sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

puro sangue

Ainda tenho tantos cavalos selvagens
para abraçar no meio da minha loucura.

Não me canso de moldar ferraduras
segurando suas patas e riscando
os seus cascos.

Se os cavalos selvagens perdem
os habituais coices, relinchos
e refugos não servem para
o martelo e o fogo.

O ferreiro aprende
com as queimaduras
o quanto é doce a poesia.


não esqueça de aguar as plantinhas

As unhas dos dedos dos meus pés
são cãezinhos adestrados: assim que chego
com a tesourinha na mão rolam pela varanda.

Balançam a cauda
(majestosas cutículas)
e sorriem para seu dono.

Às vezes me atrapalho
sangro a ponta
de uma ou
outra.

Passo perfume
e logo estão elas
as unhas dos dedos
dos meus pés rolando
pelas cadeiras de vime.


anjo trôpego

Fala com jeitinho com o teu anjo
e ele deixa de ser mau contigo.

Trocará a tua jaqueta
e beijará os teus ombros.

Tu poderás então
sair pra rua sem pânico.

É só um jeitinho com as palavras
e com o olhar e teu anjo deixa
dessas brincadeiras maldosas
de te jogar ao abismo -

sem necessidade,
já que as orquídeas
ontem colhi das paredes.


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

corisco

Se um dia fui cavalo ou serpente contigo
naquele tempo estava muito confuso,
doente, desidratado.

A lágrima
é fácil.

Eu vi um gângster
derramar alfinetes de lágrimas
ouvindo uma ópera enquanto debaixo da mesa
a mão brincava dentro da calcinha da esposa do melhor amigo.

A lágrima
é fácil.

Venha à minha rua,
pise na minha calçada,
suba os degraus do apartamento,
entre no meu quarto e diga que é você
que sempre foi você quem espalha as folhinhas
de oiticica sobre o sofá só para me ver feliz quando acordo.


bluseiros

Em noites como agora
após uma chuvinha fina
sobre os campos de algodão

as andorinhas guardam
seus violinos, cítaras,
gaitas

e tocam blues
nos violões
de 1948.

É de uma destreza espantável
os três dedinhos em cada asa.

cercado por anjos

Nunca quebrei um osso do corpo.
Mas vivo fatiando o coração.

Fatias longas, finas,
curtas, imprecisas.

O poema não está sozinho.
Embora a trama, a lã e os fios
digam o contrário - por isso entrelaço
os ossos inteiros do corpo ao peito riscado.

Devo parecer eterno
vestindo esse bermudão.


pombo debaixo de chuva

Tão difícil a sobriedade
se o céu escurece
e chove.

A roupa de cama que eu lavo
torço os lençóis e a colcha
como se torcesse a cara
dos meus inimigos.

Hora de procurar afeto
em minhas formiguinhas.

Ouvem pacientes minha paranoia
e sempre têm açúcar de sobra
que roubam do açucareiro.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

em nome do meu bem

Escrever poemas é um milagre:
criar fogo esfregando as mãos.

E as fagulhas que escapam
molham a tua janela,
meu amor?

retórica infantil

Quando era menino
não podia deixar
minha sandália
emborcada.

Tinha medo
de má sorte.

Se um gato preto atravessasse meu caminho
corria até ele e o fazia dar meia volta rapidinho.

Quando era menino
vivia olhando os céus.

Vivia olhando o chão.
Vivia olhando as sombras.

Quase não tinha tempo
para olhar meu relógio novo.

Esperava os sinos da igreja
e corria para ver o morto.

Os mortos da minha cidade
sempre davam uma volta
em frente da igreja.

Quando eu era menino
acreditava em tantas coisas.

Vivia tendo pesadelos
de monstros tapando
minha respiração.

Figuras grotescas
de outro mundo.

Mas se chovia,
se chovia forte,

eu fazia barquinhos
de papel e torcia
para que fossem
engolidos pela
enxurrada.

