domingo, 6 de abril de 2014

sombras das grades

Você terá que escrever uma carta.
Não acredito nos planos da minha cabeça.

Dou alguns passos para trás
até me encostar na árvore:

levanto os braços,
junto as palmas,
cravo a flecha.

Você terá que ver se a flecha está firme.
Bater nela com o bico do seu sapato.


a lascívia de um lírio

Imagino você por dentro:
princípio do seu jardim,
os canais, o útero,
seu coração.

Faria amor com sua alma
até se queimarem
meus cabelos.



sandálias de pescador

As marcas de suor
em tuas sandálias
são os corais
dos dedos

que os teus pés
fizeram com
o tempo.

Quando tu lavares
as tuas sandálias
poupa delas
o mar.

Um par de sandálias
sem marcas de suor
são pés de santos

longe deste mundo
que nunca se afogaram.


cavanhaque

Agora eu tenho como coçar o queixo
e sentir algo vivo nele: um ninho
de pássaro.


tênis no varal

Quem mata porcos acostuma-se
com os grunhidos e a língua de fora.

Quem poda miniaturas
com o tempo os olhos
vão se amiudando
e a mão baila
ao vento.

Já matei muitos porcos na vida
e fui aprendiz de bonsai -

hoje deixo minha casa
procuro outra dentro de mim.

sábado, 5 de abril de 2014

um químico de fé

Lavar os tênis brancos
sem retirar os cadarços

é como guardar um cantinho
dentro do coração pra outras
noites de ópio, vinho e loucura.

Arranquei os cadarços
e joguei-os à água
de molho.

Não tenho mais quarto de fundos
para a fera que fui,
meu bem.

Será uma morte
a minha sem
uivos.

Silenciada sob as capas
dos besouros de chuva.


a palavra

A morte de quem amamos
entristece-nos pelas lembranças
que essa pessoa (sem a nossa permissão)
 leva com ela a um lugar que vivos não tocamos.

Quando morre alguém
que na vida nos impressionou
sentimos roubados da nossa vida.

Como se esse alguém
no fim nos matasse
um pouco.

E nos lembrasse
que mais tarde
seremos nós.


pico

Os surfistas por muitos arco-íris na cabeça
resolveram subir aos céus mais altos
e de lá surfarem as nuvens
mais difíceis -

ao subirem com as pranchas
amarradas às costas
as criaturinhas
dos céus

indagavam-se
entre si:

"Quem são esses, estranhos?
Quem são esses, malucos?"

À medida que os surfistas
desciam com anjinhas
nos ombros

surfando nuvens parecidas
com trombas de elefantes,

as criaturinhas dos céus
respondiam entre si
tristonhos:

"são os ladrões das nossas pequenas,
são os ladrões das nossas mulheres..."

mercadores de vento

O mercador tem uma febre terçã por moedas.
O poeta também. Tanto um quanto o outro
não podem viver longe do tilintar

de coisas caindo
em seus alforjes.

Quando o mercador
enche o saco gargalha.

O poeta fica, sei lá,
meio melancólico.

É um peso desigual,
meu velho, outro tipo
de loucura pra cada um.


o canto

É um canário belga o que meu vizinho tem preso.
Canta e não é um canto triste: o canário
ainda tem a esperança por seu canto
enlouquecer o vizinho e este supõe
que o canário cante
por felicidade.

Se eu fosse o canário belga
engolia o canto até a tristeza
matar-me.

E se tivesse coragem
eu pulava à varanda
do vizinho e abria
a gaiola.

O vizinho é um major do exército
deve ter uma coleção de armas:
um tiro nas costas deve doer
pra burro.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

respiração

Após um poema longo
que quase atravessa a alma
eu só queria ter um gatinho pela casa.

Seria eu mais dócil
e sorriria bem mais.

Só tenho formigas
e é com elas

que me
contento.


a outra margem do Ganges

Acalme-se, a inveja existe.
Toca em seus músculos
beija a sua bílis.

Não se desespere.
Você é humano.

Até santos suspiram
e olham de soslaio
para outros
santos.

Agradeça por você
ser humano e não santo.

Os santos que já
alcançaram os céus
doem mais neles o frio.

Você, ao contrário,
terá tempo pra visitar
a casa de Hades e sofrer.

Será você o iluminado
a observar a inveja
sob mil truques.

Sinta apenas a serpente
por seu intestino e garganta.

Não tire os olhos dela,
olhe-a firme, sem susto.

A inveja logo se dissipa
e a serpente sem língua
sem veneno

com pele nova
só roçará suas maçãs.

À noite em volta da fogueira
perguntarão que brilho
é esse no rosto.


sobre equívocos

Amar não é bom
mas é gostoso.

Delícias de egoísmo
que envaidecem
o coração.

