segunda-feira, 30 de setembro de 2013

melancolia

Se você quiser as minhas mãos
terá que vir ao meu quarto
buscá-las.

Os cães do subterrâneo
que guardavam a porta
dei-lhes veneno.

Agora é só um passarinho
simpático que traz boas-
novas.

Ele canta uma ópera antiga
e patético rodopia.

Se você quiser
poderá levá-lo
também.

Faça-me
esse favor.


emoção

A segunda vez que me surpreendo
com a imagem formada no fundo
da minha xícara.

Para alguns adivinhos é comum
ver o destino de alguém
no fundo da xícara.

Mas eles, esses delirantes adivinhos,
têm toda uma formação ancestral
de quimeras e delírios.

Fato é que pela segunda vez
deparo-me com a mesma imagem
no fundo da minha xícara formando
um cínico sorriso, sim, um cínico sorriso.

De palhaço, de milionário, de peixe,
de passarinho, da ilustríssima
senhora morte.

Sabe-se lá,
mas um cínico sorriso.

Na terceira vez
eu lanço a xícara
contra as paredes.


diálogo

I

Rapaz, bom lavar as louças do almoço.
Não vês que as baratas lambem as antenas?
Mentira, na minha casa nunca houve baratas.

Só francesinhas.

E francesinhas, por favor,
não são baratas - diria,
ninfetas de bolsinha.

II

De qualquer forma,
levanta-te da escrivaninha
e vai lavar as louças do almoço.

Não vês que os ratos espreitam a cozinha?
Que calúnia, na minha casa não existem ratos.

Só ratitas.

E ratitas, por favor,
não são ratos - diria,
psicóticos da outra rua.


paralelos da capela sistina

Dormir de janela aberta
só há um risco - tarde
da noite me espantar
com uma sombra
de anjo sobre
o galho.

A árvore da minha calçada
já quase dormindo comigo.

Não falta à oiticica
vontade.



exposição

A carta debaixo da manga
no final do jogo será surpresa.

Nem eu tenho noção
da felicidade ao morrer.

Dizem alguns que é leve
quando o corpo fica
na terra, outros
que o bagulho
é pesado.

O que sei realmente
que três dias atrás
tirei da gaveta
uma jaqueta
antiga -

e você não imagina
como fiquei contente
ao vê-la bem, embora
rasgada, furada, cerzida.

Pensei comigo quantos insetos
não passaram por ela nesse longo tempo
dentro de gavetas entre guarda-roupas e cômodas.

Por isso me comovi -
estava mais bela
e confortável.


dos embalos

Qual a importância
de onde tu vieste
que interesse
tenho

dos teus mares
e desertos

ultrapassados por tuas pernas
a longos passos ou de mansinho.

O portal é o mesmo,
meu amor - a pergunta
que te faço quem tu serás
diante do teu último suspiro:

uma lebre atônita
sob tremores?

ou uma gaivota
ainda trazendo
preso ao bico
um peixe?

Quem serás tu, meu amor,
no último momento da fala

quando o silêncio te arrancar a voz
e os únicos sons não possam
ser ouvidos?

Bebe teu vinho em paz
e deixa que o poeta
arruma a cama.


domingo, 29 de setembro de 2013

da vigília

Se fosse fácil
não dar ouvidos
aos maus pensamentos
os diabinhos seriam infantis.

Coisa que não são os diabinhos - infantis.
São todos macacos velhos e velhacos

de primeira sutileza
e última viagem.

Não lute contra eles,
afinal a nossa natureza
parte da loucura das vozes.

E não há nesse mundo
voz que a sua mente
ouça que não tenha
vindo do inferno.

Todas, meu filho,
sem exceção.

No alto da montanha
ou debaixo da sua cama

a voz que chega aos seus ouvidos
parte do inferno - que nada mais é
a sua alma indecisa a que caminho:

se seguir a lucidez do escárnio
ou, apática, debruçar-se
sobre os encantos
deles -

todos são vistosos,
meu filho, de fato
encantadores.

Não é fácil ultrapassá-los
se o corpo deles é semelhante
ao nosso corpo e a alma deles
conhece mais segredos dos céus.

Tente apenas não lhes dar cabimento
esticando tanto o palavrório
nem ofereça tanta seda
ao silêncio.

Nunca se sabe,
meu filho -

se lã nas palavras
ou carrapato na ausência.


existência

Quando a cafeteira
faz aquele barulhinho
de voz roufenha e sensual

é sinal de que a minha alma
logo experimentará outro deleite:
nunca é igual a mesma xícara de café.

Aos pulos o meu coração dentro do peito
explica às costelas que é normal esse rubor.


quando se poda a alma

Uma planta de longos braços
agora são tentáculos mortos
dentro de um saco

[a faca na pia,
esverdeada
lâmina].

Se tivessem abatido um touro
costelas à mostra e sangue
não ficaria tão comovido.

Mas aquela planta extirpada
eu conhecia há muito tempo.

Conversamos sobre a solidão
e cortei as minhas unhas
em sua companhia.

Se fosse um coelho abatido
o couro e pele secando
ao sol da primavera

não estaria
tão comovido.

Mas aquela planta
tínhamos intimidade.

Vejo-a do quarto -
o saco inclinado
não suporta
o peso.

Eram braços viçosos,
longos, verdes.


levitação

Digo a mim mesmo -
se o corpo coça
coce-o,

mas lúcido
igual à porta do quarto
devorada por cupins famintos.

Existem bactérias bacanas
nesse jogo de quimeras -
nem todo delírio
é insano.


das madeixas

Às vezes a poesia
em seu estado
mais bruto

é bem mais louca
e me foge da mão.

Da mão,
não dos olhos.

E olhando-a de longe
reinicia-se o idílio
até o coito
final.


antes dos sonhos

No tempo em que era noviço
livros e amores minhas ilusões.

Os livros as traças da estante
comeram e outras traças
apagaram da memória.

E os amores,
ainda hoje,
somem.

Não havia alternativa
à minha alma desiludida
senão mesmo escrever poemas.


sábado, 28 de setembro de 2013

arroubos normais em outras galáxias

Você entenderá a poesia
ao olhar para um eclipse
ver um furto escandaloso
entre o sol, a lua e a terra
e acreditar um fenômeno.

