sexta-feira, 30 de maio de 2014

Rua

Todas as sextas, querida,
Enlouquecem à minha janela
Uma trupe incrível de passarinhos.

Conseguem entrar nas minhas gavetas.
Dão perfumes e odisseias aos meus bermudões.

Nas sextas esses passarinhos
Parecem psicopatas fugindo
Do hospício.

E se apaixonam
Por mim.


Saltimbanco

Meu coração é um coração dado.
Desde mocinho um coração dado.

Se ultimamente anda
Reservado e introspectivo,
Planeja então uma nova aventura.

Outro gênero
De suicídio.

Uma morte delicada, baby,
Ao primeiro idílio fulminante.


quinta-feira, 29 de maio de 2014

Química espontânea

Há na lucidez uma fabulosa verdade
Aquela que rompe a prisão do corpo.

Se houver dor
O antílope também
Tem o olhar apavorante
Devorado por carnívoros.

Só não pode pedir socorro
Nem escrever um poema.

A vítima entra
Em total gozo.


Êxtase

Querida, bons quadros pregados na parede
Hipnotizam aranhas, ainda que cópias
De grandes artistas.

Há alguns dias três aranhas
Não arredam suas pernas
Diante de Caravaggio.

As aranhas não se alimentam,
Não se divertem de noite,
Não trabalham mais.

Paralisadas e trêmulas
Dentro da pintura
Suspiram.

Não vivem pra outra coisa,
Senão admirar Caravaggio.

Quem agradece e faz a festa
São suas presas agora felizes.

Os besourinhos e as traças
Aproveitam o dia pra passear
Pelo tapete sujo de café e vinho.


Andanças

Decerto a contemplação abre janelas.
Mas o poeta tem de caminhar
Até o parapeito pra sentir
A chuva no rosto.

E durante o caminho
Muda-se o julgamento
Do que outrora pensava.

Sempre é outro poema
Anterior ao primeiro olhar.


Telhado

Não aponte pras estrelas (ao lado da criança)
E diga que o brilho delas é coisa do passado
Que não vivem mais e são todas cadáveres.

Não mate as estrelas
Pela segunda vez de tristeza.
Nem gele o coração da criança.

Permita que a pequena
Dê nomes às estrelas
Como daria a cães,
Gatos e ovelhas.

O brilho das estrelas
É tão real quanto meu grito
Que retumba na sala ao lado.

Embora o som que escapa dos meus pulmões
Chegue atrasado ou seja eu a ouvir outra voz.


quarta-feira, 28 de maio de 2014

Nuca

Meus amores têm facilidade
Em elaborar origamis, se desde
Mocinhas aprendem a fazer coque

Sob tardes
Quentes.


Ângulos

O tempo não cura
Os ferimentos do bardo,
Ao contrário do que se sonha.

O tempo humaniza a loucura
(Ou não se entende a chama).

E despido da armadura,
O poeta procura um calço,
Um jeito de reclinar a alma.


Limonada

Conversei seriamente com os passarinhos
Das árvores da minha calçada a fim
De que desde agora comecem

A ensaiar o jazz
Do meu funeral.

Não perdoarei
Quem desafinar.

Quero todos os passarinhos
Afinados com suas tubas
E trompetes.

Levem meu ataúde
Ao som de muita
Graça, delírio
E jazz.

Pacto este lavrado
Em meu coração
E suas asas.

Nirvana

Passei toda a minha vida
Escrevendo poemas.

O que ganhei
Em troca?

Uma cama de gato
E uma cambalhota.


A jornada

A questão é como abraçar as almas dos outros
E levá-las à porta de maneira sincera e delicada.

As almas dos outros são muito melindrosas.
Sobretudo as que me seguram as mãos
E sussurram aos meus ouvidos
Como amar um poema
Trôpego.


Apóstolo

Despejar o açúcar
Dentro do pote
De vidro

(Atento aos cristais
Que colam nos dedos)

Já é um milagre
E dou-me por satisfeito
A essa tarde parada e triste.


