quarta-feira, 31 de julho de 2013

o filósofo amante

Podemos dizer adeus
até ao nosso primeiro
amor, mas aos nossos
fantasmas é impossível.

Vivem em nossa pele
juntando todo até breve
para um dia a eternidade.

É o trabalho deles,
o meu é não me iludir.


seda

Não importa o livro
que eu leia - penso
em você,

pois na última vez
em que fui à sua casa
roubei do seu banheiro
aquele papel perfumado
que embrulhava seu sabonete.

Agora serve-me
como marcador
dos meus livros.


fábula do entardecer

O rei da janela do seu palácio
viu ao longe a sombra
de um homem triste.

Desceu as escadas arrastando a túnica
e conforme aproximava-se do fantasma
ia verificando que se tratava do seu jardineiro.

O rei chegou a dois, três passos
do homem taciturno, triste.

E o rei falou -
"O que foi, homem,
cadê a sua alegria?"

O jardineiro levantou os olhos
serenos e sem brilho algum

e apontou pra um canteiro
um fabuloso canteiro
que cultivara
há pouco -

orquídeas, tulipas,
azaleias, rosas,
jasmins.

Respondeu o jardineiro -
"Com elas, está com elas
a minha alegria..."


irmãos de carceragem

Se o poema não tiver liberdade
para caminhar, amputo
minhas pernas.

A poesia purificou-me
da convivência com loucos -
como agradecimento, jorro
seus filhos nessa selva seca.


o ciúme é um vinho embriagante

Quando cheguei ele já estava
sentado ao teu lado oferecendo-te
quitutes à tua boca e te fazendo gracejos.

O correto, como manda o figurino
de um lorde de sangue frio, era
simplesmente sorrir, acenar,
ir ao balcão, pedir
um drinque.

Só que tu esqueces
que não sou um lorde.

E o meu sangue é quente: sertanejo,
senhor de engenho, pistoleiro de família.

Além do que - dorme dentro do meu coração
entre essas cavidades sanguíneas uma vespa
que detesta ser acordada da sua sesta
antes das seis da tarde.

Explica essas questões culturais a ele,
enquanto estiveres revezando o bife
de um olho ao outro do sujeito.

Não te esqueças de meter-lhe no bolso
a passagem de ida e nunca mais pise
na tua casa esse gringo casquilho,
canalha, almofadinha.

Lembra-lhe no aeroporto meu último conselho:
"a sorte às vezes é uma mãe esquecida
que tranca o filho recém-nascido
dentro do carro."


alma bamba, quase trôpega

Não foi difícil, te confesso,
ganhar o prêmio do ano
de mais romântico
boticário.

Aquela fragrância
elaborei cheirando
as nossas cartas
de amor.

Os primeiros que experimentaram
o perfume nos meus pulsos
foram os beija-flores.

Quando um desmaiou
com sorriso lindo
no bico,

tive então certeza
que faria sucesso
a minha alquimia.


nada de novo no front

Uma porta que se abre
linda vizinha que chega
de viagem, lembrancinha
nas mãos, um sorriso doce,
olhos brilhando de felicidade.

Disse-me ela,
tremendo lábios:
"Sua irmã está?"


bela adormecida

Até minhas botas descansam:
os calcanhares pousados sobre
as rodinhas da cadeira giratória
elas fazem pouco do poeta insone.

E eu espirro quatro vezes
para acordar os vizinhos.

Alguns entendem meu sinal
e respondem, cúmplices,
com uma tosse
tímida.


terça-feira, 30 de julho de 2013

um homem maduro

Lembre-se, moço, que os seus gladiadores
e soldadinhos de ossos de galinha
e ossos de tutano de boi,

os seus carros de lata de óleo,
as suas moedas encantadas
tampinhas de refrigerante -

salvaram a sua infância
e coroaram a sua alma
de encantos.

Se hoje você se perde
em devaneios olhando
simplesmente paredes
com as suas ranhuras

a exuberância nasceu
naquele tempo de miséria
em que você menino brincava.

Os seus heróis de ossos de animal,
os velozes carros de lata de óleo
puxados por barbante,

as moedas do tesouro
tampinhas de refrigerante,
o seu barquinho de papel
de embrulhar pães, os grampos
da sua mãe que você alargava-os
para que se transformassem monstros -

era a sua mente infantil e brilhante
que lhe oferecia do seu coração
vida para o poeta que hoje
chora.

Não é tempo de morte,
moço, nem de despedida
mas aproveite essa delicadeza
e beba um pouco das suas lágrimas.