O sol que lança os raios,
lua que atravessa o meio
e a terra que nos embala
em movimentos ilusórios.

Tudo lá em cima
é sorrateira lábia.


risos

A doce intimidade
dos amantes ébrios
que se espantam tolos
das descobertas incríveis.

Um sinal na virilha, um cílio mais escuro,
um pequeno corte acima da sobrancelha.

E ao caminhar até a cozinha
outra fantástica observação:

o lascivo e mole requebro da amada
nada mais é que a escrivaninha
em falso.


quimerista

Aquela infância que andava
contando quantas calçadas
até a padaria e praça - é ela
quem voltou a viver comigo.

Conto agora quantas calçadas
até o ponto de ônibus e prédio.

Olho para o céu,
olho para o chão -

não encontro
nenhum passarinho
cercado por formigas.


despedida de girassóis

Se a montanha anda muito longe,
traga-a para perto do seu coração.

Que deleite haveria na vida
se não subíssemos uma montanha
nos pelando de medo e de encanto?

E você silenciosa e tão distante
apenas me pergunta se pode ficar
com a minha jaqueta roída e usada.

Depois da minha morte
até minha alma é de alguém.


as flores não são as mesmas

Não me acostumo
café com adoçante -

na boca um gosto
de quem beijou
uma morta.

E eu não sou necrófilo, meu amor -
bebo então um café amargo, frio,
coado da meia de minha bota.


o vazio tem um timbre gracioso

O pântano espera
o dia do renascimento.

E os corvos (alegro-me)
pouco caso fazem
do errante.

O que os corvos desejam
é anoitecer para caçar corujas
ou seriam as corujas devoradoras
de corvos? Só se forem corvos idiotas.
Não os de Poe. Os de Poe eram especiais.

Embora não me lembre
dos detalhes da fuga.

A ponte sustenta o corpo?
Terrível medo do transeunte.

Deveríamos temer se a ponte
segura a nossa pesada alma.

Mas, passaram os corvos
e as corujas e não se ouve
coisa alguma senão a chuva.


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

IML

Enquanto liberam a papelada do meu óbito
deitado na mesa fria passeio os olhos entre
aquela gente triste, sem brilho, em silêncio.

Pelo que vejo não há um poeta
nessa minha plateia
tão fúnebre.

Dormem todos mortos
igual ao tempo outrora
quando pensavam vivos.

Vontade de escrever um poema.
A única caneta está presa à lapela
do jaleco daquela jovem de branco.

Vou até lá,
não resisto.


bilhete

Se caírem no seu jardim
tiras do meu coração,
não se assuste -

vá juntando
de pedacinhos
em pedacinhos.

Antes da lua cheia
colho o coração inteiro.


ácido

I

Com um pano molhado
pelo corpo da escrivaninha

consegui remover algumas nódoas:
café, caju, manga, chocolate, vinho.

II

As minhas lágrimas
já corroeram a alma
da minha escrivaninha.

Essas nódoas
não há como
tirá-las.


teoria básica dos suspiros

Em uma obra poética
existem aqueles suspiros
que partem costelas e outros
que só deixam costelas dormentes.

De ambos os suspiros
eu me alimento quando
escrevo e sei a diferença
de morrer olhando o céu
e de pensar que estou morto.

Olhando o céu
a gente espera
alguma coisa
cair do alto.

Supondo morte imediata
tudo que desejamos
é jamais acordar
no dia seguinte.


amiga de outonos

Alguns centímetros e os seus galhos
tocarão a vidraça da minha janela -
como antigamente, lembra,
adorável oiticica?

Dessa vez se vierem os bárbaros
loucos pra podar os seus dedos -
comprei uma espingarda
de chumbinho.


das admoestações

Fato é que preciso
que alguém puxe
a minha orelha

ou a sujeira do meu quarto
matará minhas aranhas,
traças, baratas
e cupins.

Qual a serventia
de uma cela de mosteiro
sem essas doces criaturinhas?

Também preciso, máxima urgência,
que alguém emocione meu coração
e me faça doar todos os tênis sujos
que só juntam lembranças e chicletes.

No mais, meu amor,
caminho como deus
deseja de um poeta.

Sereno -
na paz
delirante.


dos pequeninos seres

Tolice extasiar-se
só por que beija-flores
entraram por sua varanda
para beber água com açúcar.

De se espantar mesmo se um beija-flor
pousasse sobre a poncheira de vidro
e lhe fizesse companhia

na sua leitura
de Cervantes.

E depois,
em um breve encanto,
dissesse adeus triscando as asas
pelas paredes do seu corredor escuro.


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

sentado à cabeceira da mesa

Você precisou de três dias
para descobrir que eu tinha
morrido: três dias, três dias.

Não sei se em três dias
o tempo de putrefação
do corpo de um poeta,

mas você precisou de três dias
para sentir a falta do meu perfume
pelos corredores e salões do castelo.

Você precisou de três dias
para se dar conta da inutilidade
dos poemas que eu escrevia no sótão.

Três dias é muito tempo.
Creio que em três dias
a alma do poeta
encontra

uma árvore
ou uma formiga
para descansar.

E você precisou justamente
de três dias para descobrir
que eu tinha morrido
e que a minha alma
estava solta
por aí.

Em três dias ocorrem tantos fenômenos
dentro do meu coração - orquídeas
que nascem e jardineiros
que morrem.

E você precisou desses malditos três dias
para entender que a sua vida é mais importante
que qualquer imaginação de infelicidade e doença.


tumores invisíveis

Um neurocirurgião feliz
é um neurocirurgião feliz.

Imagino que muito
abrirá o cérebro
do paciente

cheio de boas
intenções.

Depois lavará as mãos
até que caiam os dedos.

Nada mais que isso.

Corra, então. E não deixe
que cozinhem a sua mente.