Campos de girassóis e papoulas

Os primeiros sinais de mudança chegam ao coração.
E como um bom arauto o coração rufla seu tambor:
Passarinhos tremem na janela, enlouquecem
Por inveja e cobiça (coitados) 

Não entendem que não há boa novas
Para oferecer nem amores para roubar.


Sentinela

Se o caminho um dia houver fim,
Não nos avisem: Que brilhe
Mais uma manhã
(Ou estilhace).

Os nossos corações
Já estão no front.


Cama redonda

O último poema da noite
Tratemos com elegância.

Como se fôssemos dormir
De cartola e fraque.

Sabe-se lá,
Querida,

As mãos de qual noiva
Calçarão as tuas luvas.


terça-feira, 27 de maio de 2014

Relâmpago

Meu anjo, tu não imaginas
O que pousou agora no monitor:
Uma muriçoca de touca e chinelos.

Serias tu a vigiar-me
A insônia?



Diáfano

Nunca diga
Que o poema escrito
Não chegou como você queria.

Primeiro,  o poema jamais chega:
Ou é seduzido sob o luar de ribeirinha,
Ou é ele próprio quem explode a porta.

Mas chegar,
Nunca chega.

O poema não tem pernas
De bêbado nem de caracol.


Isla Negra

Conheci um pescador
De tanta intimidade
Com o mar

Pescava
Da sua casa
Aos assobios.

Levantava as mãos para os céus
Caíam-lhe peixes ainda vivos.

Quando queria se divertir
Pegava sua bicicleta
E roubava leite

Das portas
Da aldeia.




Junções

A poesia tem duas pontas
Em um laço, ponte
Ou espada.

E o mais incrível
São as mãos dos poetas
Que se tocam no fim (e início)

Caminhando sobre
O trêmulo fio
De cada
Beira.


Ao arbítrio da luz

Por nenhum deus
Perder a lucidez.

Os pensamentos duvidosos
Não oferecem perigo
Às mãos firmes.

O sol adentra os meus ouvidos.
Aquece uma alma silenciosa e feliz.

Pois felicidade pra ela
É ouvir cada minuto
De assombro.

Distinguir a névoa
Do chumbo.

Peguem seus alforjes
E seus símbolos de volta
Ao início do caminho, deuses.

Por nenhum de vocês,
Guerras e tragédias,
Oferecerei a vida.

Voltem ao buraco da dúvida
E do arrependimento, senhores.

A minha lucidez é ouro
E não lavo as mãos.


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Moinho

Por que amanhã
Ainda estarei vivo?

Fiz um pacto
Com o coração.

Um dia anterior à minha morte
Ele dará o fora da cavidade
Sanguínea.

Será só chuva fina, querida,
Na calçada da minha infância.


Tesouro perdido

Eu guardo debaixo do tapete
As suas duas peças íntimas
Que você mais gostava.

Cada poeta procura a vingança
Que lhe cabe pura no coração.

Alguns queimam sapatos da amada.
Outros jogam pela janela perfumes.

Eu guardei debaixo do tapete
As suas duas peças de renda.

A do casamento
E a outra que você tinha
Separado pra minha morte.


Religião das segundas-feiras

Tenho duas mãos
Para escrever
Poemas.

E quando me canso,
Duas pernas pra fugir.

Você não me lembrou
Quantas vezes deveria
Mudar a água das rosas.


domingo, 25 de maio de 2014

Maritaca

Cuidado com o que falas,
Existe um poeta por perto.

Tudo que vieres a dizer (ou a pensar)
Será revertido em favor do sôfrego poeta.

A verdura que apodreceu dentro da geladeira,
Por exemplo, é o início perfeito para um poema.


Xamã

Passou aquele tempo
Em que vivia esquecido
Sem saber que dia é hoje.

