segunda-feira, 31 de março de 2014

condão

Falemos de morte.
A minha não sei.

Não sou adivinho, meu bem.
E agora não escrevo poema.

Falo sério da minha morte.
Não sei nem faço a mínima ideia.

Conjecturar sobre a idade
seria um desperdício de papo.

O que posso te adiantar
é que a minha morte
será fria.

Tenho até medo de pensar
o seu vestido pelo quarto.

Agora já escrevo poema.
Não é justo contigo.


idílio entre alados

Você não me viu piscando o olho.
Portanto, não reprove as minhas andorinhas.
Não diga que elas são garotas fáceis. Piriguetes.

Foi uma luta trazê-las
à minha janela.

E pouco importa
se caiu um temporal.

As minhas andorinhas
mudam de tom, mas
cantam pra mim
com outra
flauta.


montanhas

Tenho rompantes
de loucura e romantismos
que deixaria meu primo Quixote
boquiaberto, queixo caído, pernas bambas.

Só uma taça
consigo escrever.

As minhas formigas olham-me
com um olhar de fria censura.


a solidão é uma doceira

Descubro um cacho
encobrindo o olho
o olho mais lindo
da vida.

Desvendo em seu andado
um convite safado
pra pularmos
na cama.

Quando as coisas
começam a cair
das minhas
mãos,

é hora
de amar.


flores silvestres

Você viverá muito,
minha querida.

Andará pela casa
segurando-se em mesas,
cadeiras, cômoda, portas.

Beberá seu vinho
às gargalhadas.

E tarde da noite fará amor
com a minha fotografia.

Você, minha querida,
não mudará de gosto.

Os seus vestidos
continuarão azuis.

Não queira saber onde estou
depois que parti desse mundo.

Faça amor com a minha fotografia.
Não é um insulto você velhinha
e eu com essa barba rala
ainda jovial.

Você me conhecia bem por dentro.
Somos todos tão velhos, minha querida.
Aqui também envelhecemos e tropeçamos.

Você viverá muito tempo.
Saberá o que fazer da saudade.

Mas o que me emociona é você
na cama com a minha fotografia.

É maravilhoso vê-la
com as mãos trêmulas
procurando me fazer feliz.


farmacologia

Limpando o nariz,
distante de mim:
o que queres,
poesia?

Tu ainda não és poema.
Mas já me partes as costelas.

Como respirar feito
um homem normal?

É hora de tratar da barba.
Não cresce como a inveja.

Precisa, contudo,
que eu ajeite seus lados.

Nessa manhã espero sangue
na lâmina do barbeador.


domingo, 30 de março de 2014

lêmur de briga

O poeta
olha seus poemas
como quem vê ovos de ouro:

não se pode tocar-lhes
pensa que é heresia
roubo.


por um final de semana

Um filhote de escorpião
no piso da cozinha.

De imediato pensei no meu filho
andando descalço pelo apartamento.

Ia chamá-lo atenção,
mas o filhote de escorpião
estava morto. Até seco.
Não havia perigo. Seco.

Pisei-o algumas vezes
(sabe como é pai)
e joguei o filhote
de escorpião
à lixeira.

E o mundo nesse final de semana
só não foi melhor porque o garoto
não gosta de matemática e brinca.

Brinca mas brinca
que me tira do sério.

E eu penso o que será do pequeno
se também detesta poesia.


taciturno

Quis escrever um poema de amor,
não vi um súdito que me seguisse:
todos meus objetos calados,
mortos nos seus cantos.

Nem o bermudão
abriu a boca.

Tá difícil, muito difícil,
escrever um poema
de amor.

As minhas plantinhas da varanda
ensopadas não me querem por perto.


pérolas em alto mar

Daqueles poemas
que nos caem nas mãos
de mão beijada - tive um insight:

não são eles plantados
ainda quando dormimos

ou quando caminhamos
da padaria pra casa
em total silêncio?

Ou mesmo em outra vida
quando éramos uma janela,
cafeteira, tênis brancos sujos?

Não seriam esses poemas
que nos banham de espanto
somatória de pequenos suspiros?

Desses suspiros
(já falei tantas vezes)
que nos partem costelas.