Dentro da sua cabeça
são sementes de mostarda e ideias.


cócegas entre os dentes

"louco, louco, louco"
você me diz aflita.

sou louco, querida,
não pelo fato de escrever
essas coisas tolas e medíocres.

mas -
veja bem, além de escrever essas coisas
me sinto feliz, revigorado, com vontade
de dar um tiro no meu peito apenas pra
ouvir como ele suspira depois de ferido.


canção dos rouxinóis

Só esperando a morte
de bermudão caindo,
criando barriga.

Enquanto a morte,
teimosa, não vem -

bebo café,
escrevo poema.


nuvens de papoula

Se as suas mãos
não fizeram bem
o trabalho sujo -

ampute
os dedos.

Seja forte
e tente outro
poema, meu filho.


quando não se é safado é ridículo

Dificilmente o homem maduro
em meio a adolescentes
jovens e adolescentes
na menor pausa

não veste também a máscara
dos ridículos e passa
a bailar saltitante
sob gracejos.

Compreendo.

Não há como um homem maduro
ser um homem de bom senso,
senhor dos seus atos,
entre adolescentes
jovens e outros
adolescentes
na menor
pausa.

Por isso, a quem preza as asas tortas
e não deseja fazer papel de tolo
cai fora da festa antes
do último improviso
de clarinete.

Ser criança
é outra coisa
bem saudável.

Mas homem maduro embevecido
dos rompantes dos adolescentes jovens
e dos outros adolescentes na menor pausa -

é vergonhoso, sobretudo,
a quem foi bárbaro um dia

e bebeu da cerveja
de Bukowski.


dois velhacos

Um velho cínico e sisudo
perguntou a outro velho
cínico e sisudo

o que eles faziam
na praça entre
tantos velhos
santinhos...

fez uma pausa,
concluiu :

"vamos à minha casa
beber uns uísques."

"tem morfina?"

Quase gritou
o segundo velho
cínico e sisudo.

E lá foram eles os dois velhos
cínicos e sisudos com seus pijamas
encardidos - na esquina, um coçou o traseiro
e escarrou no poste e o outro pôs uns óculos ray-ban.


banquete em Amsterdã

Por muito tempo sempre tive
boa comida, roupa lavada,
cama confortável e ainda
uns tragos.

Hora de pegar a enxada,
prender bandidos, fazer cálculos,
chegar aos planetas mais distantes,
descobrir o veneno de um novo inseticida,
encontrar a alquimia dos místicos do mar morto,
investir na bolsa, mergulhar no escuro atrás de petróleo,
conversar com macacos aquáticos, fazer o dever de casa,
amar as flores, amar os pombos, amar as velhinhas da igreja,
inventar na garagem outra janela virtual, compor sete sonetos.

Agora é só me levantar da cama,
dois pulos na altura do teto,
dar bom dia às aranhas,
ser forte, feliz
e sadio.

Não esquecer meu bermudão,
calçar meu chinelão, ouvir
um blues.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

dos deleites

Formigas bebidas no café são de um tipo,
outra espécie é a que se come
na taça de sorvete.

Contudo,
tanto uma
quanto a outra
dão prazer inquestionável.

Vejam só
a minha cara
de poeta sonso.


limpeza

Quando estiverem cansados
da festa inútil dos outros
venham à minha casa -
pois aqui é tudo sal,
açúcar e muito
baque.

Falta faria eu a mim mesmo.

Quando estiverem mortos
fantasmas pelas ruas
não se esqueçam
do endereço -

aqui na solidão
da minha casa
o ouro queima
as mãos e não
se bajula alma.

Falta faria eu a mim mesmo.

Quando entenderem
que ídolos são todos ótimos
para se lançarem do precipício -

a porta da minha casa
estará aberta e o trinco
envenenado ao leve toque
um aperto terrível no peito.

Falta faria eu a mim mesmo.

Quando deixarem de ser tolos
cortejando a beleza da família real
não pensem duas vezes visitem minha cela -

aqui entre insetos e paredes
tem uma parada invisível
que nos causa festim
embora fúnebre
e tediosa.

Mas corram,
não se acanhem.

Falta faria eu a mim mesmo.


das riquezas

Não interessa quantos
você pensou em matar:

estupradores, políticos,
falsos profetas, boçais.

Graças ao bom deus
você não apagou
nenhum inseto.

E agora pode deitar-se
com as roupas de cama
trocadas cheirando ainda
aos seus cabelos e costas.


aneurisma

As lágrimas de hoje
são exclusivas do poema -
essa capacidade de rastejar-se
pela casa sem pele e sem ossos.

Só as palavras.


das ternuras

Os porcos não gostam
do meu coração fatiado.

Os passarinhos,
ao contrário,

todas as manhãs
batem na vidraça
da minha janela -

"e aí, compadre, cadê
o coraçãozinho
no espeto?"



das salivas a mais pura

Se um dia você me visse
chorando (sem motivo
aparente)

só por que vi
um facho de luz
bater na parede

talvez então
você entenderia
o amor delirante -

das botas,
das xícaras,
das formigas.


a alma é a fuga

Em silêncio e distante
me perguntas por que
a eternidade da alma

se tudo que sabemos
que ela não se molha

se estamos no chuveiro
ou não arde se no fogo.

O motivo óbvio?
Vê a melancolia
dos meus olhos.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

pedintes

Não se iluda
da generosidade
de quem é soberano.

Generoso é aquele
que atravessa a ponte
entre a festa e a solidão.

E confabula consigo mesmo
a maneira mais simples
de oferecer a alma
ao poema.


sonho

Não de graça
esta alma canta:

desça seu vestido
e me abrace nua.


torre de babel

Quando eu aprenderei
a língua dos homens
comuns e felizes?

Em casa ou na casa alheia
é a língua do poeta
que me escapa
da boca -

atravesso a linguagem
compreensível do outro
passo por tolos enganos.

Enquanto único desejo
era o profundo silêncio.



deusas de marfim e porcelana

A beleza de uma mulher
já não me derruba -

o que me intriga
é o perfume
das mãos.

Comerei ou não
os seus dedos?


minimalista

Ando cansado
e o poema longo
me mata de tédio.

É bom morrer
sem tanto hálito
e sílabas, amor.


da humildade

O poema permite-se,
se o poeta abrir a mente:
o coração é para depois.