Acredito piamente que naquele tempo
os barquinhos de papel já levavam palavras.
E afogavam versos pelas calçadas da minha rua.

pacto

Sou feito de qual matéria
se a morte não existe
e o que há é perda
de memória?

Não o convidei pra que entrasse na minha casa.
Mas você entrou e foi jogando atrás da porta
suas asas, auréola, tridente.

A voz que me leva ao abismo
tem de ser uma voz aliada.
Entenda isso.

Assim, não teremos problemas.
Os meus vícios não me farão mal.
E eu permitirei que você permaneça
dentro da minha casa com esse andado.
Com esse sorriso sem futuro e olhar míope.

Não me diga seu nome.
Nunca me diga seu nome.

Faça de conta que não o conheço.
E vá juntando suas tralhas atrás da porta:
asas, auréola, tridente, amuletos e mantos.

Se a sua voz for minha aliada
meus vícios não me farão mal.

Entenda isso e não poupe
os meus inimigos antigos,
os recentes, aqueles
que nunca vi.

Só quero tomar o meu remédio,
subir ao telhado frio, conversar
com os gatos e as estrelas.

Um dia você me esquecerá
e dará fim à minha imagem.


ribeirinhos

Se você quiser me namorar
acenda uma vela pra Santo Antônio.

Vá ao riacho no seu quintal
cace três pedrinhas coloridas
jogue no telhado da minha casa.

No domingo vou estar no campinho.
Junte-se aos meus amigos após a partida.
Beba alguma coisa na venda do seu Siebra.

Aproxime-se, diga que joguei bem.
Que fui o melhor em campo.

E se eu quisesse
jogaria no Botafogo.

Sorria, deixe-me encantado
com seus olhinhos esverdeados.
Olha, à noitinha estarei na sua casa.

Vou levar pro seu pai um tatu já temperado.
Para sua mãe um leitãozinho guloso que só.

Casaremos na festa de entronização da imagem de Santa Rita.
Teremos três filhos: Luíza, Joaquim e Norbetiano.

Não gostou do nome Norbetiano?
Escolha outro, minha flor.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

despedida

"Quando eu passar por aquela porta
você nunca mais me verá na vida."

Cumpriu com a palavra.
Nunca mais vi aquela
esperançazinha.

Um bichinho verde
tão simpático.

cores fortes

Estou em dúvida
se girassol, orquídea,
lírios ou rosas brancas.

O meu amor tem os olhos grandes.
Os cílios parecem antenas.

Não, ainda não sou louco,
mas seria o meu amor
a formiga amante
do açucareiro?

Ganho mais sendo pirata
furar a orelha e enfiar uma argola.



escapulário

Morrer de amores é uma boa morte, poeta?
Morrer de amores é uma morte penosa.
Estive lá, ultrapassei o portal
da quimera,

e todos os amores
que levei nas mãos
eram versos. Voaram.

Um homem triste do intestino
não tem bons pensamentos
da felicidade.

Amanhã quem sabe
bem disposto terei outro olhar
sobre as minhas plantinhas da varanda.

Agora, licença,
preciso regá-las.

cotidiano

Aceite, filho,
o seu poema ingênuo.

Aceite aquele olhar tenro e infantil.
Aquela voz debaixo do travesseiro.

Alimentou o seu cãozinho hoje?
Brincou com a sua formiguinha?

Não vejo um poema caminhar tão elegante
quanto aquele poema trôpego de inocência.

Inocente dor, filho.
Aceite a sua inocente dor.

As suas artérias já foram um bom prato.
As suas lágrimas já mataram a sede de muitos deuses.

Já trocou as rosas brancas
do jarro de vidro? Ontem
eu vi a água escura.


elas

As oiticicas da minha calçada não param com seus flertes:
vivem jogando pela janela do quarto suas folhinhas ninfetas.

Claro que às vezes vêm folhas anciãs
com marcas de antigos outonos.