Como também passou aquela aflição
De parir um filho debaixo de uma árvore.

Colho e planto
Em harmonia
As lágrimas.

Ilumina-se outra vida
Ao lado da minha sombra.


Provérbio

Serpentes mudam de pele,
As estrelas brilham após a morte,

Por que você não consegue
Andar sobre o fogo?

O que dirá a seu filho
Quando ele crescer,
Encará-lo, segurar
Seu punho e pedir
Para que bata
Com mais
Força?


Oratória de um ermitão

Se quem fala demais da bom dia
A cavalos, então eu já devo
Ter cumprimentado

Uma manada
De bisões.

Tu insistes e me perguntas
O que me move a escrever.

Te contei quantos passarinhos
Morrem ao crepúsculo?


Postais

Certas manhãs você não é dono
Das suas costelas: outros suspiros
Invadem sua caixa torácica e quebra-se
Tudo que é osso, feito mil gravetos secos.

Percebe-se então como é frágil
A condição poética das palavras.

Halo

A vida não é uma ilusão.
A vida é clara e pungente.

O noviço é que não entende
A leitura em que passeiam
Seus olhos.


Túnicas

Destino é o peso
De levar nas costas
Nuvens de fogo e chuva.

E nunca chegar à cabeça
(Sob firme propósito)
Ideia de eternidade.


Cirurgia

Como estou sempre operando
Debaixo das minhas unhas
Brilha o sangue

Dos
Outros.

A minha dor não pinga
Em quem me abre o coração.


Ossos

Embora pensemos nossas pernas,
São as pernas de quem escreve
Que pulam ao abismo.

E só crescemos
Tortos, quase
Sem andar.


sábado, 24 de maio de 2014

Divisão de águas

A tristeza tem um olhar especial aos seus filhos diletos.
Não é essa tragédia de que falam os poetas e as mães.

A tristeza tem um olhar melancólico de compreensão divina.
Perdoa o poeta por sua fraqueza e a mãe pelo sobrenatural.


Thysanoptera

Quando pequeno meu medo
Não era de bicho-papão
Ou alma penada.

O meu terror
Era passar debaixo
De uma certa árvore.

De cujas folhas caíam insetos
Conhecidos como lacerdinhas.

Dentro dos olhos
Ardia, às lágrimas.

Quantas vezes chorei,
Querida, sem imaginar
Um dia a tua existência.


Vila dos sonhos

O ferreiro e o pescador
Eram amigos de infância.

O ferreiro forjava espadas para os filhos do rei.
Enquanto o pescador conversava com golfinhos.

Bebiam suas pingas
Na venda de seu Pedim
E bêbados iam pra suas casas
Abraçados cantando Noel Rosa.

Imensa e bela amizade
A do ferreiro e pescador.

Até o dia em que Laura Elisa
(A filha do açougueiro)
Meteu-se entre
Os amigos.

Primeiro conquistou o pescador
Banhando-se nua sob a lua nova.

Depois enlouqueceu o ferreiro
Só de vestidinho e laços
Nos cabelos.

O pescador parou de conversar com golfinhos.
O ferreiro passou a queimar o peito
Com as pontas das espadas.

Laura Elisa ia pra cama com ambos.
Pois o seu amor era lindo e cabia os dois.

O pescador não aceitava tal ideia.
O ferreiro forjou uma espada cruel.

Na manhã do duelo,
Seu Pedim ofereceu pinga
De graça para toda a aldeia.

E foi uma festa a morte
Dos amigos de infância.


sexta-feira, 23 de maio de 2014

Tráfego de almas

Rosas brancas na sala despertam ternura a quem nos visita.
Além dos nossos olhos, há os olhos dos poetas invisíveis
Que se aproveitam do silêncio dos objetos e entram
Em nossas casas.

Nesta noite, um antepassado
Que não escrevia muito bem poemas.
Mas adorava admirar rosas brancas na sala.