Ou você bebe café
sem açúcar?


açaí no pulso

Escrever versos
não te faz uma pessoa
melhor ou pior que as outras.

Mesmo que tu detestes -
não há palco para exibição.

Verme que és,
passarinho
também.


sons de Hermeto

Caiu o garfo,
somente isso:

caiu o garfo no piso
da área de serviço.

E eu antes de abaixar-me
pensar em lavar o garfo

pensei primeiro
em escrever
um poema.



guizos nas asas

Os passos do tolo
ainda que debaixo
do clarão do fogo
são os passos
do tolo.

No fim do mar
[se pondo] o horizonte
queima os olhos de quem foge.


apelação

Ando pela casa com o bermudão caindo -
assim que encanto os meus objetos
e as plantinhas da varanda.


dos reinados

Difícil não é viver,
viver é fácil
e bom -

difícil mesmo é encontrar
uma parte da mesa
sem formigas.

Agora é preciso
pedir-lhes licença
pra beber meu café
com o pão de milho.

Parecem cachorrinhos e gatos
de olho no meu delicioso
desjejum.

Que palavra feia "desjejum".
Palavra de doentes ou mortos.


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

portal aberto

E tu que reclamavas do grilo
no canto da casa
cantando

morres de medo,
hoje em dia,
do silêncio.

A paz de espírito
é uma fábula,

mas terás lucidez
no inferno cristalino.


elogio da loucura

A minha alma deixou o meu corpo.
Levitando disse aos meus ouvidos:

"a minha vida ficou mais triste
quando te conheceu..."

Lindo, não?


o cajado de trôpegos

Como vim,
vou-me -

sem asas,
escamas
e tristeza.

O veneno da serpente salva-me.
O fogo do dragão esquenta
a minha caverna.

Como vim,
vou-me -

sem ouro,
livros e versos.

Agora as formigas
bebem em paz
o meu café.


pedido

Roguei a deus
que hoje de noite
peneirasse o céu -

e todos os pontinhos de luz
e todas as lindas estrelas
caíssem ao teu rosto
em doces sinais.

Espero que tu gostes
do teu novo visual -
uma mulher
feliz.


quando setembro se for

Voltou o pássaro à minha janela -
aquele pássaro ermitão de papo amarelo
que me aconselhava sobre a tristeza e paranoia
das paredes e dos seus terríveis insetos parasitas.

Não farei a cirurgia
de redução do coração.

Exploda meu peito
de tanta gula
e sonhos.


domingo, 22 de setembro de 2013

tremores

O roupão do meu filho
suspenso no varal

das rajadas do vento frio
suplica que eu o salve

e leve-o
ao guarda-roupa.

Preciso comprar um novo roupão.
O rapazinho já passou do tempo
de golfinhos.


dos venenos que sinto

O mal não é o que plantei,
mas o que permanece
a cada dia

por teu desgosto
em ti florindo -

esquece o meu cinismo,
a minha vaidade poética,
a febre lasciva do meu olhar.

Não desabes ao abismo
próxima da minha alma:

eu colho orquídeas,
tu colherás minha dor?


ossos sob festim

À penumbra
reconheço
meu par -

claridade é ilusão
da breve euforia.


garrafas de vinho

Perdi a noção do tempo
ontem de madrugada

ouvindo as vizinhas
do andar de cima -

e falavam alto, e bebiam,
e gargalhavam, e jogavam
dominó, e chegavam à janela,
e cuspiam nas minhas roupas.

E era tão simples
chamar minha atenção -

bastaria com a voz delirante e rouca ao interfone
recitasse Rimbaud - "Ela foi encontrada! Quem? 
A eternidade. É o mar misturado ao Sol. 
Minha alma imortal,  cumpre a tua jura 
seja sol estival ou a noite pura."


dominical

Sem sobressaltos
caminho à varanda
tranquilo, tranquilão -

a alma do solitário
também gosta
de reggae.


fantoche dos deuses

Distante de mim
o abraço é forte -

esmagam costelas
os saudosos suspiros.

Trate-me como se trata
uma criança com catapora
um doce ancião com alzheimer.

Mais interior
dentro da alma
seria escuridão.


das terras dos encantos

O meu flerte é parco,
parvo, apático, logo
me canso da corte.

O que anseio é a nuca
da mulher e não a valsa.

Perpetuar-se em idílios
é a doce solidão anunciada.


sábado, 21 de setembro de 2013

pupilas dilatadas

Não se preocupe
com as formigas
que você bebe
no seu café -

faz bem pra vista
e a sua alma
anda cega.

Perdeu o contato
dos últimos sonhos.


árvore não genealógica

Um filho de peixe
pode ser um réptil,
um primata, um pássaro,
um elefantinho, uma jaguatirica.

Não necessariamente
um filho de peixe
é um peixinho.


frêmitos

Creio não existir coisa tão sensível
quanto a minha escrivaninha
após um poema -

toco na sua pele
branca de enfermaria
e caem cílios do seu olhar.

As botas debaixo dela
franzem o cenho
de ciúme.

É um jogo claro
entre os objetos
a quem primeiro
leva minha alma.


chapéu de nuvens

"durmo de janela aberta
para facilitar a vida
das estrelas"

Gosto desses versos,
embora você imagine
que são pretensiosos.

Querida, veja -
se as estrelas
são apenas brilho
de algo que já morreu,

diga-me qual o narcisista
gostaria de ser cortejado
por distantes cadáveres?

O poema vive muito além das mãos
de quem o escreveu e dos olhos
de quem o lê.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

bênção

A distância é fértil terreno
para escrever poemas: só.

Não entre nessa enrascada,
senhor urso - procure agora
sua ursa da sua rua e urrem.


vicioso estado de alma

Para se amar a sua tristeza
bebo as minhas lágrimas
com amor -

gentil troca
de solidões.


ágape

Dividir o poema
é convidar um estranho
quem você nunca viu na vida

a entrar no seu quarto
e beber café na sua xícara.

Enquanto ele bebe
você o admira
em silêncio.


bebedores de fumaça de café

Os óculos que uso,
enfim, formam

a própria
personalidade.