Confesso que são tais senhoras
as que muito me emocionam.

Acaricio suas linhas e sulcos
imaginando quantos passarinhos
não amaram sobre os seus lençóis.

E quantos raios não partiram seus corações de susto
cruzando seus galhos e caindo no dedo de uma formiga.

As oiticicas da minha calçada adoram meu estado febril,
meio fraco, ainda sem forças para escrever uma carta.

Sim, pois escreverei uma carta de amor
para as oiticicas da minha calçada.

Uma carta de amor
com todos os seus adjetivos.

Só cair o primeiro pingo de chuva.
(Quando chove o poeta ama melhor).


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

macieiras

Há uma fila de camponesas à minha porta
com novas receitas de ervas exóticas
para lavar o meu estômago.

Cada uma jura que ficarei novinho em folha.
Prometem em questão de minutos
um sorriso de canalha
no meu rosto cínico.

Como estou ainda muito fraco
não posso caminhar até a porta.

Portanto, entrem, minhas nobres camponesas,
sem cerimônia deixem sobre a mesa
os unguentos e as panaceias.

Ainda estou muito fraco mesmo.
Creio que eu necessito apenas
de cafunés e que me beijem
as mãos.

Escrever versos
com as mãos beijadas
por camponesas é uma delícia.

Entrem e não fiquem tímidas.
Estou muito fraco mas adoro dengo.

Veem os meus pés?
Lavem-nos com seus cabelos.
Percebo que estão úmidos seus cabelos.

Saíram do banho agora,
não é isso? Ótimo,
lindo.


chá de laranja

Não se preocupe com as minhas coisas.
Você é um anjo. Não lhe caem bem linhas
de apreensão no seu rosto liso de mármore.

Você nunca ouviu falar que o mar é pouco
se o poeta tem sede? Como acreditar na dor
de um pavão quando ele abre em leque sua cauda?

Não se assuste. Você é um anjo.
Não carregue peso sobre
seus ombros.

Guarde bem as suas asas.
Um dia precisarei arrancá-las de você.


cintilante

Quando me levanto da cama
o meu travesseiro vem junto
colado nas minhas costas
cheias de espinhas.

Que amor desesperado
meu travesseiro nutre
por meu corpo.

Não há amor tão lindo
quanto fazer amor
com o travesseiro
molhado de suor
e lágrimas.


infecção

Meus amigos poetas,
não fujam da minha cama
logo agora que tive coragem
de jogar flores aos pés da morte

e convidá-la
a uma dança.

domingo, 26 de janeiro de 2014

dor de cabeça

Não me queira tanto mal
não vale a pena odiar o inseto
aprisionado dentro de um copo.

A lâmpada da varanda, creia,
brilha e atrai outros besouros.

Veja, meu bem,
quantas formigas de asas
mortas sobre as cadeiras de vime.

A luz da lâmpada da varanda
é senhora em iludir os apaixonados.

absinto

Juro que tentei matar o poeta.
Preparei-lhe a forca e o desgraçado
usou a corda para apertar a sua calça
de louco. Misturei cianureto a seu cafezinho
e o bondoso homem ofereceu às formigas a sua xícara.

Encostei no seu peito o cano do revólver e saiu uma flor
quando trisquei o gatilho. Tive então a ideia de bater forte
sua cabeça contra a parede uma, duas, mil vezes. Depois joguei
o corpo dentro de uma cova escura. Sete dias depois fui lá e o que vi?
O poeta, o maldito, fazendo amor com as caveiras dos seus ancestrais.

E os seus ancestrais
estavam felizes
sorridentes.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

peça de antiquário

A voz do passarinho
está um tanto esquisita.

Parece que ele sabe
algum segredo do tempo
e me esconde entre oiticicas
sempre que eu chego à janela.

Lembra minha vó
escondendo as orações
dentro do seu baú antigo.


metafísica da chuva

As plantas da varanda com sede
não se importam com quem
traz água.