Elas são bentas,
o mundo a seu redor
respira o seu oxigênio.

Lembre-se que a doçura dos objetos
não muda - o que finda é a luz
do olhar, a janela sem grades.


elos de almas

Os meus defeitos são tantos
que o próprio encarregado
do Mal dispensou-me
de enumerá-los.

Mas um específico,
a ingratidão, não carrego
sobre meus ombros calejados.

Mesmo dentro do ventre da minha mãe
se ouvi vozes gentis e senti boa energia
essas pessoas estarão salvas da morte.

Sim, pois no dia em que os esqueletos
virarem poeira e a carne alimento
do fogo ou da terra

estarei junto dos meus
com o coração aberto.

O infinito amor de um poeta
não há traça viva para devorá-lo.



bambu ao vento

Já não sinto frio
aprendi a fazer fogueira
dos ossos das minhas costelas.

Quem ultimamente reclama
são os meus travesseiros
dentro dos quais

metia os punhos
e buscava
deles

as vísceras
e o coração.


firmeza

Não são apenas os céus que conspiram
a favor da lucidez - o chão, sobretudo
o piso da cozinha:

há pouco as próprias cerâmicas
seguraram os meus pés
evitando um tombo.

E seguraram as cerâmicas
os meus tornozelos
com força
e zelo.

Da mesma forma que um pai
segura a mão do seu filho
quando atravessam
uma briga de bar.


dá a Lázaro o que é de Lázaro

O sacrifício foi feito
e o fiz durante um século.

Agora ponho sobre meu túmulo
um lindo arranjo de flores e um bloco
de versos desses meus últimos dias santos.

Atravesso o pátio
dos mortos que ficaram mortos
e digo ao sol que bate no meu rosto
que me acompanhe, pois havemos de amar
muitos leprosos como eu sob um tempo louco.


o sinal

Dedos, anéis e mãos
perdemos um dia -
sinal no rosto
é talismã

quando discreto
só se faz visto
após a barba
feita.

Amigo de longas datas
(acima dos meus lábios)
deu-me força naquele
tempo de trevas.

"Vais me matar
também?"

Era o que dizia
com inocente silêncio
de um sinal de nascença.

Depois de tantas loucuras
parece-me ele jovem
porque pareço eu
mais calmo.

Imagino a minha morte
em que morto o corpo
estarei deitado com ele
sereno iluminando a face.



ondas de luz

Cansado das cabeçadas
contra as grades da jaula
descobri que doem menos
as têmporas se eu atravessar
uma moeda de ouro ao carcereiro.

Não é suborno,
apenas criar laços
de amizade com quem
cuida da minha solidão.

Até crescerem asas
sobre os meus ombros
o carrasco terá morrido
e eu acordado um santo.


doce terça

De tão lírico que acordei
à primeira andorinha na calçada
darei um belo nome - renascimento.

Veremos se a andorinha reconhecerá
a minha voz de etéreo poeta sem corpo.

Pois já se foram ossos, pele, cílios,
dedões, tudo junto com os versos.

Agora o que levita
são minhas botas
mascando chiclete.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

ciranda nas nuvens

Guarde minhas mãos
dentro da sua bolsa -

o que as linhas das palmas
tinham a revelar do destino
fizeram-no, meu bem, agora
é conosco carinhos e atenção.

Segure forte o meu mindinho
que voar com os passarinhos
é uma loucura boa e bacana.


a solidão de um burguês

Quando uma mulher some
da minha rua e nunca mais
passa debaixo da varanda,

contento-me em apedrejar
os pombos, pois são eles
os culpados.

Esses pombos têm o péssimo hábito
de sujar os cabelos de minhas musas
com o excremento das suas migalhas.


paixão de aracnídeos

Sei que os insetos me amam,
ah, sim, sei - mas há certas
aranhas que perdem
a noção e passam
do limite.

Só me esperam levantar da escrivaninha
chegar até a porta do banheiro
que caem sobre meu rosto
a mil beijos frenéticos.

Alguém tem de explicar
pra essas aranhas
que teia linda
é aquela

ao raiar do dia
no meio do caminho
de um bosque florido.


mel

A vizinha do andar de cima
todo final de tarde banha-se
com o perfume de alguma deusa,
além dela própria, e enlouquece-me.

Não se trata de um sabonete comum.
A fragrância que rompe minha alma
é um cheiro benevolente
e infernal.

Sinto-me qual um menino
descobrindo alegria de homem
sob a penumbra dos bons sonhos.


um jovem senhor babão

Quando baba o teclado
o poeta tem duas opções:

ou levanta-se e caminha
até o jardim do prédio
e flerta andorinhas

ou simplesmente
mete a mão no bolso,
tira o papel higiênico,
limpa o que babou.

