quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Branquinha

O mistério ainda é criança
Diante do seu olhar de névoa.

Um lago transparente
Em que as nuvens
Dançam.

(Lá os passarinhos não bebem água:
Molham os pezinhos encantados
Com medo de atrapalhar
O seu meio sorriso)

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Pivete

A pasta dental chega ao fim
Sem qualquer indício de ansiedade.

Quando meu filho era pequeno e morava comigo
O tubo da pasta dental vivia estrangulada
Todas as manhãs.

(Era uma casa
Feliz)

Colírio

Pensava, outrora,
Que o poema escrito
De mim consumisse algo.

Uma ranhura labial.
Um fio de cabelo.
Uma costela.

(O cansaço pertence
A quem ouve a voz).

A filosofia dos relapsos

Os pássaros não olham pras asas quando voam.
Nem os peixes refletem sobre a própria respiração.

Sem expectativas e sem assombros
Os pássaros avistam as montanhas.
E os peixes nadam de olhos abertos.

Se poetas, os pássaros
Morreriam do coração.
E se peixes, os poetas
Acordariam sufocados.

Mas Deus (esse meu velho amigo)
Não brincou em seu ofício de criar:
Negou ao poeta a tolice do encanto.


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Os xamãs adoram café

Havemos de ter cuidado
Quando passeamos pela casa
(Trôpegos) mexendo a colherinha

No café
Quente.

Sobretudo se a xícara for minúscula
Encontrada por acaso no armário
Com aquele olhar tristonho.

Doçura

Tu me ofereceste uma maçã.
Sorrindo (sempre sorrindo)
Disseste que já estava
Lavada.

Toquei em tuas mãos,
Vi parte dos teus seios.

O amor é só isso.
Sem embalos frenéticos.
Sem exaltações à eternidade.

Dia de rei

As coisas do mundo
Não chegaram aos nossos olhos
Para vistas e às nossas mãos para tocadas?

Lutar contra a ilusão é um caminho ingênuo, poeta. ´
Não desvie o seu olhar do que é efêmero, tampouco
Esconda suas mãos do toque pelas faces do nevoeiro.

Amarrar um guizo de fogo
Aos tornozelos e fugir
É patético.

O seu abismo haverá algum sentido
Se o seu corpo for homenageado
Sob a lucidez da queda.

domingo, 26 de outubro de 2014

Desconstrução

Não há tempo bom
Nem tempo ruim
Para o poema.
O poema avisa
Que chegada
A hora.
E o poeta obedece
(Pois não é louco
De não obedecer)
A poesia é só a cúmplice
Do coração enfartado.

Os doze gatinhos

Você me mostrava
Seu álbum de gatinhos
(Se não me engano, doze)
Espalhados pela sua casa:

Sala, dentro do guarda-roupa,
Dentro da sua mala, entre suas coisas,

Enquanto só tinha olhos pro seu sorriso e pensava:
"Mas que gatinha essa protetora de gatinhos órfãos..."

(Hilário, baby,
Aquele escondido
Dentro da geladeira).

sábado, 25 de outubro de 2014

Brincos

Peça-me pra parar de escrever.
Peça que eu paro. E juro que
Só irei à varanda aguar
As plantinhas.

A sua poesia
Já me preenche.

Arroubo

Escreverei um poema
No meu antebraço
Com pigmento
Nanquim.

Uma tatoo
De letra clássica.

Nenhum verme
Depois de morto
Ousará borrar
Os versos:

"A minha morte é lenta,
Pois o amor não se acaba..."

Foguista

Na beira do cais
Os ais são divididos:

O marinheiro leva a saudade,
A mulata sabe que de noite
Tem samba (suspira).

Pensa na água nova de colônia
Que passará entre as coxas.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Aspirações

Não espere um dia alguém pra amar:
Comece agora a olhar diferente
Pros cadarços dos seus tênis

Largadões,
De braços abertos,

Enlaçando as sombras
Dos insetos do seu quarto.

Canoeiro

Descobri por encanto
Que há passarinho
Que entra

Pelas casas de barro
Das vespas solitárias.

Não suja a plumagem.
Sequer muda a curvatura do bico.

Encolhe-se, entra,
Explica às vespas solitárias
Que só quer conversar um pouco.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Cotidiano

Acabei de engomar a calça cáqui do trabalho.
(E uma camisa esportiva, de tecido, discreta).

Não gosto de passar roupas.
Dá-me vontade de fazer tatuagem.

Encostar a ponta do bico do ferro
No meu peito e desenhar
Um bosque.

Estepes da Mongólia

Não guardo debaixo da manga
Um poema especial para você.

Em companhia das mulheres que amo
O máximo que ofereço é sexo e atenção.

(Mais sexo).

Embalos de quinta à noite

O meu sinal no canto do lábio
É um sobrevivente: sempre
Que tiro o cavanhaque
(Ou a barba rala)
Sorrio pra ele.

Quando eu era criança
Pensava que fosse
Uma pulga.

[Viu, meu doce?
Podemos escrever
Do que nos encanta].

Mulata plangente

Se tu não fosses noiva
Diria teu nome aos ouvidos
Dos passarinhos que todas as manhãs
Às cinco da matina vêm à minha janela
Perguntar se tenho poemas pro meu anjo.

Jogo-lhes miolos de pão.
E aponto pro céu alaranjado.

Violeta,
Púrpura.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Balão de ar melancólico

Nem mesmo meus dedos
(Depois de só ossinhos)
Saberão dos versos.

A esperança é seguir
O perfume dos seus cabelos.
(Se você não tiver medo de fantasma).

Marítimo

Escreverei este poema
Olhando pro epitáfio
Da minha lápide.

