terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

poema escrito em papel de embrulhar pães

Já aconteceu contigo
(deitado) de uma lágrima
escapar pelo canto do olho

pingar bem no travesseiro
e o travesseiro rasgar-se
de tanto rir?

É uma situação delicada
entre o lírico e o patético

como se essa lágrima remanescente
fosse uma estrela cadente
morta a muito tempo
atrás.


efeito sonoro

Um simples grampo,
aberto, sobre a escrivaninha
é uma visão mágica dos seus cabelos.

Prendo-o aos meus cílios
para purificar minhas lágrimas.


os zumbis também cantam blues

Joguei fora ossos de borboleta
girassóis secos poemas de outrora.

Só não consigo tirar das mãos
o cheiro forte do seu signo de peixes.


primeiros segundos

Com fino trato
seguro a lâmina
e corto a garganta
depois ainda há tempo
para fatiar sobre o pulso
um antigo poema de amor.


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

pirata

Roubei tantos poemas
e continuo parco,
pobre, ridículo.

Sei roubar poemas
das sombras do dia.

Aprendi com um ratinho
que morava dentro do armário.

Sempre que eu tirava o pote de bolachas
lá estava ele escrevendo na porta
coisas de rato.


cândido

Não há muito o que dizer diante
dos seus olhos: eles sabem o que vive
escondido atrás do sinal dos meus lábios.

Não se envergonhe então
de me escrever uma carta.

Como está o seu cachorrinho?
E os beija-flores ainda visitam-na?

Se você me amasse
teria agora a minha cara.



túmulo de um desconhecido etéreo

Quem falou
que certa noite
morrerei ao luar?

Não são os versos
atestado de eternidade?

Não gastei esse tempo à toa,
alheio, disperso, navegante,
concentrado na ponta
do meu joelho.


sensual

O primeiro poema
que eu escrever
para você

direi
assim:

"espere-me debaixo da minha cama
e faça amor com as formigas
se não posso ser feliz
serão elas loucas."

Não é para entender o poema.
As formigas fazem sexo com as antenas.

As fêmeas perdem-se em devaneios
olhando o que os machos trazem
nos cílios.


aurora

Aprendo que acordar cedo
olhar o céu e levantar pesos

é uma sutil forma de flertar andorinhas
enquanto elas lavam o bico
e tentam o primeiro
acorde.


espadachim beija-flor

O meu tempo de apreciar a morte
agora é festivo: brinco com ela
de cobra-cega.

No final, exausta, ela
pede um copo d'água
eu lhe trago cianureto.

fadas, duendes e xamãs

Ontem eu aguei uma plantinha especial.
Pareciam os seus cabelos os cabelos
da plantinha: esverdeados
e amarelo nas pontas.

Isso foi há muito tempo
quando vivíamos nas montanhas.

E você tinha uma mobilete
e mais coragem que eu.


arquipélago de peixes mortos

Para eu ser feliz
bastaria crer
no coração.

Mas não sou louco:
meu coração bate tambor
com a frequência que escrevo.

eu lírico

Se você não encontrar um lenço
enxugue as lágrimas com pano
de prato ou folhas secas
das árvores da sua
calçada -

só não vale deixar as lágrimas
borrarem seu batom
rosa-lilás.

É um batom de cor rara:
a sua boca se encaixa
no meu sonho.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

saudades

Aquelas formigas miudinhas
depois que fazem a festa
na taça de sorvete

correm pras minhas costas
no lugar das suas mãos.

Não espremem as espinhas
com o perfume dos seus dedos
mas são delicadas, gentis, caridosas.

Chego a me sentir feliz
como um idiota.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

juízo perdido

O meu sonho
é a cada poema
esvaziar-me o ser
furando meu peito

e ver os versos
bolinhas de sabão
espocando nas portas.


brandura

O band-aid sujo
jogado à lixeira
do banheiro

antes da despedida
merece um beijo teu.