Conceitos de um bom vinho

Levantar-me até a sala
E acender a lâmpada

É motivo suficiente
Para viver, querida.

Agora, amar e ser amado
Querida, é muita esperança.


Limpo

Consigo separar o pão
Da fome, ainda que
Trêmulo.

Talvez o grande mérito
De quem escreve
Poemas.


Olhar de mãe

Pelo menos uma costela
Ou um dente tem que doer.

E há dores, filho,
Que nem percebemos
De tão próximas da vida.


Sala de bate-papo

Diga lá, passarinho.
Qual a boa nessa manhã de sexta?
Ontem à noite vi pela janela do quarto
Que ventou assustadoramente. Confesso
Que temi pelo ninho. Os galhos das oiticicas
Pareciam demônios. Tolice minha, claro, os ninhos
Dos bem-te-vis suportam tempestades e outras tragédias.

Mas ontem à noite
Os ventos chegaram
A me assustar, passarinho.

Como estão os filhotes?
E a patroa?

Sabe, amigo passarinho,
O que devemos temer
(poetas e bem-te-vis)

É outro tipo
De temporal.

Não me faça esse biquinho de desentendido,
Seu malandro: sei das suas aventuras
Aladas com aquelas andorinhas
Dos fios de alta tensão.

É perigoso, passarinho.
Quando a gente menos espera
Somos aprisionados em gaiolas.

No mais, é isto.
Cuide-se e se o vento soprar com força
Traga logo toda a família para meu quarto.

A janela estará
Sempre aberta.


Sonhos

O meu riso no canto da boca
Já sugere o paraíso em que
Minhas mãos tocarão
E trarei suspiros
Dessa terra.

Deito-me vestido
A caráter para
Casar.


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Lisboa

Passo horas (uma eternidade)
Cheirando meu braço. Tento
Lembrar o cheiro do tempo
Em que minha mocidade
Tinha suas mordidas.

O amor hoje em dia
É um tédio.


cotidiano

Ando com sorte.
Raro machucar o tornozelo
Contra a quina da minha cama.

Nem me lembro da última vez
Em que dei um pulo de dor
E mandei às favas
Meu bom anjo.

Era tão comum
Este tipo de acidente:

Meu tornozelo
Contra a quina
Da minha cama.


despedida de abelhas e flores

Espera.
Deixa-me antes
Enxugar minhas lágrimas.

Não é nada pessoal.
Só uma válvula solta
Dentro do meu peito.


quadro

Ah, fantástico deleite
Dos solitários...

Passa debaixo da minha janela
Um bando de gazelinhas
Cantando rap
...

Retribuo
Jogando pétalas
E poemas picados...

Que deus nunca proteja essas gazelinhas
Dos seus predadores tatuados
E maus...

Ah, doce deleite
Dos solitários...

O sol é tão feminino
Sobre as calçadas
Nessas manhãs
Em que bate
Luz...


cafezinho

A maior parte do tempo
Minha mente é só um macaquinho
Indócil pulando de galho em galho, amor.

Durante a adolescência
Meu mestre indiano era claro
Quanto à minha loucura e eu vivia
Sozinho nas praças com um livro na mão.

Reli tantas vezes D. Quixote,
Amor, que acabei essa triste figura.


apócrifo

Existe em algum canto
Da alma que suponho
Um segredo nosso.

O segredo que rogo
[Com o tempo a palavra muda]
É bem maior que o poema escrito.

Não, não há outra forma
De pensar que não doa.

Ontem a flor vermelha no lixo
Havia em seus espinhos
Sadismo do que
Já foi belo.


quarta-feira, 21 de maio de 2014

música de aurículas e ventrículos

Ouço meu coração,
O meu coração me ouve.

E sob esse batuque inefável
Seguimos a vida (amarrados).

Se o meu coração se assusta,
Ora, baby, sou eu quem enfarta.


lúdico

Amasse todos os seus poemas
Em uma grande bola de vento
E dê pros seus passarinhos
Comerem.