Depois que o amor acaba
o mundo é pior e a gente
pensa em matar
ou morrer.

Há outros tipos de amores:
o das freiras, dos monges,
dos heróis, dos cândidos.

Eu só conheço um:
o que não é bom
mas é gostoso.

sexta sã

Em manhãs quando volta o sol
derrama-se pelos meus ombros

e uma borboleta foge de mim
(não sei se é a mesma) mas
vem dançando ao encontro
dos meus olhos

total nível de distração
que todas as religiões
são irreais.

Caminho pelas calçadas
a vencer os meus males.


manjedoura

Dos meus lamentos
crio alguma coisa.

Da minha doçura
também crio.

São crias criadas
sob atenção,
silêncio,
delírio.

Não me perguntem
pra onde eu vou
e qual o tempo
ideal

dele
ir.

A verdade é que eu pulo
de encanto e ele morre
de indiferença.

Não somos mais de um
mas nos dividimos
no trabalho
de criar.


passional

O esposo bêbado qual um gambá,
a mulher não sabe dirigir meio tonta,
o amigo de infância sugere a sua casa.

O esposo aos abraços agradece
bêbado não cessam as lembranças
dele e do seu gentil amigo de infância.

Na confortável cama em que o morto de uísque
ronca e soluça ao mesmo tempo inicia-se
o perigoso idílio entre

o tal amigo de infância
e a mulher deslumbrante.

Uma taça de vinho, "obrigada".
Uma mão na coxa, "por favor, não".

Amanheceu um belo dia
café quente e amargo
o marido bebe.

Despedem-se e constrangidos todos prometem
um novo encontro sem exageros no uísque
(e sei eu, dos olhares trocados
dos amantes).

Desde o longo banho
o esposo traído não cala a boca
em grandiloquentes elogios ao amigo da sua terra.

A mulher, adúltera por sutil deslize,
não suporta o aperto no peito
e vocifera seu vacilo.

Entre o banheiro e a cama
(onde chorava a esposa)
havia uma pequena
cômoda.

O homem traído e em silêncio
de toalha em volta da cintura
(quase patético) da cômoda
na primeira gaveta retira
um embrulho.

Joga ao chão o plástico
da flanela desnuda-se
um revólver.

Sem ouvir a mulher aos prantos
veste o homem alguma
peça,

abre a porta
os olhos gelados.

Em alguns minutos
pega o carro na garagem
mais dez minutos chega à casa
do seu amigo de outrora o canalha.

Prático e sem fala de novela,
três tiros nesta sequência:

um na testa,
outro na boca,
o terceiro no peito.

De volta ao seu apartamento
a sua mulher logo desvenda
pelo silêncio do esposo

o triste fim daquele cara
o qual só conhecera
em uma noite

e por presente de Sátiro
transaram e transaram
sem fim.

Dizem que a morte
quando se aproxima
sente-se arrepio na espinha.

A mulher sentiu
a espinha em frêmito.

Antes de apertar o gatilho,
dessa vez ouve-se uma frase,
apenas uma frase: "eu te amei..."

Na mesma sequência:
rosto e peito esquerdo.

O corpo da esposa na cama
conseguiu ver pelo espelho
assim que encostou

o cano do revólver
na sua têmpora,

depois a massa do seu cérebro
espalhou-se por todo
o banheiro.

Não se veem muitos detalhes
com os miolos no chão.


quinta-feira, 3 de abril de 2014

ferro

Não mais consertarei poemas.
Não darei jeitinho nos mortos.

Se nascerem caolhos morrerão caolhos
sem verem um til  acima da cabeça.

Se vierem ao mundo coxos
caminharão coxos
pelo casa.

O tempo é breve
e a carpintaria queima.


tempos selvagens

É muita altivez sua, meu velho,
com esses tremores na mão

passear pela cozinha com o filtro de café usado:
meu camarada, use suas mãos de hoje
em diante como os leões cravam
a traseira das presas.


quarta-feira, 2 de abril de 2014

camelô

Vende-se dose de amor.
Injeção no braço
ou glúteo.

Por uma dose
o Sr. ou a Sra.
amará

aleatoriamente
alguém por
um mês.

O organismo não aceita mais de uma dose
ao mesmo tempo ou outra dose
no intervalo de três anos.

Reação adversa
gravíssima:
morte.

Sr. e Sra.
eu já vi,

é horrível:
a pele desprega-se
da carne e esta dos ossos.

Quem vai querer?
Quem vai querer por um mês
morrer por alguém de amores e arroubos?

submerso

Quando saio de casa
à rua uma centúria
uma legião de
anjos

andam com minhas pernas
não param de me abraçar.

Não se trata
de uma grandeza humana:
é um amor de outro mundo.


sinos da igreja

Quem segurará
a alça do meu ataúde?