Ando pensando
sobre esses poemas
que não nos permitem

nem um ai
ou morte.

Ontem um deles
caiu sobre minha cabeça
e pesava o peso de uma pena.

campanário

O meu crânio furado
com um arranjo
de flores
dentro:

bela peça
ornamental.

Agora sim, minha querida,
meus poemas têm vida própria.


o bom infarto

Já me custa escrever um poema
(e é um susto quando o faço)
agora hei de defendê-lo
na rinha?

Os meus remédios
(todos os meus remédios)
estão dentro da fruteira sobre
a mesa de visita pra todo mundo ver.

Não tenho mais cabeça nem estômago
para confrontos tribais.

Não são os poetas
os teus inimigos.


clausura

Mesmo os poemas mais risonhos
que porventura inspirem gracejos:

há uma língua mordida,
uma lâmina de sangue.


sábado, 29 de março de 2014

diálogos

Eu falo sozinho,
é normal.

Cheiro a toalha de banho
e digo pra mim mesmo:

"não, não, não está
bem lavada..."

Mesmo assim
deixo-a estendida
no varal do banheiro.

Quem sabe o orvalho
da madrugada traga
a lavanda dos teus
lençóis.


lúdico amor

Torcicolo de um gafanhoto
não é igual ao de um elefante.

Mas nem um
nem outro

se cansam
de virar o rosto
a cada movimento
das nuvens ou da lua.

Foi difícil fazer
esse estudo.

Tive que passar um longo tempo
na curva do pescoço do gafanhoto
e na dobra do pescoço do elefante.


segredo

As minhas mãos brincam
sem a minha permissão.

Um dia saberei
a verdade sobre elas.

Se dentro do caixão
no escuro da cova

elas abrirão a janela
ou escreverão poemas.

sábado blues

Se você conheceu
o abismo de perto,

não siga novamente
os mesmos passos
até aquela casa.

Sabe as orquídeas que lhe falei
que crescem pelas paredes?

Também iludem
e cegam a gente.

É bom ver o corpo saudável.
A barba crescendo,
sem grilo.


o ciúme

O ciúme tem um olhar míope.
Veste-se de preto (sempre).

Deixa o arroz queimar, o leite subir,
a água da banheira chegar à cozinha.

O ciúme não para quieta.
Não relaxa. Não descansa os pés
sobre a mesinha de vime da varanda.

O ciúme vive com a faca nas mãos.
Não corta bem a carne do almoço.

Mas já tem marcas
no pulso direito.

O ciúme não é confiável.
Ora picos de felicidade,
ora abismo sem fim.

Soletra a-mor
com a voz mais doce.

E bate no peito
que não existe
amor mais belo.

O ciúme tem o olhar calmo.
Veste-se de azul (sempre).

É atenta: o arroz bem feito,
o leite com canela na xícara,
a banheira estonteante de sais.

O ciúme lê um bom livro.
Bebe suco da fruta.

Vive na varanda
os pés balançando
sobre a mesinha de vime.

Adora a varanda.
Cuida das plantas.
Alimenta as andorinhas.

O ciúme é um anjo.
Lava os colarinhos de batom.
Jura que não vê os números de telefone.

infância

Alguns objetos
já mandam
em mim.

Olham-me qual meu avô.
Corro pra debaixo
da mesa.

E lá escrevo versos
pra cada olhar sisudo deles.


sexta-feira, 28 de março de 2014

lavrador

Volto a arar a terra
e a jogar sementes
de girassóis.

Comum nascerem
dentro das flores
os pardais

bicando os cílios
amarelos de Gogh.


o silêncio da escrivaninha

O mais rico dos reis
com suas pedras preciosas
e ouro e tapetes bordados a lírios
se nunca escreveu um poema na vida
decerto não entende a alma febril (a lágrima).

Repare aquele pássaro quieto
no topo da árvore respirando
nuvens após nuvens
sem desejo.

O pássaro sabe que o céu é dele
mesmo quando o vento devora
todas as nuvens e queima-se
a terra.

Daí ele tem febre,
e mais febre e mais febre.

quinta-feira, 27 de março de 2014

puchaput

Os temerosos da cidade
(na minha adolescência)
diziam que o patchouli
era uma fragrância
de gente à toa,
malucos e
artistas.