Sempre que bebo café
eles - com cara de poucos
amigos - reclamam aos olhos
que a fumaça que sobe faz mal às lentes.


assassino

O poema tem que ter liga,
cola, saliva, pingo de chuva.

Alguma coisa que junte,
unte, una e entrelace -

e logo à leitura
se rompa

e voe,
e fuja.

Se não tem, baby, eu apago.
E ainda mordo os dedos da mão.


a natureza dos mimos

A primeira coisa ao acordar
o meu primeiro gesto
com os olhos

é prestar atenção
se o vento trouxe
ao quarto alguma
folhinha de oiticica.

Vivo apaixonado
por essas árvores
da minha calçada.

E elas retribuem jogando
dos seus galhos ao sofá
folhas secas - às vezes
até verdinhas.

Confessam segredos ao poeta
que apenas crianças entendem.

das sextas sagradas

Sabe aqueles prendedores de vassouras?
Aqueles que têm ganchos de plástico
e pelos quais as vassouras ficam
suspensas.

Há pouco, questão de minutos,
meu ombro desajeitado derrubou-os
e [acredite] caiu um coraçãozinho rosa.

Esses prendedores têm tantos adornos.
Mas um coraçãozinho rosa é demais.

Claro que me abaixei
e apanhei o enfeite.

Olhei-o atentamente -
um coraçãozinho de plástico rosa.

Essa minha vida é engraçada -
ontem pensava em túmulo
em inscrição fúnebre
de lápide.

E nesta manhã acabo de colar
um coraçãozinho rosa de plástico
em um objeto de suspender vassouras.

Se não fosse mágico
seria patético,
meu bem.


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

de uma tristeza única

Caminhando pela casa
levando na palma da mão
um jarro de rosas brancas
purifico os passos de ontem.

Se possível,
morreria mais vezes.


torre

De poema em poema
caminho ao mar e encho
um balde de conchas e búzios.

O meu castelo será indestrutível
e somente cavalos-marinhos
passearão pelos becos.


margens do rio sagrado

Como é gostoso espreguiçar-se
e quebrar algumas costelas
dos últimos suspiros.

As paredes [ouço-as]
confessam aos seus insetos
que a surpresa do instante não tarda.

De fato, estão certas -
vem o vento da tarde
e arrasta pra longe
tudo que é traça
e pernilongos.


graciosidade

Um corpo sem pulso
não é sinal de morte.

Morte é aquele
coração sem vida.

Um corpo sem pulso e frio
só precisa de uma alma febril.

Dessas almas
que conhecem
a delicada arte

de prender a respiração
por três minutos,
depois sorrir.


da ilusão do saber

A serpente sempre foi apaixonada
pelo pássaro e houve um tempo
em que conviviam no alto
da mesma árvore.

A serpente enrolada a um galho
refletia sobre os céus do pássaro:

as brisas, as nuvens, os arrebóis,
o nascer e o pôr do sol fascinantes.

O pássaro ouvia como se distraído,
e por fim interrompeu o devaneio
da serpente -

"minha amiga,
não queira estar
na minha pele..."


brigadeiros

Que faz o poeta
com esse orgulho
tolo e desnecessário.

O pasto é verdejante -
as ovelhas não se preocupam
se choverá ou cairá do céu um raio.

Para as ovelhas aquela árvore
no alto da montanha é onde
há sombra e a brisa
é boa.

Diga-me em que espaço o meu fingimento
se a dor é palpável, há nódoa e com ela
nas mãos embrulho brigadeiros?


promessa

O sol que chega ao meu quarto
é um sol sorrateiro - não bate à porta,
lambe o buraco da fechadura com sua réstia.

Manso, e quase sem ouvi-lo,
devassa as minhas coisas:

livros, botas, caixas
de sapato debaixo
da cama.

O que faz um lázaro
diante da parte do corpo
consumido pela esperança?

"Levanta-te e encaixa
a pedra de volta
à tumba."


dos infelizes

Perguntaram ao ferreiro
porque ele era tão ríspido
com os metais e martelava
e forjava as espadas dos guerreiros
com tanta seriedade e silêncio. O ferreiro
conteve-se em mostrar as palmas das mãos,
calosas, e completou -"filhos, isso de brincar
com ferro e água não é divertimento de crianças."


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

dos perdões

Só me fale de amor
quando não mais existir
a saudade de alguma coisa
dentro do seu bolso ou um poema
ainda a ser escrito bem tarde da noite.

Só me fale de amor
se o coração parar.

E você esquecer aquela triste lembrança
da sua única moeda encantada
engolida por uma fenda
de parede.


casa dos avós

Daquela febre,
bolacha e guaraná à cabeceira,
guardo o lençol branco hoje puído
que me servirá durante a morte até a cova.

Não deixem que os coveiros roubem
o meu santo sudário - perfume
da infância.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

de volta à cela

Entre mulheres e poetas
há a intuição que não os abandona -
e eu sigo o que meu coração aconselha.

Cansado de palavras desesperadas
e uma mente tagarela que deseja
o invisível -

retorno ao meu quarto
e minha vida se resume
aos baques costumeiros.

Sei fazer carinho
em um espantalho
para que amanheçam
meus girassóis intocáveis.


a solidão de bermudão

Procuro no teu álbum fotografias
que mostrem as tuas pernas -

no entanto, o que vejo
somente teu sorriso.

Risos pra lá,
risos pra cá:

tu nunca tens
dor de cabeça?


imagem dentro da carteira

Só existe um anjo
do qual me orgulho -
o meu anjo da guarda.

Esse suportou e ainda leva nos seus ombros
o peso dos meus delírios e pés de passarinhos.

Tem o rosto
de anjo apático,
forte e tão distante.

Desses resignados
das tolices do afilhado.

Raras vezes sorri,
e se o faz é cínico.

Só creio no meu anjo da guarda -
os outros serafins e querubins
são de outra linhagem.

O meu é míope
e anda com os óculos
sujos de gordura dos meus cílios.