Nada escrito.
Só gramíneas.

"Chico Tristeza"

Como saberei de ti
Se a tua presença
(Névoa diáspora)
Embaça-me
Os olhos?

Os cabelos queimados
Das nuvens de fogo
São outros meios
De cegueira.

Não os guardo mais dentro das pequenas ânforas de cerâmica:
Os meus cabelos agora confundem-se com teu nevoeiro secreto.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Ogã

Mesmo que minhas costelas suportem
O peso das flores de cerejeira
Envelhecerei sozinho.

Não terei ao lado uma velhinha saudável.
Com pintas coloridas nas costas e um riso louco.

Vejo-me o destino
Tão só segurando firme
Uma xícara de café e um livro.

(A desvendar o perfume
Dos poemas amarelados
Dentro das minhas gavetas).

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Gânglios

A possibilidade de morrer
Vendo o mundo girar
Não me encanta.

Existe, entretanto, essa possibilidade:
Ouço entre os labirintos da minha mente
Vozes exaustas de tantos rodopios sanguíneos.


Dor de cabeça

A mente do sábio e a do falso entendido
Comungam-se da mesma previsibilidade.

O que difere
Um do outro

É abotoar os punhos
Da camisa de cetim
Com os dentes.

domingo, 19 de outubro de 2014

Noviço

Saberás do que se trata o amor
No instante da falta de ar e as
Tuas costelas partirem-se.

Esquecerás o tormento
Da eternidade, poeta.

Nunca mais se iludirá tua mente
Da tolice da separação entre
Corpo e alma.

O músculo da poesia
(Não te enganes)
É teu sangue.

Não os sonhos.

Dádivas

As folhas das árvores da minha calçada
Festejam saltitantes pelo tapete branco
Do meu quarto.

Juntam-se às batatinhas fritas
Que o meu filho fez questão
De deixar como lembrança.


Cálice

Trago na capa dos meus cílios
O cinismo dos homens pagãos.

Apartada do meu pescoço
A cabeça não tem prêmio.

O que penso foge
À verdade do delírio.

E a minha transparência
(Aquela trocada em silêncio
Entre mim e o meu Deus) ainda
Brilha e aproxima dos céus as unhas sujas.

Entardecer

Depois de tanto tempo
Guardando traças dentro das gavetas
Não morra de tédio se elas se apaixonarem.

Da mesma forma em que se cultiva uma xícara
O lânguido amor dos insetos nos acompanha.

Será natural, então, o seu olhar
Perdido de febre pelas paredes.

Cio silábico

O sonho da palavra
É um dia acordar pele

Sem receio de que o poeta
Julgue escandaloso
O poema.

Pólvora

O poeta não terá descanso.
Nem morto, sobretudo morto.

E você com as cinzas dos meus ossos
Na concha das suas mãos pensará
Onde a minha falta de caráter.

Você terá raiva de mim, mas logo a sua mente
Dirá que é triste zangar-se com um poeta morto.

Lágrimas de fogo

Desde um tempinho atrás, olho pros passarinhos
E vejo somente passarinhos. Com o lúcido olhar
Noto mais encanto: nos bicos, nas plumagens,
Nos olhos desconfiados dos passarinhos.

Não preciso me convencer
De que o passarinho é leve.

Ou de que os céus são chumbo
Sobre suas costas a tempestade.

A ternura que sinto por essas criaturinhas
Não diminui (nem me causa desgosto)
Quando olho pros seus pezinhos
E só vejo pés de passarinhos.

Natividade

É muito importante como fica o poema no papel.
Você (mamãe) não largaria o seu bebê no berço
Sem um olhar atencioso aos joelhos e ao umbigo.

Até parece que os recém-nascidos
Ouvem nossos pensamentos.

Todos os recém-nascidos,
Poemas ou pequerruchos.

Meio-oeste

Esquivei-me de um, dois, três socos do gordo Billy.
Poderia passar uma tarde inteira me esquivando dos socos
Do gordo Billy. A carruagem de El Paso (ou de Santa Mônica)
Ainda demoraria. Tinha até ao anoitecer. Mas resolvi fugir dos socos
Do gordo Billy. Raios, os gêmeos filhos do coveiro juntaram-se ao gordo Billy.

São espertos e maus aqueles gêmeos.
Puxaram ao pai coveiro que roubava
Os dentes de ouro dos clientes
Defuntos e os beijava
Na boca.

(Não era boato).

Que droga de saco de carvão.
Caíam pelo caminho maçãs,
Maços de cigarro, garrafas
De uísque do armazém
Do seu Jack.

Da próxima vez em que saquear o armazém do seu Jack
Vou roubar-lhe a velha espingarda. Será um prazer estourar
Os joelhos do gordo Billy e dos gêmeos sarnentos filhos do coveiro.

Novelos

Há cinquenta anos faço análise.
Só agora compreendi que o bule
De fina porcelana dos antepassados
Preso dentro do armário sonhava em
Passar uma primavera sobre a mesinha
Da sala em volta da gritaria dos meus netinhos
Correndo risco de ser espatifado por seus encontrões.

Como fui uma avó má,
Ou descuidada, tanto faz.

Que droga.

sábado, 18 de outubro de 2014

Surdez

O som de uma xícara
Contra o piso da cozinha
É o reino que resta às nossas vidas.

Se a tua alma não acordou
Com o som da xícara quebrada,
Não será o canto do suicida nem o pássaro.

Anti-herói

Dizia que era poeta
Para seguir em frente.

Agora que perdi as pernas,
O caminho não me importa.

As asas são melhores
Guardadas dentro
Do coração.