O que eu via
passar por minha calçada
era uma gente descolada e bonita.

Depois soube que fumavam maconha,
acendiam incensos, curtiam rock
e liam gurus indianos.

Quando atingiam a libertação
nasciam em forma de unguento.

E faziam sexo aberto
com todos os tipos
de arbustos.


o pombo

Os pombos adoram sol.
Usam botinas (antes
pensava que eram
tênis) .

Uma grade de ferro
nessa hora (sob
esse sol)

é terrível,
mas lá está ele,
bica-se todo debaixo das asas,
arrepia-se: por um minuto me vê.


anfitriões

Se tu plantas batatas
hás de querer a loucura
por perto junto dos cães.

Não há vencedor
no sorriso largo,
meu filho.

Prefiro a dor
à felicidade.

Esta passa,
e logo.

A dor é um estado
de virtude e de crença.

Creia na dor,
meu filho,

e haverá um dia
o romper de correntes.


terça-feira, 25 de março de 2014

turbilhão

Quanto vale o coração usado de um poeta?
Diga um preço decente e você terá
meu coração dentro de um saco.

Já lavei o peito e marquei a pele
com pontinhos de pincéis
e alfinetes.

Apresse.

Tem uma fila de miseráveis
à minha porta e um corvo
saltitante na janela.


segunda-feira, 24 de março de 2014

cantiga de ninar

De casa à farmácia
nunca vi uma mulher
tão branquinha quanto tu.

Um copo de leite,
um chocolate branco.

Envolvida nesse vestido
as formas roliças brincam.

E eu canto: "de casa à farmácia
nunca vi uma mulher tão branquinha
quanto tu um copo de leite um chocolate branco."

outono

O que me tranquiliza
é que morrerei de verdade:
caixão, funeral, última pá de terra.

Já terei no fundo da cova
os meus bons vermes.

Rasguem a minha carne
e a única vaidade
são os sonhos.


candelabro

No baile de fantasia
não careço de máscara.

Entre os convivas
rodopiarei com a mesma
cara lavada de poeta: anjo,
sátiro, rosto de outra alma.


lorde

A minha varanda é um pequeno retângulo
onde cabem com folga sete plantinhas,
alguns jarros vazios, duas cadeiras
de vime, um sol e algumas nuvens
cinzentas que me embebedam
de fascínio essa manhã.

As plantinhas (três delas) precisam ser podadas.
Seus cabelos amarelados não lhe caem bem nos olhos.


domingo, 23 de março de 2014

bolero

A boa notícia
é que você vive
sem a minha poesia.

A má é que meu corpo
já tem outro nome.

Não me jogue à fogueira
com tanta pressa e felicidade.

Conheço bem esse riso trêmulo.
O meu é cínico, distante,
no fim da rua.


sábado, 22 de março de 2014

sorte

Um comprimido minúsculo
é quase impossível encontrar
depois que saltita sobre o tapete.

Mas não é que ele caiu
no meu chinelo?

Dei um leve impulso
com o pé direito
e apanhei-o
ainda no
ar.


a sina de arar

Não passo mal
a cada poema
que apago.

Acostumei-me
aos seus gritos.

A primeira vez que vi o meu sangue
foi quando um inimigo quebrou
meu nariz.

Desde então soube
que um dia vingaria.

Eis-me no cadafalso
encapuzado cortando
cabeças de poemas.


cavalos selvagens

A poesia, meu bem, é mundana:
qual um par de botas e um pombo.

Se tirarem do meu peito o mundo
eu morrerei sufocado de anjos.

E pra que servem os anjos
se não estivermos com o par de botas sujo
e com um pombo doente no parapeito da janela?


plantações no outono

Versos que escrevo em vão
além de me irritarem deixam
um ar de ruína, declínio, derrota.

Como se já fosse muito velho
e não enxergasse a beleza
da xícara.

E ao tropeçar nos próprios pés
não entendesse a delicadeza
dos passos.



sexta-feira, 21 de março de 2014

leilão

Troco os meus poemas
(todos os meus poemas)
por uma Harley Davidson
e três noites com uma russa.