No meu caso,
por viver polindo
as lentes dos óculos,
tenho quilômetros de papel higiênico
dentro dos bolsos: basta-me então suspirar,
encolher a barriga e quebrar algumas costelas.


segredos revelados por etérea convivência

Você me diz sorrindo
morrendo de felicidade

como se tivesse descoberto
um tesouro, botija, moedas de ouro
no quintal do casarão dos seus avós

que ao estar contente
eu ponho a língua de fora
e mordo os lábios - e isso, ressalta,

apenas ocorre em dois momentos
da minha vida: quando escrevo versos
ou quando lavo louças do jantar e almoço.

Só acrescento que o fato de pôr a língua de fora
e morder os lábios quando lavo as louças

é na verdade por que já vejo
versos à altura do seu olhar.


nuvens suspensas formam novos horizontes

Enquanto as minhas mãos estiverem ocupadas
escrevendo versos a minha alma não sairá do corpo
e este entenderá que a sua agonia é ridícula ao presenciar
a dor de um inseto que perde as patas e as antenas em uma tarde
de vento forte e muita solidão, enquanto estiver ocupado em escrever
versos as minhas mãos não pegarão em armas e não estourarão os miolos
dos crápulas, imbecis, extravagantes reis e pedintes furiosos com o próximo.

Enquanto eu estiver bem
sem entender essa morte
que beija as minhas mãos
estaremos salvos da tolice.


obsessão de um jardineiro

Preocupa-me a ausência das formigas
pela mesa depois do lanche, preocupa-me
a meia fora da bota, a lágrima preta do café
marcando a face da minha xícara como o rímel
marca a lágrima da minha menina por seu rosto branco.

Preocupa-me o tombo, a perna contra a quina da cama
e nenhuma dor, preocupa-me a eternidade dos óculos
que me dizem mesmo mortos nunca largarão
os meus olhos.

Preocupa-me sobretudo outras mulheres
que desejam roubar a minha pequena
dos meus braços.

E fogem do controle
e me empurram
do abismo.


a pele em flor

A camiseta branca molhada
pendurada no varal do banheiro
sabe muito bem torturar a minha alma
quando bate ajudada pelo vento nas minhas costas.

Tremem-se minhas costelas de arrepio
e a camiseta branca ainda faz graça
ao sorrir.

Beijo-lhe a gola
e digo até breve.


segunda florida

A minha morte é lenta,
pois não se acaba
o meu amor.


domingo, 28 de julho de 2013

musgos de telhados antigos

De cada mulher que passa por minha vida
colho um frasquinho do seu perfume
e outro do seu sangue.

Em noites a morrer de saudade
com os olhos de D. Quixote
e as mãos peludas
de lobisomem -

subo ao telhado,
misturo as preciosidades
e bebo o encanto contente.

Em questão de segundos
o coração se preenche
de doçura e coragem.

E já não penso em deixar órfãs
as plantinhas da varanda.


mulheres que trituram o coração

Antes de ir embora,
ela pediu para que eu subisse
o zíper das costas do seu vestido.

Eu morria de medo daquele vestido,
pois sabia quando ela o vestia
comigo ou com outro
passaria a noite.

À porta, tirou a mão do trinco
engomou a lateral do vestido
sorriu pecaminosa.

Um táxi
esperava-a.

Fiz mira com minha pistola
da janela da varanda.

Mirei o pneu, a cabeça do motorista,
a cabeça da minha amada.

Ainda tinha muitas coisas pra fazer naquela tarde:
aguar as plantinhas secas de quase uma semana,
louças na pia, limpar a sujeira do meu hamster.

Outro dia eu faço o que prometi
ao padre no confessionário - cair fora,
fugir da presença daquela mulher maldita.

Mas os seus olhos
já tinham me cegado.

E cego, cego da gota serena,
não há mais o que fazer da vida
o poeta perdido, louco, um santo.

É bom eu guardar a pistola
onde meu filho no final de semana
ao me visitar não encontre - dentro
da descargar do banheiro quebrado.

O que farei, até lá estiro
as pernas sobre o pufe
e jogo longe
um livro.


sábado, 27 de julho de 2013

todas as luzes da casa acesas

A poesia põe a coberta
sobre minhas pernas mortas.
E se há alguma verdade nesse frio,
dentro da alma, são os versos que revelam.

Ausente do poema [do ofício de erguer o olhar
para o alto imaginando a qualquer instante
desabar o teto] nada resta de bom
e sagrado.

