatilho e também viu seu Pedim aparecer na porta com uma escopeta e também apertar o gatilho. Não se sabe qual das balas queimou primeiro, mas sabemos que um tiro de escopeta são vários estilhaços tórridos fazendo mil buracos e um tremendo estrago no corpo de quem estiver no meio. Nesse caso, o corpo do político ladrão e bestial. “Pai!” - gritou a menina. “Seu Pedim!”- gritou do outro lado o rapaz. Os gritos dos apaixonados fizeram tremer as paredes do quitinete. Tanto o mau político quanto o espirituoso dono do boteco tombaram de imediato. Seu Pedim havia se arrastado até a cama e na quina encostara a nuca. Tinha um rosto puro e os olhos brilhavam de contentamento, nem parecia que estava vendo a morte de perto. O rapaz ajoelhou-se diante do dono da espelunca. Chorava. “... meu Deus... a bala era pra mim... pra mim...” O dono da espelunca com uma mão apertava o ferimento estancando o sangue e com a outra mão tentava calar a boca do rapaz. Conseguiu. E com a voz de um homem que dá seu último suspiro, balbuciou – “fi... lho... sou... seu pai...” Fechou os olhos.  A perna paralisada, enfim, descansou.

A menina deixou seu pai morrer à míngua em companhia dos seus demônios. Abraçada ao seu amor, despedia-se de seu Pedim benzendo-se três vezes. O rapaz respirou fundo.  Beijou a testa do dono do boteco. E antes que lhe viesse qualquer outro sentimento de pesar, teve medo que um dia tivesse aquele mesmo sinal pelanca de galinha do seu pai.


Fim