Sou barato
e estou à venda.

(livre de melancolia
e de ópio)

o rato

Concluo então que sou um rato.
O focinho apurado pela casa
à procura de vestígios
humanos.

Perdoem esse rato
que vive longe da poesia.

Os olhos trêmulos
quando vê queijo.

E não come o queijo.
E não crescem seus bigodes.

Concluo então que sou um rato pela casa
beliscando uma coisa aqui outra ali
enquanto derem chance
e fecharem os olhos.


o reino de cada dia

Acordei bem melhor do punho, meu bem.
Já posso carregar na palma da mão
uma formiga obesa.

Custa-me ainda fazer origamis
e podar as plantinhas da varanda.

No mais, até consigo
digitar as palavras
próstata, rótula
e amígdala.


quinta-feira, 20 de março de 2014

escola

Quando pequeno,
bem pequeno,

meus primeiros trabalhos
eram desenhos: casas,
pontes, serras,
jardins.

Um dia a professora me disse:
"por quê não tenta desenhar palavras?"

Daí em diante não consigo
parar de desenhá-las
e sempre acho

que são
garranchos.

tribunal

O nosso papo ficou pelo meio do caminho
e eu me sinto bem com a corda
em volta do pescoço.

Se tivéssemos conversado mais um pouco
você saberia alguns dos meus segredos:
como durmo, por que parei de beber
café, os meus remédios dentro
da fruteira.

Comecei jogando pela janela
uma pena de passarinho,
depois um poema
amassado.


química

Sonhei com serpentes.
Voavam por cima
da minha cabeça.

Um belo palpite
pra jogar no bicho.

Dois reais
ganha-se
quanto?

Seria o bastante
para um jantar
à luz de velas?

Eram serpentes voadoras,
meu bem, e tão tolas:

não sabem elas
que já tive veneno
e vivia trocando de pele.


dossiê

Sempre tive poucos amigos.
Ou quase nenhum.

Não me amedronta a tristeza
dos meus tênis e chinelos.

O que me aborrece
é nunca ter uma alma viva
que me dê banho se estou  doente.

Ainda não domino a língua dos pássaros.
Mas um dia há de entrar por aquela janela
um bando de andorinhas: que maravilha será
a assepsia que farão nas minhas costas com seus bicos.


quarta-feira, 19 de março de 2014

pinturas

Os sinais do seu corpo
alguém de outro mundo
injetou-os em minha alma.

Sempre que sonho vejo uma ilha
na sua virilha e uma lágrima
na sua coxa.


totalidade

Os poemas sou eu quem os escolhe.
Há muito tempo pensei que fossem eles
que me pegavam pelas mãos e eu ia com aquela cara
de desamparado que um gato de botas canalha sabe fazer.

Agora tenho consciência (e transe)
de que sou eu quem os escolhe.

Sobretudo aqueles                    
que adentram as minhas luvas
e me ferroam os dedos: ocultos,
sagrados, completos senhores de si.


ofício

O dia de São José é o dia em que mais trabalho.
Mas hoje com o punho inflamado a doer - sem condições.
Não descerei pra carpintaria (logo agora que bolei um desenho
incrível). Imagine, meu doce, uma cadeira de balanço de vime joia.

Hoje só me dedicarei a trabalhos leves:
uma carta de amor dita em silêncio
e um soneto alexandrino escrito
com os pés na areia da praia.

terça-feira, 18 de março de 2014

sertão

Basta uma tola chuvinha
esfriar um tiquinho o clima
o punho da mão esquerda
começa a inchar e a doer.

Reminiscências do tempo
em que escrevia feito louco
naquele ovo apertado do útero
da minha mãe: lavar a toalha de banho
e espremê-la é fogo, minha querida, é fogo.


pescaria

Após um poema vem outro.
Acalme-se, veja aquela traça
lutando contra o próprio corpo.

As traças não deveriam cair das paredes.
Mas caem, meu filho, e lutam
pra voltar pra casa.

Após um poema vem outro.
Levante-se, beba água
e espere a hora
do remédio.