Se o jardineiro perdido em seus amores
ou um louco de olhos vazios e tristes.

As plantas da minha varanda
não são um cãozinho amigo
que faz greve de fome

deitado na cama do seu dono
que já morreu.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

vem, amor, bater tambor


Fortaleza, 2006




I

Acabei de machucar gravemente uma barata.
Ouvi estalos.

Na derradeira pisada –
De chinelão –

Compreendi o banquete
Que havia proporcionado
Às formiguinhas pretas.

II

Está chovendo
Ou é o rato comendo
A sobra do almoço no lixo?

Visitante indesejável
               Apossou-se da geladeira
E do fogão.
                
               Ainda não tive coragem
De exterminar-lhe a raça
Com uma ratoeira.

Só espalho venenos coloridos
Pelos espaços fronteiriços.

III

Trabalho não me falta.
Novas espinhas surgem do nada.
Brotam com a seriedade de ruga.

Espremo a minha predileta:
Sai sangue,
O pus coagula.

Está virando sinal.

IV

Amo meu lar.
As paredes abertas.
As vozes vizinhas.

O infinito
Entre a cama
E o banheiro.

Uma eternidade
Para cair água
Do chuveiro.

V

Meu umbigo:
Obscuro.

Um elo com a loucura.
Cheirinho de excremento
Purificado pela solidão.

VI

Poemas ressacados
Ainda úmidos
Não vingam.

Nem chego a vê-los.

Mestre cego
E discípulos tontos
Acabam caindo feio do abismo.



VII

Madrugada,
As ovelhas não dormem.

Há lobos ferozes
Que adoram carne fresca.

Madrugada,
As minhocas não dormem.

Há galos insones.
Ciscando.

VIII

Tento andar descalço
Sobre brasas adormecidas.

O corpo padece.
A alma do poeta alegra-se.

Se não fosse a bebida
O verme seria um pássaro.

 

IX

Cacos de cerveja
Empilhados
Servem como ninho
Para ratos ditosos
E ratazanas sensuais.
Todas as noites
Uma balada especial:
Dançam, pulam
Comem pão com chumbinho.
Não morrem,
Ficam mais pirados.

X

Escrevo apaixonado
Pelos pensamentos alheios.

Quem me ama?
Quem me ama de verdade
Além do ventilador quebrado?

 XI

Andamos abobalhados
Levando susto
Do repente da geladeira.

Minha lucidez é uma droga pesada.
Afasta da luz a sombra.
Até as vozes perdem o eco.

XII

No ato da escrita,
Pensando,
Ajustando um
Ou outro verso,
A poesia se dissipa.
Consigo leva
A alma do poeta.
O poeta é de fato
Seu fiel depositário?
Digo,
Na cerração
Do pensamento,
Longe do arrebatamento,
A poesia foge
Ou adquire outra forma?

XIII

Limpando o nariz
Ao sabor da distração,
Poeta?

Tirando meleca metafísica
Das profundezas da cavidade nasal?

Olha que o diabo é embusteiro.
E a mente eterna.



XIV

Seis horas, ave-maria.
Miado de gata prenhe
Na torre da igreja.

Nessa bendita hora
Pecados imaginários
Caem sobre os ombros
Dos solitários (humanos
Ou cachorros).

O sujeito vai à varanda
E acende um cigarro.

O pobre cãozinho
Apenas se prostra.

Tapa os olhos,
Cruza as patas.

XV

Mantenho relação fértil
Com o cordeiro
E a serpente.

Até agora
Alcanço o fruto
Sem subir na árvore.

A cada salto,
Um verso.

Hematoma na testa,
Queimadura no braço.

XVI

Meus ancestrais são vozes que ouço
Para proveito próprio.

Quando a balbúrdia estressa
Ordeno que se calem.

Do útero apenas uma lembrança: 
Pernadas.