Aguardo o dia do nosso encontro
em que ele com suas asas de fogo
me olhará dentro dos olhos e dirá -

"Tu foste foda,
maluco, agora
vais queimar."


bálsamo

Acredita na farmacologia, poeta -
se não fosse o diclofenaco sódico
tu terias amputado a mão por aquela
dor infame de teus tendões inflamados.

Vê como é bom estar agora saudável
com a pá nas mãos cavando tua cova.


infarto particular

O que me faz tremer o coração entre as costelas?
Saudade dos perfumes da minha infância, ruas,
cada esquina, trajeto até a escola, praças,
bancos de cimento, chicletes, pipoca,
passarinhos se abanando, fios
de alta tensão,

pipas, fanta, bala soft, hortelã,
bolinhas de gude, areia molhada,
triângulo, calçadas, córregos da chuva,
barquinhos de papel, cadernos, capas, apaches,
soldadinhos, doce de banana, bolo de milho, avó.

Se existe outra vida,
quem precisa?

Aos meus sonhos
basta esta, querida.


encruzilhadas

A poesia é quase um deus pagão -
parece distante, mas a cada moeda
abraça forte nosso corpo e gargalha.

Vivo abraçado
sob gargalhadas.

E não paro de oferecer moedas
nem de ofertar ao sacrifício
a alma.


a doce dama

O que me torna um homem feliz é essa melancolia
que finge não me conhecer e eu não lhe ofereço
flores.

Continuamos assim há muito tempo,
bem antes do primeiro poema:

ela me acompanha martelando o meu coração,
e eu faço de conta que são canções de passarinho.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

timbre do bambu ao vento

Se fôssemos todos telepáticos
como triste e fútil seria a vida.

Loucura dos vaidosos
desejar ouvir o que foi dito
novamente pelos mesmos ouvidos.

Depois que você abrir o seu baú antigo
mexa nos seus segredos com cuidado:

não borre a pureza
do espanto .


patético dos patéticos

Cansado de lenga-lenga
em vez de esmurrar paredes
beijo cada dedo da minha mão.

Beijo com tanto fervor
que os outros dedos
da mão esquerda
fogem pela casa.

Será uma loucura
encontrá-los debaixo
da geladeira e dos jarros
das plantinhas da varanda.


louvores ao vazio

Se pensar muito
vai congelar aí
em cima -

ao abismo é natural
o voo e o precipício.

Só peço que caia atento
e se possível leve ao poço
ao fundo do poço orquídeas.

Dizem os monstros do subterrâneo
que as orquídeas do abismo
são as mais belas
do mundo.

Do meu mundo, e não do seu -
você morreu quando não pulou.


noviço

Depois do poema,
caminho pensando

como será nosso
próximo filho -

se terá asa de xícara
ou toalha florida
de mesa.

Aprendi a girar a aliança,
conforme meus sonhos -

um dia o dedo cai
e eu troco de noiva.


a fábula do abismo

Um bichano deitado na poltrona
observava pequenos besouros
de encontro à lâmpada.

Chocavam-se os besouros contra
a fluorescente e tombavam
ao seu alcance.

O bichano pegava-os pela língua
e experimentava aquela iguaria
de besouros eletrocutados.

Um besouro ainda vivo
olhou bem nos olhos
do bichano -

"Não lhe basta
nossa agonia
e morte?"

O bichano se pôs de quatro patas.
Investigou o besouro moribundo.

"Isso que não entendo -
por que vocês são
suicidas?"

O besouro antes de dar o último suspiro
e ser devorado pelo bichano sorriu
cínico.

"Da nossa paixão pela luz,
meu caro, tu nunca saberás..."

O bichano abocanhou o besouro -
mastigava-o calmamente
enquanto refletia.

"Paixão pela luz?,
esses besouros
são loucos..."

E voltou a deitar-se na poltrona
esperando que caíssem mais perto.


transgressões

Que raios de loucura
é essa que não foge
das minhas mãos?

Conversei com os meus objetos
e expliquei-lhes que não é normal
tanto amor explodindo o meu peito.

A xícara branca de leite
com a colherinha dentro
permanece irônica e feliz.

O que eu posso dizer
da felicidade dela
senão amá-la?

As botas vivem exaustas do vazio
e da poeira debaixo da escrivaninha.

"Um dia retornaremos às calçadas",
tento persuadi-las às novas aventuras.

Mas elas sabem [e eu também]
que o tempo outrora não volta.

A estante de ferro
o que mais faz
de saudável

é segurar meu guarda-chuva
com um ar altivo e esnobe.

Do quarto apenas suponho
que a cafeteira desligada
sonha com o açucareiro.

Esse idílio
é eterno.


das magias

São oito os jarrozinhos de cactos
sobre o parapeito da janela
da vizinha.

Ela não sabe, mas já faz um tempinho
que os seus cactos são meus amigos
e confidentes -

vivem me entregando o jogo
do seu coração e pensamentos.


pecados de um samurai

Juro a mim mesmo
que nunca mais comerei
coraçõezinhos de galinha.

De madrugada pesadelos
com os senhores galos

enciumados
e tristes.

E não me ouvem
dizer que só era
divertimento

de um rei
solitário.


meditação

Pegue a tesoura de jardineiro
e o regador e vá tratar
do seu jardim,

pois já me amedrontam
tantas pragas e ervas
daninhas.

Compreenda o que os seus olhos falam
não olhando para o espelho, mas
com eles fechados

em profundo
silêncio -

a força que move as suas pernas
não é sua e nem deste mundo,
assim como não é deste reino
a canção que se ouve
do seu peito.


liberdade

O amor não tem um alvo.
O amor adormece de olhos bem abertos
vendo tudo que se passa próximo e distante.

E se o amor gosta do que vê -
então se levanta, vai até o coração
e a voz suave ordena que se faça luz.

E a vida brilha como agora brilham
as folhas verdes da oiticica
de minha calçada.


caolho e manco

Se você acredita no meu amor,
deixe-me antes beber meu café.

Não acredite, senhora,
sou um canalha e o idílio
é a minha natural postura.

Dos sonhos tão singelos
tenho apenas uma ambição:

escrever poemas
até que a mão
caia de lepra.

Quem sabe então
um sujeito comum
sem mãos de poeta
eu acredite no encanto.