Você me parece obstinado.
Contente só depois
de fazer amor.


sótão

Ultimamente quero pessoas simples ao meu redor,
comida simples, uma noite simples, dois comprimidos
simples de engolir.

Lembranças simples
de uma mente que
já se ferrou.


sacerdotisas

As mulheres fazem mágica
com os cabelos, os cílios,
os lábios -

e se escrevem poemas,
enlouquecem-me
de espantos.

Sigo-as cego
seus passos.

Também sei
dos seus trovões
e raios. Quedo-me.


lázaro

Quando o poema vem
esquenta meus pés
e tinge de cadáver
meu olhar.

Pareço um morto
esperando milagre.

segunda-feira, 17 de março de 2014

epifania

Aguarde o dia da minha felicidade.
Não terá pra ninguém coração tão festivo.

As minhas botas (faz tempo que falei delas)
fugirão sozinhas do quarto e calçarão
os pássaros.

Ajeite-se na varanda
que passarei por aí.

Não jogue suas tranças.
Subirei pelos seus cílios.

já quase noite

De poema a poema
aprendi um jeito
de caminhar.

A barba cresce,
as mãos tremem.

O tempo em que fui bandido
talvez amasse tanto quanto
agora.

Mas eu era bandido
e as flores não cresciam
onde eu punha as mãos e caminhava.

Disseram no noticiário
que choveu apenas
33mm.

Pareceu-me um dilúvio.
Também quem manda
abrir o peito assim.

luminária

Eu não tenho certeza
se a terra comerá
os meus olhos.

(será possível que me darão um bolo
os passarinhos que contratei
pra hora do enterro?)

Alguns contratam carpideiras.
Assinei um cheque pros passarinhos.

chuva

Amigo, não queira saber
como se desvirgina uma formiga:
não é com o falo mas com o olhar.

Tímida, corre pela mesa
escondendo a alma -

entretanto um monge
sabe onde encontrar
a porta de entrada.

Amigo, vê se adivinha
como se desvirgina uma formiga:
não é com o silêncio mas com a palavra.

De ferro em brasa nos lábios
foge dos verbos e nomenclaturas
mas um esquizofrênico tem a ideia
como queimar a épica bula dos versos.

Trava-se, então, a loucura
(a doce singeleza) entre
o poeta e a formiga:

o primeiro hábil arqueiro
a segunda detentora
do reino.

Amigo, ah, amigo,
não se chega nunca
a um acordo decente.

Hei de lhe comprar alma
com algum tipo de migalha.

Somente assim a formiga permite
que eu beije o seu abdome
e nela faça um filho.

domingo, 16 de março de 2014

tragédia sob o som de um violino quebrado

As muriçocas traem descaradamente:
bebem meu sangue do pescoço
(apaixonadas) em seguida
chegam em casa

e dizem aos seus maridos
que estava um inferno
o salão de beleza.


dulcineia del toboso não ama quixote

Você tomará um susto
com o seu travesseiro:

ensopado das lágrimas
ele confessou-me
seus sonhos.

Tão fácil, baby, sob tortura das lágrimas
estilar dos travesseiros os mais íntimos
segredos da dona.


traficante de pólen

Não sinto as palavras.
O que trafico delas
são as sombras.

Por isso, decerto,
não me engano
das ranhuras.

Acordo sem tempo
para olhar as costas.

Mas sei que as suas mãos,
mesmo sob delírios,
espremeram
espinhas.


amores covis

Que tarde magnífica:
cinzenta, ventinho frio
blues de três passarinhos.

Hora especial para cortar as unhas
lançar aos jarros das plantinhas
todos os sonhos e cutículas
mortas.

Crescerão fortes
e sinceras as minhas
plantinhas da varanda.


rituais da infância

Não me esqueci do quintal
onde enterrei as urnas funerárias
dos passarinhos, lagartixas e borboletas.

Os gatos eu enterrava
aos pés das árvores
da minha calçada.

Em todas as urnas funerárias
eu depositava alguns dos meus
pertences de muito valor emocional.

Em outra vida os meus bichinhos
teriam uma lembrança minha.

Lembro-me claramente
da cor das caixas
de sapato.

Dos algodões,
amuletos
e éter.