XVII

Menino feio, pobre, comedor de barro,
Esquizofrênico e poeta só se apaixona 
pelas formiguinhas:

Nas costas,
Cascas de tangerina
E bostinha de muriçoca.

XVIII

O esqueleto do poeta
Perambula
Só.

Trôpego,
Mas não se fadiga.

A última gota de lágrima
Pinga no cafezinho quente.

XIX

Na hora de vestir minha cueca
Cheiro minha cueca
Para ter certeza
Se estou vivo.
O cheirinho de mijo
Inspira-me.

XX

Pequeninas formigas ensinam-me
Onde encontrar açúcar.
Sigo as danadinhas de longe
Para não perder de vista as mais telepáticas.
Pequeninas formigas
De tão persistentes
Levam-me ao cansaço.
Regresso ao meu quarto.
Contento-me com o café amargo.

XXI

Hora de ir para a concha.
Ouvir o mar.
Hora de dormir na privada.
Estalar os dedos dos pés.
Limpar o nariz.
Hora de sentir as axilas sufocadas.
Hora de tirar uma garrafa
Do engradado.
Hora de apagar a luz,
Encostar as portas.

XXII

Que morte trágica:
Arrancar o couro e a casca
De uma barata voadora.

Meu tênis novo
Solado antiderrapante
Deslizando apressou-se.

“Urra, que meleca!”
Bradou meu filho,

Duende festivo
De quatro anos
E onze meses.

XXIII

Coragem fechar os olhos
Idolatrar o escuro.

Beber leite de madrugada.
Compartilhar com as muriçocas
A pele sangrenta das raladuras.


XXIV

Minha escrivaninha foi desarmada,
Desparafusada, encaixotada, jogada
Debaixo da cama.

Resta-me a máquina de escrever
Olivetti 45.

Um tanto empoeirada,
Mas com uma alma imensa.

XXV

O vazio me espreita.
Vazio amplo e confortável.
O vazio das manhãs de sexta.

XXVI

Genes parasitas perturbam o silêncio.
Uma luxação no pulso
Atinge-me a alma.

Ah, essa mente dúbia.
Ui, esse coração molenga.

Eu devo ter comido muita terra
Quando criança: vivo carregado 
de indolência.

XXVII

De madrugada duas baratas
Em sentidos opostos copulam taciturnas.

As duas baratas fazem amor
E estão sérias. 

Cada uma para o seu lado.
Sem olhar para trás.
Silenciosas.

XXVIII

Não exponho minhas chagas aos tolos.
Contenho-me,
Não vôo.

Pensariam tratar-se de enfermidade.
Seria o fim das minhas reluzentes asas
De protozoário.

XXIX

Cheguei ao ápice da tolice:
Pulmões limpos,
Passos sóbrios.

Todo o futuro embalsamado.
Complexidade somente
No abscesso do meu dente.

XXX

Óbvio
Que sóbrio
Sou apático.
Embriagado,
Trovador lunático.
Quanto ao dia seguinte:
Aço, osso, cinzas cintilando.
Suaves queimaduras do amanhecer.

 XXXI

São tuas as artérias
Que engrossam e afinam
O sangue do meu peito.
Se estás distante,
Enfraqueço.

A insônia
(mãe cúmplice)
Aproveita: sufoca-me 
contra o meu travesseiro.

XXXII

Veio o inverno com seu frio estomacal.
Chuva combina com loucura.

As velhas paredes têm veias:
Teias de aranha.

O velho teto tem alma:
Nódoas de goteira.

 XXXIII

O café está pronto.
Mas, por favor,
Sem perninha de barata.

Minúscula e tenra
Perninha de barata no açúcar.

XXXIV

Lustro meus despojos.
Não haverá outra casa materna.
Nem outro corpo.

Direi adeus em silêncio
Coçando meus testículos murchos.


XXXV

Alto risco brincar de ciranda
Debaixo do meu chinelão.

Inseto destemido,
Não tens medo da morte?

Vai, corre, refugia-te
Pelos cantos encardidos
Da cozinha.