As criaturinhas dos céus
Vivem fartas de nuvens.


alçapão

Hoje vista aquela blusa branca
Transparente que voa
Com o tempo.

Adoro seus botões acesos
Indicando aos meus olhos

O doce orvalho
Do seu jardim.


coalhada

Uma simples coalhada
Motivou-me a repensar
Os meus gostos, querida.

Antigamente causava-me asco
Aquela coisa branca sem vida
Entre o não-ser e o nada.

Não entendia como pessoas
Deliciavam-se e suspiravam
De amor por aquela iguaria.

Compreendo agora que a coalhada
É mais do que a coagulação do leite.

Digamos que seja
O amadurecimento
Da alma de um poeta.

Meio sem sabor
E contemplativa.


terça-feira, 20 de maio de 2014

antes do devaneio a quimera

Pode ser loucura,
Mas sempre deixo à noite
Um pouco de água junto às plantinhas.

Se alguma das meninas
Sentir sede de madrugada
Terá ao alcance o regador de plástico.

Só assim, meu bem,
Eu durmo tranquilo.


francesinha

Aquela espinha nas minhas costas
Que vivia triste e taciturna
Virou sinal.

Não me disse
Sequer adeus.

Acordei, olhei pelo espelho,
Lá estava o sinal cinza.

Você ficaria linda, meu bem,
Com esse sinal acima do lábio.


o pai pródigo

Sinto, filho,
Mas não te deixarei uma biblioteca
Com as mas incríveis obras nem vinis antigos
De blues e jazz nem esculturas e máscaras tribais.

A tua herança será apenas meu bermudão e jaqueta.
Dentro dos bolsos encontrarás poemas esquecidos.

Talvez algum valha
Tatuar no braço.

Não, melhor não:
Poemas não gostam
De senhores e donos.

Confia em teu coração,
Filho, que a tua alma
Seguirá teus passos.


a sutileza dos faquires apaixonados

Emagreço para caber
Dentro das suas bolsas.

Agora você não terá mais desculpas
Para não me levar debaixo do seu braço

Em volta da sua cintura
Pendurado ao seu ombro.

Serei tão feliz
Quanto seus batons.

bilhete

A nossa existência foi um milagre.
Agora é tempo de compreender a cura.

Retirar de dentro do travesseiro
Os poemas de afeto e jogar
Pela janela a saudade.

Não precisamos ver seres fantásticos
Levitando sobre os galhos das oiticicas
Munidos de trombetas, violinos e cítaras.

As árvores das nossas calçadas
São bem mais lúcidas que o antigo amor.


fineza em flor

Brincar contigo
Todas as manhãs
Na cama e cozinha

Como melhores
Amigos.

E de noitinha,
Após a sopa,

Filosofar contigo
No alto do telhado

Como melhores
Amantes.


taça de pudim à meia noite

Óbvio que creio em outras vidas.
Já convivo entre tantas surpreendentes.

A dos passarinhos, das lesmas
No oco das árvores e o que dizer da vida
Dos peixes de cujas espécies tão secretíssimas.

Após a morte,
Apenas alcançarei
O entendimento claro
Da delicadeza da Criação.

Enfim apontarei
Para cada anjo do amor
E direi - "ah, então é isso..."

segunda-feira, 19 de maio de 2014

perfume

Míope e caolho conseguirei escrever.
Ainda que surdo as palavras
Tocarão sinos.

Mas sem olfato,
Meu amor, como saberei
Se teu pão de milho estará no ponto?


vícios

Muitos poetas sofreram
De heroína e comprimidos.

Hoje em dia o meu problema mais sério
É com a cacofonia: é desolador
À minha alma um verso
Cacófato.

Coisa que tanto tenho escrito
Nesse meu tempo de pregação.


sombra lilás sobre o deserto

O poema não é maior
Que a tua sede de sal.

Quantas vezes as ondas
Derrubaram o teu corpo.