Ao término de cada cerimônia
eu acendia um cigarro folha
de bananeira e invocava
os deuses do portal.

Até hoje nunca um passarinho,
lagartixa, borboleta ou gato
puxaram-me o pé
dormindo.

Creio que estão todos contentes
brincando com meu dominó,
soldadinhos, apaches
e bolinhas de gude.

sábado, 15 de março de 2014

conjecturas de um gafanhoto

O maior susto
não é a morte.

Dela temos a ideia
(vaga e tristonha)
de quem se foi.

Creio que susto de verdade
é quando percebemos
que um inseto

na soleira da porta
supõe a nossa total
ignorância do além.

Os insetos pela brevidade
das estações conhecem
nosso frio da espinha

quando um querido
diz adeus e some.

Os insetos não dizem adeus quando somem.
Acostumaram-se a bater as antenas
e apontá-las pra janela.

moça nova

Não vi uma só lágrima, linda Tikuna,
descendo por teu rosto enquanto
as anciãs sob cânticos
dos antepassados
pelavam-te
fio a fio

os negros
cabelos.

Já bebi uma tigela de pajuara
veio-me coragem pra falar
com o pajé a respeito
do amor.

O grande pajé me disse
pra eu me aquietar no meu canto
que o coração de uma Tikuna nada dócil.

Prometi que viveria em uma palhoça
na curva do rio por toda a eternidade
a esperar por ti, linda Tikuna,
mulher forte.

O pajé gargalhou
e me enfiou goela abaixo
mais pajuara - eita, eita, eita!

Agora terei que lutar
contra os mascarados.

Alguns
(suspeito)
rivais meus.


nós em laços

Por força da poesia pensamos
que além dos nossos ossos
alguma coisa etérea
sofrerá

com a partida
do corpo.

Só então dou-me conta
que os poemas não partem.

Que a vaidade,
sim, leva-se
à cova.

A coisa etérea
com a morte
do poeta

não se precipita nem voa:
ela encontra outro amante.


o sorriso de fênix

Se sou as cinzas e a ânfora
que não me julguem as mãos.

O meu tempo agora é de desabotoar o hábito
e não procurar moedas debaixo da escrivaninha.


os sátiros são psicóticos afetivos

A minha vó já me dizia
que escrever poemas
é fazer tricô -


meio indeciso
(e a surpreender-se)
da cor do cachecol.


sandálias de um ermitão

A solidão de um homem
abraçado à geladeira
é o primeiro passo
pra sua beatitude.

Tornar-se santo
há de casar-se
e ter um filho
com ela.


hedonismo

Divirta-se,
meu jardim,
e não pense:

o que pede a flor
a um jardineiro
que ele

não realize
o sonho?


objetos de final de semana

Eu não me lembro durante toda a minha vida
de quarenta e tantos anos nunca ter amado
um bermudão.

Agora mesmo, por exemplo,
uso um surrado cílios brancos
desfiados pelas pontas das pernas.

Não consigo tirá-lo
como fosse-me outra alma
a de jardineiro e montanhista.


lírios de sábado

Amor (outro segredo)
só escrevo o que é frágil
e o coração fora de mim
não suporta mais: a covardia
sucumbe entre os meus versos.


desjejum

Antes do café da manhã que tal um poema?
As palavras queimam as toxinas
que é uma beleza.

É bom parar por aqui, querida.
Perde-se a poesia facilmente.
(se já não a perdi)


sexta-feira, 14 de março de 2014

os cupidos são míopes

Não se abale
a flecha já partiu
entre trepadeiras
não há esconderijos.



mestiça

Acredite, eu escrevia cartas.
Conforme a letra a emoção.

E no final de cada frase
cuspia o meu suspiro
a encharcar a folha.

Um dia o meu amor
de João Pessoa
perguntou-me

se eu não tinha
perfume.




fio da meada

Ia tudo perfeito escrevendo
mas uma palavra não quis ir.

E quando uma palavra
não quer ir é como um lobo alfa
que faz de palhaço um lobo pária.

A questão, meu bem,
é reconhecer tal palavra.

Às  vezes ela se disfarça
de caçula sozinha no quarto
comendo barro de parede fria.