É o teu dia de sorte:
Benevolente deixarei que escapes.

XXXVI

Que soberba altivez
A do macarrão
No pacote.

Que humilde languidez
Há dois minutos na água quente.

XXXVII

Não tenho dinheiro
Sequer para comprar uma escova.

Imaginai, caríssimos,
A situação precária dos meus dentes.

Perambulo altivo, cético,
Com os dentes rijos e podres.

XXXVIII

O poeta menstrua.
Sobretudo no seu aniversário.

Planeja suicídios:
Acende a luz para morrer feliz.

XXXIX

As minhas ovelhas todas
Estão cientes da relva podre
E do céu cinzento.

A qualquer hora tempestade.
A qualquer instante micose no focinho.
Mas são livres.

Pastores só os grilos
e os vaga-lumes.

XL

Não deixa de ser patético
Esconder os versos
Sempre que ouço passos
E a porta é aberta.

Ninguém é digno
De flagrar meu encantamento.
Nem a mãe nem a esposa nem o filho.

XLI

Por mais que eu medite,
O animal se exibe.

Preciso das migalhas medito:
Crio calo na coluna vertebral.

XLII

Esperançoso,
Colo o ouvido
Na parede:

Tento ouvir gemidos
Da nova vizinha.

Torneira aberta,
Só torneira aberta.

Nada que me alegre
O coração solitário.

XLIII

Não posso deixá-la sozinha,
Morrer sem o calor dos meus dedos.

Lute, minha lapiseira,
Pense nas batalhas de Heráclito de Éfeso.

Não morra, não seja mais uma esquecida,
Deixada de lado, fria, dentro de uma bolsinha de couro.

XLIV

Só tenho cabeça
Para poesia.
Dormindo.

Atento.
Letárgico.

Maçã bichada não mata:
Tira-se a lagarta,
Experimenta-se 
o vazio.

XLV

Meu coração treme mais
Que dedo mindinho de alcoólatra.
Será sinal de falência múltipla dos órgãos?
É brincado com as paredes
Que me vem coragem para voar.
Minha mente recicla os pensamentos –
Inclusive os de papel higiênico.
De tão complacente,
Chego a sonhar:
Sou santo.

XLVI

Depois de adulto,
Minha única alegria na vida
É coçar as mordidas de muriçoca.

Na infância era comer barro.
ah, as paredes frias de inverno.

XLVII

Oba,
Surgiu uma formiga.
Já alcançou o guarda-roupa.

Céus,
sumiu rápido:

Alma penada
De monge tibetano.

XLVIII

Barrigudo, abstêmio, desempregado, humilhado,
Maltrapilho, cabelo branco, dente furado, quase cego.
Mas poetizado.

Basta a lapiseira não secar.
Papel a gente arranja na lixeira do banheiro.

XLIX

O que acontece com os sabonetes de hoje?
Não importa a marca.
Se fragrância tradicional
Ou exótica.
Não dura uma semana.
Desmancha-se. Evapora.
Não consigo concluir um verso.
Outrora decorava Camões debaixo do chuveiro.

L

Meu primeiro gole de café,
Minha primeira descoberta existencial.
A vida se resume a um cafezinho quente:
Combina com tédio, solidão, comprimidos.

 LI

De tantas idas ao banheiro
Faço amizade com a descarga.
Ela balbucia,

Eu reflito
Sobre as figuras abstratas
Dos azulejos rachados.

LII

Durma,
Meu filho.

Pode dormir a tarde inteira.
Durma.

Chore e sorria babando.
Nenhuma alma penada o acordará.

Seus anjinhos e seus duendes
Esperam-no humildemente.
Durma.

E só abra os olhinhos
Para assistir ao seu desenho preferido:
Scooby.

 LIII

Tanto faz sozinho
No quarto empoeirado
Rastro de barata
Ou rastro de formiga.

Elas apenas querem caminhar
Com as minhas pernas.