Mas por enquanto,
minha senhora,
sou patife

e o meu flerte descarado
é apenas um truque
de amar o fardo
da vida.


razões para ter bons sonhos

Se apagarem a luz
do teu quarto,

dorme debaixo
da cama -

estarei lá te esperando
com uma lanterna
na mão

pra gente ler poemas
de Quintana e Rimbaud.


a sincera ilusão dos cegos

O sonho, o encanto e o amor
são três atributos inventados

pelos lunáticos trovadores
que não tinham espada
para rasgar o ventre.

Como eu tenho uma adaga antiga
agora mesmo me ajoelho
e passo a lâmina

dividindo o coração
em dois poemas.

Um haicai para os loucos.
Uma elegia para os santos.



domingo, 15 de setembro de 2013

ratoeiras

Há neste mundo
de ratos e homens
dois tipos de armadilhas.

A primeira o rato é pego
com a boca ao alcance
do queijo.

A segunda o homem
que é preso pelo perfume
da mulher que sai do banho.

Entre ratos e homens o mesmo destino -
o rato morto pela gula e o homem
pela paixão.


abismo florido

De tanto idílio com as cerâmicas da cozinha
a minha xícara pulou da mesa
e espatifou-se

feliz da vida escondendo os cacos
de porcelana pelos cantos da casa.

E eu que presumia
amor eterno.

Os poetas, meu bem,
nada sabem do que se passa
nas asas das suas silenciosas xícaras.


dos encantos

Ao descer a escada
pensativo e bobo
com os sacos
de lixo

desperta-se no meu coração
um singular instante
em que ele

olha bem os meus olhos
e sabe o que acontece
dentro da alma.

E dentro da minha alma
a única verdade que imagino
é que o sol não queima as orquídeas.


bicos e dentes

Deve ser a construção ao lado
que afugentou os pássaros
da minha janela.

Deles sinto falta
como nunca antes
senti de alguma coisa -

exceto da perda
dos primeiros dentes.

E caíram todos no sonho.
Eram apenas dois
da frente.

A fada dos dentes
é uma sádica.

Que raios de dentes!
Não são importantes.

Mas os  pássaros
que sumiram da minha janela -
sim, o motivo da minha desgraça.

E se hoje não os vejo
lembro-me apenas
dos seus bicos

batendo contra os galhos da oiticica
para em seguida martelar a grade
do muro do vizinho.

Se tivesse bico
não seria poeta
seria passarinho.

Mas tenho dentes
borrados de café.


sábado, 14 de setembro de 2013

lonjuras

Escrever cartas de amor
é um exercício de encanto,

mesmo que não exista uma amada
encostada ao portão do jardim.

Mesmo que não exista rua
e árvores nas calçadas.

Mesmo que o carteiro
tenha morrido de infarto.

Mesmo que a sua mão
já não se lembre

das sombras dos dedos
iludindo a palidez
do papel.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

língua bifurcada

A serpente cínica que louva
o seu inútil veneno parece
não entender que sangue
de poetas

é um sangue
em que borbulham
só os venenos dos versos.

Quem morre
é quem não entende

que a poesia não tem princípios
senão o de rodopios dentro da gente.

A escolha foi minha
ser paralítico
e viver

rastejando pela casa
a lamber as pegadas
das minhas formigas.

Não me interessa a morte
sem a ilusão e o peso
da poesia.


os primeiros românticos

O poeta está fadado
a ouvir até a morte

o coração
da amada -

as costelas do poeta
sempre foram encaixe
dos mistérios da mulher.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

nuvens

Se quisesse encanto,
eu beberia teu vinho -

queima primeiro a tua alma
com a melancolia do poeta.

Só depois que me tragas teus pés
que eu pinto de lilás as tuas unhas.


os arrebóis de Gogh

O que tu fazes,
meu amor, quando
o peito arde e os cílios caem?

No meu caso
escrevo um poema
e bebo uma xícara de café.

E tu, meu amor,
cantas um blues?


fortuna

Quando aprendemos a andar trôpegos
quem nos vê do alto (os pássaros)
imaginam que somos deuses

e nos seguem o caminho
sob o inconfundível
zigue-zague

daquele que leva
na palma da mão
um coração louco.


além da sobrevivência

O grande amor
de uma baratinha francesa
é um escorpião que escreve versos.

E passeiam eles de bicicleta
pelas cerâmicas da cozinha.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

cúmplice de fadinhas

Creio que há poemas
que seguem o caminho
do coração de alguém
sem que o poeta diga.

Este poema com minhas botas
caminha na direção da sua casa.

Sei que é tarde da noite
você cansada
dorme.

Mas não é o poeta -
é o poema e ele vai
com a minha alma.


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

troca de dádivas

Ao encher o copo de água
duas sementes de maçã,
ao acaso, do fundo
boiaram -

pensei comigo
e sorri:

"é uma bela resposta de Deus
 ao meu delirante amor pela vida."


a sabedoria de um bambu

O único objetivo do demônio
é iludi-lo a pensar derrotado.

Se isso acontecer,
seja mais esperto -

não se mexa,
não ligue as vozes,
não pule do abismo,
não corte seus pulsos,
não envenene seus filhos.

Permaneça inútil
e detestável até o fim.

O demônio entenderá a sua força -
rangendo os dentes o deixará sozinho.
E sozinho você saberá enxugar as lágrimas



boneco de pano espetado por alfinetes

Tenho plena consciência
de que o meu santo
não é de todo
amigo

de outros
santos.

O meu santo além de psicótico
é boçal, possessivo, romântico.

Se eu fosse outros santos
e logo cedo batesse de cara
com esse meu ar presunçoso

também tentaria afogar-me
na minha xícara
de café.


sinais de epifania

Esqueceram de molho
na pia da área de serviço
pequenas estatuetas de cerâmica.

Encontra-se de tudo:
miniaturas de jogos de cozinha,
gueixas, uma arca de noé com duas girafinhas.