Contudo, se escrevo -
mesmo que seja tolice-

basta o ritual de me concentrar na solidão
que uma luz torta, difusa, engendra
outra pessoa que me salva
do vazio.

Salva-me porque me lança
mais profundo no pântano
das palavras.

E de lá não deveria sair,
seria completa a morte.


ocorrência ao entardecer

Depois da tampa
da pasta dental
perdida

o jeito será deixá-la
sem chapéu, permiti-la
ao vento, à temperatura,
às bactérias oportunistas.

A minha escova entenderá
o beijo ressequido da pasta fria.


cruzada

Se o meu coração tem uma vida à parte,
o meu sincero propósito é seguir essa criança.

Caminhada árdua, mas enquanto caminhar
estarei atento como em noite de lua cheia
atravessa o mar a minha sombra.

Ninguém segurou as minhas mãos
quando tentei uma viagem sem volta,
portanto ninguém segurará minhas pernas
a impedir que eu caminhe e suba a montanha.

Com o tempo o coração,
pequena criança, se dissipará
lentamente aí poderemos beber
o nosso sangue uma grande taça
de água pura sem demências e fúria.

E haverá sossego no meu olhar -
mais que brilho e sonhos.

Os mortos que de dentro de mim morreram
serão cobertos de respeito, porque um dia
foram eles o princípio da partida.

Mas aos mortos
um adeus festivo.

O que seguirá será o novo
o doce deslumbre e as palmas das mãos
abertas e bem vistas ao olhar do próximo.

E eu direi risonho -
"Não trago armas,
vejam a pureza
do coração."


o verdugo vem de navio

Um inimigo distante
é bem mais terrível.

Se próximo,
puxa-se o tapete
ou joga-se sobre
a cabeça um pote.

Afastado, longínquo,
havemos de atravessar mares
conhecer outras ilhas além da nossa alma.

Durante o caminho
também corremos
o risco de amá-lo.

O inimigo então caminhe
um pouco mais para trás -

que o abraço
lhe quebre
ossos.

exército de criaturinhas

Ainda hoje, meu bem,
pego-me filosofando
o sumiço da legião
de cupins -

simplesmente um dia acordaram,
puseram seus alforjes sobre
os ombros e partiram.

Deixaram as portas do quarto
desfiguradas, verdade -
mas as deixaram
de pé.

Não olharam para trás,
não me disseram adeus.

Partiram como partem
noivas apaixonadas
por viajantes.

A minha companhia é tão desprezível?
O perfume delirante das minhas cuecas?

Partiram os cupins
e nunca mais os quero de volta -
os cupins são presunçosos e hiperativos.

Davam-me nos nervos,
sobretudo quando mordiam
meus pés já dentro das botas.


o sétimo andar do deleite

Eu, meu amor, de bem com a vida?
Só quando você me vir ajudando
um pombo a atravessar o sinal.

O que eu faço é bater papo com minha alma
o tempo todo e ela sempre tem segredos
para me revelar do maravilhoso
cotidiano.

Seria um crime hediondo
conhecer a língua das coisas
e não trocar alguns olhares e ideias.

Enfim, sou apenas um ladrão
do amor da minha alma
por quem em volta -

xícara, plantinhas,
botas e um livro
sobre a mesa.


os mancos óculos

Destreza é a palavra correta
quando se lava as lentes dos óculos
com uma já suspensa quase vã e solta.

Seria impossível flertar o cotidiano doméstico
míope, tombando pelas paredes, levando
no caminho cadeiras e pufes.

Portanto, nessas horas de pura atenção,
sou um monge beneditino e cauteloso -
lavo meus óculos como se cuidasse
dos tomates da horta.


é vasto o deslumbramento

Não, as coisas em que toco
nem todas viram ouro -

mas continuo dando vida
aos passarinhos mortos
dentro das caixas
de sapato.

Voa, andorinha,
que o alto é a tua casa

e passa logo pela janela
desse céu banguelo
de azul infinito.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

as horas são leves se é madrugada

Não tenho dúvida
de que meus anticorpos
também escrevem versos.

Curei-me rápido
da garganta tosca
da gripe tão sinistra.

Sou um novo insone
pela casa sem tossir.

Nas pontas dos pés
os meus fantasmas,

e eu lhes digo
pra andar
normal.


náuseas

Algumas formigas
passam por meus pés

olham para cima e me condenam
como se desconfiassem
do açúcar que hoje
me lambuzei.