As minhas pernas,
Empresto-lhas.

E não é sonho,
É milagre.

  LIV

Pela letra
Tímida ou rígida
Sei se o verso vinga
Ou murcha.

Pelo tempo azul
Ou nublado
Sei quando apunhalado.

Em todo caso,
Surpreendo-me escrevendo:
De ressaca.

 

LV

Feito traça
Remoendo matéria empoeirada
Esvazio meu ser.

Nenhum morto.
Mas restam cinzas
Na folha de papel almaço.

LVI

Esquecer um poema -
Um poema lapidado e ungido -
É a morte lenta.

Prolongar a busca
Sem horizonte:
É suicídio.

LVII

Em noites frívolas
As muriçocas já bem idosas
Não sentem mais o cheiro
Do meu sangue.

Tenho de ser delicado
Com as enfermas de Alzheimer.

Elas conhecem o caminho de volta
               Seguindo a insônia.

LVIII

Somente tiro meu bermudão
Para dormir.

Somente lavo meu bermudão
Quando tenho micose na virilha.

Minha grandiosa alma,
Ó meu bermudão surrado.

LIX

Aos quarenta anos
Não dobro mais a perna.

Nem consigo me acocorar
Por míseros cinco minutos.

A alma podre:
Veias, músculos, rótula.

LX

Acho que não bebo
Amanhã.

Acho mesmo que não bebo
Depois de amanhã.

Meus fantasmas lambem os beiços.
Viro um patético medonho.
Peço esmolas.
Sou empurrado em valas.

Vi uma garrafa de vinho vazia.
A boquinha aberta suspirando:
“Ui, ui, menino...”

LXI

Se vou ter um AVC
Que seja escrevendo:
Distraído, compulsivo, delirando.


LXII

Esse fantasminha adora meus versos.
Escrevo. Depois cago.
Depois cago.

Amanhã o fantasminha pode cantar em outra freguesia.
E como eu fico? Cagado, limpo, mas sem poesia?

 LXIII

Pode latir, cãozinho.
Ninguém entende sua metafísica primária.
Pensam que é fome. Ou sede. Ou estresse.

Pode latir, cãozinho.
Conheço sua ira melancólica.

LXIV

Os escorpiões adoram petiscos
De patas de barata
Crocantes.

Desde a antiguidade – debaixo de tumbas
E entre fendas – os escorpiões procuram por baratas.

De todas as espécies:
Voadoras, tímidas, cascudas.

O negócio dos escorpiões são as patas crocantes.
Estalando. Dando água na boca.

 

LXV

O sonhador sabe:
As nuvens
Nada seriam,
Se o vento
Fosse uma bruxa
E odiasse crianças.

LXVI

Viver é um barato de ácido
Misturado a picolé de morango.

Quem é poeta –
Mesmo duro, manco, feio –
Estabelece pactos noturnos
Com as formigas, baratas e muriçocas.

E o que dizer dos trouxas sortudos
De bunda fofa e larga voltada para a lua?

LXVII

Amoxicilina é fogo,
Meu filho delira:
Vê baratas voadoras,
Vê lagartixas.

Para tratar da sua garganta inflamada,
De oito em oito horas
5ml de amoxicilina.

LXVIII

Não tenho pressa,
Minha sombra
Já passou por mim.

Deu descarga,
Antes que eu abaixasse
A tampa.

LXIX

A minha parte eu faço:
Vegeto atrás do pássaro.

Não o alcanço nunca.
Mas vegeto com volúpia.

Se o pássaro vai virar nuvem,
É outro assunto para a eternidade.

A minha parte eu faço:
Transformo minha existência.

LXX

Poeta é um fulano
Amigado com o tempo.
Conhece os segredos do agora.

Resta ao fulano
Fugir do transitório
Abençoando o instante:
Plantas, paredes, objetos.

LXXI

Contarei um segredo:
Quando se escreve um poema
Com as costelas inteiras
A gente fica procurando
O coração.