Já fiz uma lista de possíveis candidatos
que mamãe lerá após meu último poema.

O meu peso morto (preparem-se)
é de uma jaca caindo dos céus.


odontologia

Claro que um dente quebrado
é motivo para um poema.

Sabe desde quando aquela obturação
conviveu com os seus alimentos?

Muito amor
e paciência
sob um céu
de nervos.


mercador

Quando eu era pequeno
vendia limões (acredite)
em cuia legítima
de cabaça.

Nunca voltava pra casa da tia
(nem pro limoeiro do quintal)
com limões sobrando.

Comum fazer um lanche
lá mesmo em dona Estela:
bolo mole com suco de cajá.

Eu era feliz,
ou cegue.


dentro do moinho

Enlouquecer é voltar o sentimento
de outrora de muito tempo atrás.

As pessoas e coisas nesse tempo
mas o sentimento voltado
pra outrora pra muito
tempo atrás.

Como essa chuva
agora.

E esse pássaro
que cantou.


lágrimas

Essas nódoas no piso de madeira do quarto
são as lágrimas das folhas de oiticica
que choram quando as jogo
pela janela.

Se estou de camiseta
mancham tal como
pingos de caju.

Se estou de dorso nu
queimam meu umbigo.

As lágrimas das folhas de oiticica da minha calçada
parecem com as lágrimas das namoradas que eu tive.


psicose amorosa

Não levo a sério as coisas da minha cabeça.
Então cavo um túnel até o coração
e escrevo poemas.


polo norte

O meu primeiro banho
é antes das 7h.

A água gelada
entra por meus ossos
e me diz que estou vivo.

Não molha a minha alma
(nunca molhou) mas também
é um sinal de que estou bem vivo.

Frio?

Meu pai era um esquimó
eu ainda pequeno
fez um buraco
no gelo

e me jogou.

terça-feira, 1 de abril de 2014

alma de cabeceira

Não, não adianta
amputar os dedos.

Nos sonhos (dormindo)
outro corpo vem e escreve.


depenado

As duas feras
que vivem
em mim

não basta pra uma
o alimento e pra
outra a fome.

Menos se espera
aquela tão raquítica
devora meu coração.

E eu fico bobo
no meio da arena.


fruteira de vidro

Quem diria, minha querida, a fruteira
agora tem um novo papel: guardar
os meus remédios.

(ela que já guardou
uma lua)

Ultimamente, posso dizer,
que é minha irmã mais velha.

Às 8, 14 e 20h
pega no meu
pé.


semente de mostarda

Tu imaginas meus discos, meus livros, meu bagulho:
não possuo nenhuma história, meu amor.

Vivo sob a graça divina
e nem as lembranças
divido contigo.

Se me disserem que o mundo
acaba agora, meto a mão
no bolso

e tiro um pedaço
de papel higiênico
pra limpar a lente
dos meus óculos.

Só.


a melancolia do entardecer

Esse passarinho quando abre o bico
sai uma língua de sogra de dentro
todas às cinco na minha
janela.

Não é que eu não goste dele
(até o acho simpático) mas
o mesmo canto neurótico
é sinistro, velho.

Assinarei um contrato:
eu paro de escrever
por uns tempos

e ele some
da minha
vidraça.

Quem primeiro morrer
de depressão o outro enterra
ao som de um jazz de Nova Orleans.

em cada ouvido cigarras

Agora não tem volta.
O que fiz da vida,
senão escrever
poemas.

E há aqueles tristes
estarão mortos antes
de mim a envergonhar-me.

E outros felizes
serão gracejos e tolice.

Olho para trás
e não há volta.

Não devia ter escrito
um poema sequer.

Agora estou marcado
na palma da mão
como algo
dúbio.

Não plantei flores.
Não acariciei cabelos.

Escrevi poemas
e estou perdido
por isso,

sem lamentações
mas lamentavelmente.


renascimento

Por sete dias
não aguarei
as plantinhas.

Um dia desses (ensopadas)
renunciaram o meu amor.

Pois bem, quero vê-las
sedentas por minhas lágrimas.

Loucas por meus sussurros
e por minhas unhas
arrancadas.

Por sete dias
conhecerão
o deserto.

O que costumam lá viver
esses besouros e escorpiões.

A única voz que elas ouvirão
será a de Jesus em oração secreta.


retorno

Os passarinhos dizem-me bom dia
jogando suas penas pela casa.

Até o pescoço
de penas:

quarto, sala,
banheiro.

Ontem quis contar essa história
mas ainda não entendia bem
o poema.

Apaguei-o e eis-me de volta
tentando decifrar o tamanho
das penas. Sim, eles falam
(comunicam-se comigo) pelo
tamanho das penas.

Ora dizem-me bom dia,
ora gritam sonetos
de Camões.

Alguns até voam
de faixa preta tapando o olho.