Não é o fim do mundo
A ausência das palavras.

Apenas prepara teu andado
Quando os teus bolsos
Estiverem vazios
De versos.


cópula de abelhas

A existência dos ossos e carne é tão breve.
Por culpa desses suspiros que partem costelas
Invento outra maneira de respirar pela eternidade.

Acompanho meu olhar
Diante dos seus poemas.

E o meu coração tem vida própria
Senhor da casa e senhor dos sonhos.

Só não consegue mandar
Nas plantinhas da varanda.

Acredite,
É hora de trocar
A rosa vermelha do jarro.


torpores

Levantei-me para escrever alguma coisa.
Já havia bolado na cabeça um verso.

No entanto, veio-me um pássaro
À janela e fez confusão
Com as palavras.

Ouvi-lo era mais gratificante
Do que cavar minha alma.

Fica para depois, amor,
A febre da minha língua.


deslumbramento

Só mesmo analgésico de cavalo
Para acalmar o meu coração.

Amo com tanta intensidade
Os objetos que me cercam
Que vejo minha xícara
Curvar-se e beijar
Meus dedos.


apatia

Vá embora,
Poeta.

Siga o caminho dos cupins,
Após comerem duas portas.

Hoje os poemas
Fugiram do tronco.

Só querem vento
No rosto e pneumonia.

Vá embora,
Poeta.

Acompanhe os passos dos cupins
Gordos e felizes das duas portas
Que destruíram.

Hoje os poemas
Vivem no meio
Do mato.

Em volta
De fogueiras
Ópio e insetos.

Vá embora,
Poeta.

Os poemas
São escravos fujões
Com sede de vingança.

paralelos

As aves de rapina e as hienas
Não podem largar seus ossos.

São elas com toda a frieza
Que cuidam das minhas flores.

Acordar feliz é triste
Se o meu coração sugere
Apenas um cafezinho e silêncio.


espiritual

Não quero de forma alguma
Escavar meu próprio tesouro

E lançar contra o sol
O ouro das minhas
Moedas.

Meu sonho é que um passarinho
Leve a silhueta do meu coração
Até a parede do seu quarto

E você toque
Os contornos
Do meu amor.


domingo, 18 de maio de 2014

cigana

O que acontece a quem sonha com borboleta?
Três grandes olhos nas asas a se cruzarem
Modelando as costas.

Não consultarei
Meus textos
Sagrados.

Escreve-me tu
Sobre meu delírio.

Afinal, somos ou não
A mesma alma?


a volúpia de um espantalho

Junto dentro da gaveta
Poemas esmaecidos
Sem um pingo
De sangue.

Milhares deles
Olham-me ansiosos:

"Quando seremos homens de verdade, poeta?"
Não respondo. Nunca respondo a esses poemas.

A propósito, conversar com poemas
É muita loucura a que pode suportar minha cabeça.


pólvora de pétalas

Entre no coração e retire
do caminho as mágoas.

Não faça tolice
Com a faca.

Corte (atento)
O que lhe faz mal.

A poesia não reclama cadáveres.
O tesouro são os versos além túmulo.

E felicidade não falta
Para quem caminha trôpego
Pela casa com o regador de plástico.

Espere que as plantinhas da varanda
Beijarão os seus pés por tanto afeto.

Contudo, não se esqueça:
O verdadeiro amor delas
São os pombos
À janela.


sábado, 17 de maio de 2014

correio

Escolhi um perfume maravilhoso para você.
Queira estar amanhã cedinho na varanda
Com a janela aberta.

Paguei caro pelo frete exclusivo:
Os beija-flores hoje em dia
São um luxo.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

sinais

Facilmente ofereceria minha vida.
Sem pensamentos e sobressaltos.

Diga-me onde dormirei
Na sua casa que pego
Meus panos
Agora.

Pensando bem,
A minha vida só é boa
Para os meus fantasmas.