Contarei outro segredo:
Quando a gente acha o músculo
As costelas – feito areia –
Somem pelos dedos da mão.

LXXII

Pai, 
Que abominável fantasia:
Estou viciado em morrer.

Meditar com a luz acesa.
Criar laços com o esqueleto sedentário.

LXXIII

Ninguém é ateu eternamente
Que não creia em terra úmida:
Brotinho de feijão crescendo,
Minhoca na alcova sorridente.


LXXIV

Super-homem caiu de cara
Dentro da lixeira podre do banheiro.

Meu filho não viu
Seu super-homem de brinquedo
Encoberto por papéis higiênicos.


LXXV

Para compor um verso
Amputo o poema.

Para tocar a lua
Vou lhe arrancando as faces.

Não movo um dedo.
Não afasto uma estrela.

 LXXVI

Vem, amor
Bater tambor.

Minha morte já foi anunciada.
Mas não é para agora.
Divago sobre coisas fúteis
Bem aos olhos do gigante.

Quanto vale o silêncio dos objetos?
Quanto custa o elo com seres inanimados?
Todo gigante é cego.

Vem, amor
Bater tambor.

Desligo o computador,
Fecho a porta da geladeira. 

LXXVII

Francamente,
Há noites
Em que ler poemas
É uma lástima.

Escrever,
Um inferno.

Lá no fundo do poço,
Os olhos ardem
E falta ar.

 

LXXVIII

Nos meus dentes abertos
Florescem abscessos.

Dentes podres,
Luas pus.

LXXIX

Lucidez causa cãibras.
A mente esquenta, esfria.
Cefaléia amorosa.

LXXX

Doem meus rins,
Dói meu fígado,
Doem minhas 
costelas.

Volto a existir ressacado.
Tantas portas abertas:
Pouco vento
Que me leve
Até elas.

LXXXI

Meu filho
De quase cinco anos
Morre teimando
Que em lixeira de banheiro
Pode jogar casca de banana.
Defende sua tese com maestria.

Só espero que ele não jogue papel cagado
Na lixeira da cozinha.

LXXXII

Traças e aranhas flertam.
Mas não se aproximam.

(As aranhas sempre famintas)

Louças na pia
De vários gêneros e feitios.
Rapidinho o lunático as lambe
Fazendo balõezinhos de detergente.

LXXXIII

Tolice ver um vulto
É chamar vovó.

Ouvir uma voz
E se ajoelhar.

Existe uma luz
Lá no fim do túnel.

É a mesma pela qual
Certos besouros são atraídos.

Entregam-se afoitos,
Morrem atônitos.



LXXXIV


Como não sei onde encontrar a verdade
Vivo investigando as paredes.
Nem todas silenciosas.

Há aquelas sinistras
Que blasfemam contra as teias de aranha.

Reclamam da umidade.
Odeiam poeira.

Não se apiedam das miseráveis traças.
Recolhem-se de tal forma
Que racham o teto.

Em manhãs de terça-feira
Essas paredes anacoretas
Permitem ao poeta
Um frio abraço.

Depois se fecham
Entre multidões de objetos.

LXXXV

O absoluto e famigerado cérebro
Também se ilude.

Ludicamente ludibriado
Pelos olhos em movimento.

A ponte entre a razão e a loucura
É uma bolinha verde imaginária.

LXXXVI

Aquele poema escrito
No computador engavetado
Debate-se enfadonho
Com dor de cabeça
Deprimido.

Em torno dele,
Palavras tortas,
Um ritmo decadente.

A poesia viaja,
Mas poeta não dorme.

LXXXVII

Lembra-se daqueles versos suspensos
Esperando ir ao banheiro?
Pois bem, estão todos mal.
O dono deles não obra mais milagres.

LXXXVIII

Meu futuro são névoas.
Meu passado ruínas.
Meu presente agora
Eternidade efêmera.