Mas o que me chamou atenção,
seduziu-me de fato, foi uma camponesa
com um cestinho de flores. Pareceu-me tão real
que pisquei para ela e juro que recebi um sorriso de volta.


domingo, 8 de setembro de 2013

o doce delírio dos pagãos

O único fim proveitoso
quando escrevo versos
é esperar no dia seguinte
mais coragem do coração.


a velocidade dos insetos

Embora eu não fugisse,
a cada tom de sílaba

um osso do dedo
se fragmentava -

o poema era muito longo
para quem só se esforçava

em pôr de pé a alma
orgulhosa da solidão.

escultor de sopros

Cortarei o mármore do nosso túmulo
com as minhas próprias unhas

e esculpirei um lindo anjo
de asas descomunais
fincado na entrada
como espantalho
de corvos.


códigos

A poesia desestabiliza -
pense bem em que terreno
você deseja subir a sua casa.

Todos os dias
os seus cílios
darão nós
em seus
olhos.


cerejeira

A sua inocência purifica
a minha loucura
e de mãos
dadas

passeamos entre
girassóis e serpentes.

Não se acanhe da sua dor
mas não seja tão cruel
com a esperança.


idílio entre o asceta e a camponesa

Tu me perguntas
para que serventia
os meus braços longos.

Querida, são pontes
para borboletas
e beija-flores

atravessarem o quintal
da tua casa ao meu quarto.

cupins

A tragédia dos ferozes cupins
não é o que causaram
à estante -

inútil agora
aquela altivez
de jacarandá.

A loucura dos cupins
é o breve tempo
que precisam

para devorar
além da estante
todos os livros
antigos.

E vejo a estante em estado de choque.
Enquanto os mercenários cupins
ainda festejam com seus fuzis
dando tiros pro alto

embriagados
de querosene.


sábado, 7 de setembro de 2013

anacoreta

Vivemos por conjecturas.
Nem a morte é certa -
pois sua natureza
é ambígua.

Se queres saber uma verdade -
vê, meu bem, o amarelo
dos meus dentes
de muito beber
café.


tempo de lápis

Não apenas ganhei uma vida
escrevendo versos - suportei
outras tantas em meus dedos.

Vi mil sombras de falanges
criando destinos sobre
papéis que hoje
penso -

"onde vivem aquelas palavras
de antigamente escritas
no embrulho de pães?"


corpo

Tu terás o meu corpo
porque da minha alma
creio que estás cansada.

E  pelo meu corpo
descobrirás sinais,
cicatrizes, marcas
de vacina, músculos
adormecidos, artérias.

A cada descoberta, peço-te
que dês um beijinho
no local -

a batizar o território
com teu batom
e saliva.

Serás a senhora
deste velho corpo

em que a febre
é eterna.

adaga que corta névoa

Anterior ao poema
há uma atmosfera
por muitas vezes
personificada -

perfume, objeto,
um inseto pela casa.

Agora foi uma pequena lagartixa -
dessas domésticas que vivem
fugindo entre as paredes
da cozinha

com ar de surpresa
e medo.


criação

Para fazer uma menina linda
basta Deus amanhecer feliz

mas para fazer uma mulher
Deus tem de estar em transe

e Deus te fez tendo um troço
que os cardiologistas chamam
de infarto - teve o infarto Deus
e te fez entre os sonhos e morte.


lírios

Os erros do passado
são ridículos a quem perdeu
um olho e o outro brilha cego.

Não há caminho a seguir
senão permanecer silencioso

rasgando os antigos poemas
com flores brotando da nuca.

A mente é um demônio cansado
que só espera do seu dono lucidez.


sabatina

Enfim caiu-me dos céus
coragem para lavar o banheiro -

diante dos meus olhos o escovão sorri
e o sabão em pó me diz que a vida é bela.

Mas se tal primeiro
bebesse um café
e lesse Rimbaud?


monge

Exausto da beleza
que enlouquece
a alma

descanso
sobre

meu túmulo
acompanhado
dos teus suspiros -

tu que és saudade
da eterna euforia.


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

cânones do vazio

A poesia não escolhe os seus poetas -
se alguém escreve versos e morre
[e renasce] por cada palavra

quem haverá de dizer
que não é real a sua dor?

Siga o seu caminho
e não esqueça
de olhar

para o céu
e para depois
das suas nuvens.

Quem o segue, logo some -
assim é o vento e o chumbo.


quase dengue e dengo

Há um deleite na virose:
deixa o meu corpo humilde.

Sobretudo
os ossos.

Antes da maldita
o esqueleto anda altivo
sem destino e senhor de si.

Basta a virose fincar a sua bandeira
sobre meus músculos e sangue
os ossos afugentam-se
ao que a alma vê.

E correm pras cartas amorosas
e aos lenços do passado.

Incrível o que uma madrugada chuvosa
e livros antigos não fazem com o poeta.


por tabela

Já tive um olhar mais triste
e três almas desesperadas.

E ando sorrindo por dentro
das viagens do meu coração.

Pergunta-me sempre
como vão as lágrimas.

"como hão de estar -
aflitas e dóceis."

Respondo
e volto a viver.


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

ciganas

As quiromantes não conseguem ler minha mão.
Confessam-me: "as linhas da palma
o vento levou, agora o seu navio
vive à revelia..."

Que raios isso significa
não entendo mesmo.

A última que saiu do meu quarto
foi-me mais convincente apenas
beijando-me os dedos,

um a um, silenciosa
e de olhos febris.

Com esta posso contar
para um jantar romântico.


baque e rumores

Quando os poemas se escondem
caminho até a cozinha e faço um café.

No trajeto sempre há uma sombra
de algum objeto contra a parede,

um som de inseto,
uma conversa
de vizinho.

Não é difícil ver a poesia dando sopa
com sua saia rodada de bicos floridos.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

efígie

Naturalmente, sem esforço e perdas
o pássaro cansou-se das nuvens
e decidiu andar entre pessoas -

entendeu que o amor
é bem mais belo

sentindo o perfume
de quem se ama
perto,

e lançou fora
as asas.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

ponte sob névoas

Confesse ao mundo
que o seu coração

não pertence
a esta terra

e lá estarei -
no outro lado
da margem -

esperando
seus sonhos,

pois é no invisível
que se colhe a saudade
e não morremos em paz.