Dias e dias
foi ele o jardineiro
do teu lindo calcanhar.


nem morte matada nem morte morrida

Não me importam os meus pés.
Os terrenos em que piso são nuvens.
Não cabem em apenas uma pisada os sonhos.

De cima tanta névoa
atado à terra cresce
o fogo das mãos.

E há quem diga
que beira dor

mesmo não cabendo dor
no espaço das palavras.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

sombra

Existe alguém comigo
embora eu não o veja
eu o sinto -

muitos o chamam fantasma
eu apenas o chamo de amigo.

Há pouco
o guarda-chuva
estava no chão

agora olho
e o guarda-chuva
está sobre o sofá.


serpentes que gotejam lírios

Nasci para servir
a dois senhores.

Não me salves,
meu amor:

a volta da lagarta-de-fogo
é um passeio em calçada
molhada.


cinza

É lá nos buracos das crateras
de um vulcão que as maritacas
fazem ninho e os filhotes tentam
o primeiro voo diante do precipício.

Você me pergunta
onde estão as mães.

Digo-lhe que as mães torcem pra que as asas
dos seus filhotes sejam tão resistentes
quanto seus pulmões.

Enquanto o poeta,
meu filho, cansa-se de si mesmo
com uma baita fúria mansa e adormecida.


domingo, 16 de fevereiro de 2014

tempo chuvoso

Quando você se formar cirurgiã dentista
viajarei à sua cidade para mostrar-lhe
os meus dentes de poeta.

Você notará nas pontas dos meus caninos
gotas de sangue da minha última
flor.

E os meus molares,
ah, os meus molares,
tão moles da delicadeza
do corpo de uma maçã.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

quimeras de Éolo

O meu amor é amputada das duas pernas.
Sou eu quem a leva ao banho e molha
seus cabelos e enxuga suas costas
e a joga pro alto feliz.

À tardinha desço com o meu amor nos braços
e sentamos na calçada admirando as andorinhas.

Conversamos sobre quase todo tipo de assunto:
ocultismo, tragédias, bons livros, boa música.

O meu amor amputada das duas pernas
quando sente frio abraço-a e subo
os degraus do apartamento
sem descolar meus lábios
dos lábios dela.

Na cama antes de dormir
nós fazemos amor enlouquecidos.

Nesses momentos de tesão
(grunhidos e suor) penso
que não amaria tanto
o meu amor

se o meu amor
tivesse as duas pernas
feito uma garota comum.


as plantinhas da varanda

Quem nunca aguou as plantinhas da varanda
creio que nunca ouviu os mais doces sussurros.

Cada plantinha tem na voz
uma música particular
a agradecer a água
do regador azul.

Felicidade é esse abraço inesperado por seus cabelos.

Cada plantinha tem nas suas tranças
uma forma aprazível de enlaçar
a alma em quem já é tenro
por natureza.

Sim, poeta, felicidade
é o perfume delas.

a leveza dos biquinhos das andorinhas

Divido contigo
leite com nescau
e uma tapioquinha.

Brinquemos com nossos pés
os dedos entrelaçados
até o fim do mundo.

Os passarinhos das oiticicas
não entendem nosso flerte
e sorriem.


escorpião tão lírico

Emagreço / chego próximo ao bambu:
abraçá-lo é apenas curvar-se
sob tempestades.

Ajeito os lençóis
a cama suspira.



terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

teorema dos taciturnos

Na hierarquia dos melancólicos
a formiguinha e o gafanhoto
é um páreo duro.

Talvez essa nostálgica sisudez
explique o ódio entre eles.

Já vi um gafanhoto
destrinchar os olhos de uma formiga
como também assisti a um show de formigas
devorando as patas e antenas de um gafanhoto.

Tudo no mais singelo e doce ódio
tão natural às criaturinhas de deus.


cruzada

A cada dragão morto
engulo a sua fumaça.