Outros momentos
é o próprio intervalo
que parte as costelas.




êxodo

O limite do poeta
é onde a poesia
abre a porta.


depósito de ossos

há passarinhos que vêm à minha janela
e cantam com a garganta de cigarra

é estranho ouvir
um passarinho
dessa espécie

de muitos cigarros,
uísques e fadiga.


ato lírico de morte

Lembra-se daquela rosa?
Um belo funeral terá a rosa:

um saquinho de plástico para a haste
um beijo de despedida e se caírem pétalas
guardarei pra você as mais doces e mais secas.

A água beberei tranquilo.
Ou banho uma plantinha da varanda?


contemplação por osmose

Escrevendo um ou outro poema
em dia com o remédio
(300 e 25mg)

acredito que cuido
dos campos de girassóis
somente na minha cabeça.

O que anda fora
é responsabilidade
das minhas paredes.


pílula para um esquizofrênico

De dentro do meu ouvido
puxo lenços coloridos
(desses de mágico)

e não há fim os laços,
as cartas, os coelhos,
as facas.

O circo todo, meu bem,
de dentro do meu ouvido.


sete pai-nossos

Não se compadeça do rim
que você extrai de um poema.
Ou de um pulmão ou parte do fígado.

Só não bula
com o coração.

Deixe-o fraco, arrítmico,
com ares de pouca vida.

Mas não mexa
com o coração.

As fadas nórdicas
disseram-me que morrer dormindo
é um sonho infernal que faz mal ao poeta.

Pule com seus filhos
os bancos da praça.


quarta-feira, 12 de março de 2014

irmandade

Você imagina quanto pesa
um baú de poemas?

Subir a montanha
com um baú de versos
não será mole, meu bem.

Mas terei as suas palavras
mudando de escamas
nas minhas costas.

A ponto de nascerem asas.
Não vale, amor, criar asas.

Mudemos de mãos
seguremos outro lápis
mas deixemos de lado
esse negócio de asas.

Subamos a montanha
com o baú de poemas.

Você nem imagina
quanto pesa essa loucura.

olhos de âmbar

Os pombos às vezes são canalhas e me irritam:
resolveram pintar as grades da minha janela
com a tinta branca das suas fezes.

Perdoo-os.

Sou um kaiser
bom e patético.


sonhos de um monge

Quando morrer serei um guarda-chuva:
altivo pendurado no braço
da estante de ferro.

E aos primeiros pingos de chuva
correr humilde às mãos
do meu dono.

Haverá o dia de vento forte
pano avesso raios partidos.

Não irei longe
além de um telhado.


nuvens serelepes

Eu já avisei por telepatia às lagartinhas-de-fogo
que após a chuva as calçadas são uma delícia
para caminhar se espreguiçando.

Aproveitem, então,
minhas amigas
lagartinhas-
de-fogo.

Não dura para sempre a nossa infância:
e não briguem com os pombos.



quarta-feira das rosas

Uma rosa (rosa)
de molho há muitas horas
suplica que a retire do vaso
pois decerto terá um resfriado.

Peço que se acalme
e pense na alegria
da mulher

ao chegar em casa
e der de cara com sua alma
vestida de rosa ainda molhada.

Fresquinha
e cheirosa.

A rosa (rosa)
cede meu apelo

mas antes espirra sobre meus livros
lançando suas pétalas de flor
e alguma meleca.

d. quixote

Já não é a felicidade dos outros que me incomoda
mas esta minha impaciência com o que amei ontem.

Mulheres de óculos,
de aparelho, batons.

Dentro dos meus bolsos
bombons e alguns telefones.

Nada concreto
que me leve
ao altar.

Nem que dê nome
a outro filho.


terça-feira, 11 de março de 2014

boa ação

Como pudim
para dar sentido
à vida das minhas formigas.

Em dois segundos
elas notam a colherinha
jogada na pia e festejam.

Parecem pombos loucos por migalhas.
Borboletas sobre campos de girassóis.
Touros enfurecidos.


breviário

Se um dia houver felicidade
te contarei sobre o meu sorriso.

Por enquanto,
só roupas sujas pelo quarto
e os meus tênis com cara de quem já morreu.