Deixe-me cuidar
Do seu sangue
No outono.

Mês em que você sofre
Quase morre de cólica.

Nas outras estações
Dar-lhe-ei muitos filhos.

Todos com cara de poemas
E rosas dentro de jarros.

Diga-me onde escreverei
No seu quarto que junto
Todas as palavras
agora

E parto.

Já vi o seu olhar uma vez.
E por ele amo todas as mulheres.

mosteiro

A natureza da poesia vem
Da orfandade de quem escreve.

Quanto mais órfão o poeta
Mais corredores escuros.

Não, meu amor, o poeta não precisa se encontrar:
Os corredores escuros também são pátios
Em manhãs de luz.

A descoberta acontece
Da tontura de quem anda.


língua mordida

Ainda bem que tenho uma muriçoca que nunca dorme.
Sempre solícita à cabeceira da cama
Pra coçar as minhas costas.

Até amor faço com ela
De pijama frouxo
Nessa tarde
Quente.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

os últimos poemas

21 de abril de 2014

Qual a irmã do suspiro
Senão a esperança?

A desolação
É um equívoco.

Quem suspira guarda
Um caminho secreto.



22 de abril de 2014

Voltei a beber café, querida,
E você não está por perto.

Não vê com que sofreguidão
Eu beijo a xícara branca.

Estiro as pernas
Contraio e estalo
Os dedos dos pés.

Diria até mais feliz
De quando águo
As plantinhas
Da varanda.



22 de abril de 2014

Uma taça de pêssegos
Antes de escrever um poema
Torna as palavras tão delicadas.

Aquela tua camiseta amarela
Com um coração de lantejoulas.



23 de abril de 2014

Ensinarei a você andar no escuro,
É o meu hobby.

Ponha a mão
No meu ombro.

Não tenha medo de abrir a janela
Ao canto de um pássaro fúnebre.



23 de abril de 2014

O poeta julga os sentidos pela emoção.
E mesmo quando escreve frio e categórico
As lágrimas dele queimam as minhas faces.

O poeta me tem feito
Tantas vítimas.

Natural que o meu peito guarde
Outro coração para cada morte.



24 de abril de 2014

Querida, cravar uma tesoura
Nas costas de quem se ama
É patético.

Aprenda com as feiticeiras
A espetar com alfinetes
Corações de pano.

E a cada furo
Cante um blues.



24 de abril de 2014

Acaricie o meu rosto
Guie os seus dedos
Pelos sulcos onde
A lágrima rolou:

Existe aí um fértil deserto
Para uma nova saudade.



24 de abril de 2014

O mágico da poesia
Não é o poema
Que o leitor
Presta-se
A ler.

Mas os segundos
Que antecedem
A leitura:

Pegar o livro, olhá-lo silencioso,
Indeciso entre oferecer ou não a alma.


 24 de abril de 2014

O teu rímel de ternura
É o que abre janelas
Pros passarinhos.

De nada adianta
O cântico mais terno
Se teus olhos estão cansados.

Não percas tempo
Em guardar os sonhos.

A maravilha da quimera
É a distância: o toque
Impenetrável.


24 de abril de 2014

Já várias vezes
As minhas unhas
Têm ferido minhas mãos.

Estranho as nossas próprias unhas
Ferirem as nossas próprias mãos.

Como se não houvesse
Mais espaço nas pontas dos dedos
E elas, as benditas unhas, quisessem voar.



24 de abril de 2014

Contemplo os cabelos de uma mulher
Com a particular sensibilidade
Que admiro as asas
Dos passarinhos.

Ultimamente os que vêm à minha janela
Encantam-me com suas plumagens
De tons castanhos.

Parecem me querer lembrar
Do âmbar dos olhos
Dos elefantes. 


24 de abril de 2014

Trabalha, poeta
Esforça-te pra engravidar
As árvores da tua calçada.

Até hoje só idílios
Entre os teus olhos
E os galhos das oiticicas

Que batem à tua vidraça
Em noites de vento e lua.