A poesia quando precisa
é tão fria quanto a ponta
de um alfinete.

Pensamos que não
mas fura o abdome
de uma formiga.


alzheimer

Enchi o regador
e levei-o até a varanda.

Esqueci sobre
a cadeira de vime.

As plantinhas passaram a manhã inteira
lançando seus cabelos amarelos esverdeados
em cima da boquinha furada do depósito azul.


súplica no meio da feira

Mulher, se queres que eu cante voraz
as mãos quentes os dedos em brasa viva

sem tempo para beber água
sem tempo para ir ao banheiro
sem tempo para aguar as plantinhas

oferece-me o coração
com um piercing atravessado.

Desses de aço
cirúrgico.

Prometo quimeras
e mordidas na nuca.

Tu vês aquele violeiro cego?
Sou eu esperando a tua moeda.


documentário

Na selva do Equador
existe uma rosa rara
que só um morcego
desconhecido sabe
dos seus encantos:

mergulha fundo,
tem a língua maior que o corpo,
bebe o néctar poliniza seus segredos.

O que há demais nisso?
Por favor, pare de pintar as unhas.


abstinência

As minhas antigas muriçocas não me escrevem mais
cartas apaixonadas com o calor do meu sangue.

Deixam-me em paz
as pernas dando sopa
estiradas sobre o pufe.

A única que chega perto
fura apenas o tornozelo
e bebe um cálice.


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

delicadeza

Amor é quando
não há comida
em casa

e se dividem
sonhos.


placentário

A solidão tem alma
gêmea à minha
e juntas

procuram um caminho
pelo mesmo ventre
e umbigo.

Acabam mais sozinhas que nunca.



Praeiro

O surfista antes de pegar onda
passa parafina na prancha
mordendo os lábios
de volúpia -

ao pisar o mar
faz uma oração.

O poeta antes de escrever um poema
seja o que as palavras ousarem crer:
confusão de túneis, caldos,
afogamentos.


amores reais

Três folhinhas secas de oiticica
aos pés do sofá levam-me
à loucura.

Essas árvores da minha calçada
sequer imaginam o que se passa
no meu coração

quando elas lançam suas folhinhas secas
de manhãzinha pela janela do meu quarto.

Dá vontade
de viver.


suspiros matinais

Os porcos-espinhos
não têm dias fáceis.

Entretanto,
não lhes faltam
palitos para palitar os dentes.

Veja só, minha querida,
como anda a minha cabeça:

olhando para o pano de chão
contemplo um elefantinho contente
com uma cara de bonachão de quem
passou a madrugada inteira mamando.

Existem espinhas nas minhas costas
tão tristes, minha senhora.

Não tiveram a mesma sorte
de outras outrora espremidas
por suas unhas de esmalte vermelho.

Agora, diga-me qual o sentido
entre a infelicidade dos porcos-
espinhos, o deleite do elefantinho
a solidão das espinhas das minhas costas?

Veja só, minha querida,
como anda a minha cabeça.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

figura

Meu bem,
acredite:

com três pelos do meu púbis
fiz um lindo sorriso no sabonete.

Afinal o que é a poesia,
senão um arroubo de encontros?



astronomia de criancinhas

O seu sonho é um sonho sórdido
ou é um sonho lúdico?

Se for um sonho sórdido
você morrerá seco.

Mas se for um sonho lúdico
você alcançará as estrelas.

Enfim entenderá
que as estrelas não têm quatro,
cinco ou seis pontas. As estrelas
são totalmente circulares, baby.

As pontas,
somos nós
(poetas e criancinhas)
que colocamos nas cabeças delas.


epístola aos lassos

As sombras da grade
também aprisionam.

Aproveite a luz na parede
e faça silhuetas de bichinhos
com os seus dedos.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

chuva

Já não sangro porcos
nem ovelhas, apenas
o meu sangue
dentro da
taça.

Gota a gota
sobre os livros
da escrivaninha.