25 de abril de 2014

O coração após a minha morte
Não se dará por vencido:
Em silêncio iludirá
O resto do corpo.

Os dedos vão virar palitos.
As costelas gravetos secos.

O coração, entretanto,
À primeira batida de pá de terra
Será resgatado por minhas andorinhas.


25 de abril de 2014

A sua loucura
Sem o meu consentimento
Mostra-se vil e ridícula tragédia.

Enquanto você planeja cultivar a matéria
Corto minhas unhas e me espanto
Com a força que elas batem
Contra as paredes.

Beije a mão do poeta,
E não desdenhe a solidão.



26 de abril de 2014

Graças aos céus o meu filho
Não se parece comigo.

Nem o branco do olho.
Nem com a língua de fora.

O meu filho em comum
Tem apenas meu suor

E o amor
Pela mentira.


27 de abril de 2014

Querida, abra o olho
Que pingo dentro
Minha lágrima.

É um belo colírio
Para enxergar
A saudade.

Depois confesse às suas amigas
Que você viu de perto
Meu tormento.


27 de abril de 2014

Todo poema escrito é um pai
Que leva o filho à montanha

Admira o pôr do sol
E corta a garganta
Do pequeno.

Voltem ao mundo,
Crianças.

Anunciem que o pastor de macieiras
É uma péssima companhia pros deuses,
Ídolos e qualquer outra forma de aberração.



27 de abril de 2014

Que seja um truque,
Mas antes que a bomba exploda
Abraço o travesseiro e choro comovido.

Lembro-me da minha infância,
Das formigas e das estrelas.

Nessas horas o meu coração se alegra.
Funciona outra vez o meu ardil de covarde.


27 de abril de 2014

Nem morto paro de escrever poemas.
Escreverei com as suas mãos, querida,
Enquanto você estiver triste dormindo.

Falaremos sobre aquele tempo
Em que você perdeu um seio
E eu enlouqueci.

Certos poemas têm a força
De uma bala contra o travesseiro:

Sempre lhe disse
Que não era um bom lugar
Para esconder cartas antigas.


28 de abril de 2014

Moço, tu acreditas mesmo que o amor
Simplesmente bateu à tua porta
Para em seguida fugir?

As criaturas que regem outras vidas
São muito criteriosas em assuntos
Que tratam da eternidade.

Teu coração foi posto à prova
Naquela noite em que tu
Tiveste um derrame.

E escolheste amar
O desconhecido.



28 de abril de 2014

Cuido das plantinhas
Da minha varanda
Com doçura.

Dói-me o coração quando arranco
Alguns fios dos seus cabelos.

Sou vaidoso das minhas meninas:
Quero-as todas verdes e viçosas
Pros pombos que chegam
À janela.



28 de abril de 2014

No dia em que você aprender
A falar a língua do caracol
E das estrelas marinhas

Entenderá a melancolia
Da sua alma.

As palavras são seres sociáveis.
Mas o poema é solitário.


30 de abril de 2014

Em algumas manhãs o meu canto
É tristonho das tripas de uma rabeca.

Outros dias ainda mais triste das vísceras
Dos passarinhos, e diante de tanta tristeza
Noites de floresta escura meus vagalumes
Têm medo de sair dos potinhos de vidro
Ficam lá dentro envelhecendo
Até perder o brilho.

O que se vê do alto das falésias é um mar
Ensanguentado das cabeças cortadas
De cavalos marinhos.



30 de abril de 2014

Se você uma manhã acordar
Imaginando-se a última
Mulher do mundo:

Deixe que eu junto as folhas da sua calçada,
Faço-lhe as unhas, compro-lhe um batom
E um livro de Poesia.

Sou ótimo em ouvir uma mulher
De boca carnuda e depressiva.


15 de maio 2014

Fim de jornada,
Agora o poeta
Plantará
Batatas.