E estão certas essas formigas -
de tão doce o meu corpo
exala uma alma mórbida.


cabelos de louca

Que cabelos são esses,
céus, a minha alma
é apaixonada
pela beleza

e tira onda
que a luz interior
é a que ilumina meu caminho.

Vinicius era um sacana,
eu sou um sacana,

por amar tanto
mais que a própria vida
os cabelos de uma louca.


a velha senhora de lilás

Depois de morto
não pensem que
estarei os vendo.

Ninguém será forçado
a derramar um alfinete
de lágrima ou depositar
coroa de rosas brancas.

Apenas batam na janelinha
do caixão, não quebrem
o vidro, e digam: "adiós,
poeta."

E deem logo o fora,
pois sinto cócegas
entre os dedos
das mãos.


fragrâncias

Ah, enfim, as vizinhas do andar de cima
ressurgem graciosas lançando à minha janela
esse perfume perturbador que mói minha alma.

E alma moída de poeta
é pra se beber todo o mel.

Um dia subirei a escada
até o paraíso e perguntarei
o que fazem diabinhas no céu.



o olhar do crepúsculo

Deixarei por mais tempo a cafeteira
flertar a colherinha do açucareiro
antes de fazer o café.

Esse lance amoroso
entre os objetos
da cozinha

comove-me
a alma.

E tenho visto tantas vezes o embaraço dos pratos
quando a mesa muda de vestido xadrez
para uma lingerie florida.


face da moeda encantada

A vida é arriscada -
arrisco-me todos os dias
calçando as botas e olhando estrelas.

Se a vida não fosse arriscada,
não seria eu um soldadinho de chumbo
caçador de javalis selvagens e escorpiões.

A minha alma conhece o deserto -
já dormiu sob temperaturas baixíssimas
e fez amizade com arbustos, besouros esquisitos
e outras formas humanas além da nossa tola e mortal.

O tempo de frouxidão
só me lembro do meu túmulo
largado ao vento e folhas secas.


mudanças

Eu a vi descendo a escada do prédio
olhos castanhos meio esverdeados
que tive a impressão do amor
ter nascido no meu ventre,
intestino, fígado, costelas,
pulmões e coração -
tudo na brasa.

Apenas lhe entreguei
o meu olhar de poeta
para que depois você
pense no meu silêncio.


concha das mãos em água cristalina

Antes do poema,
por meros minutos,
você conseguir observá-lo
sem uma palavra na manga do punho -

talvez o poema se faça outro,
desnude-se das vestes de viajante,
sente-se ao seu lado como um amigo,
ombro a ombro, sob um tempo sem fim.

E esse não dizer mútuo
carregado de revelações

revigore a sua alma
para outro tipo
de morte.

nas palmas das mãos há mais segredos

Não tenho medo de caminhar sozinho
até os fundos do casarão dos meus avós

tampouco de atravessar aquele corredor imenso
e escuro, mas eu tenho muito medo de morrer
nos seus braços lendo Camões.

Explique ao meu coração esse desajuste.
O que lhe bate forte, tambor africano
de pele de zebra, é motivo
para que feche os olhos.

E o meu coração sabe
mais que eu e como ninguém
fechar os olhos com exuberante melancolia.


o nada e o vago

A inocência ainda não perdi,
embora já converse com as pessoas
como uma pessoa perfeitamente normal.

No princípio eram palavras
ondas de vazio e brumas.

Agora só minto
quando sozinho
olho pros pulsos

e contemplo as marcas
meio esverdeadas do tempo
em que pensei me matar usando
uma faca de cortar pão cega e tristonha.


cotidiano de sexta

Aos meus ouvidos regressa
a serradeira de mármore
e granito -

vejo sem dificuldade
o trabalhador de macacão
serrando as peças, ajustando as texturas.

Enquanto na grade de ferro
um passarinho de papo amarelo
tenta conversar alguma coisa comigo.

Não entendo bem,
a serradeira é cruel

e o homem que serra
sente prazer na tortura.

Mata ao mesmo tempo um pássaro
de papo amarelo e um poeta gripado.


metais

Esse amor incondicional
que os objetos nutrem
minha alma

deixa-me
louco:

por onde passo
caem aos meu pés
o cinto da minha calça
e os broches da minha amada.

É uma confusão de sons agudos,
estapafúrdia, desesperos,
como se o mundo
acabar-se fosse.

Os objetos sabem
que sou um navegante
de olhos atentos ao vento.

O que me bate no coração
volta em forma de versos.

Para eles não é o suficiente,
por onde passo pulam
aos meus pés -

o cinto da minha calça,
os broches da minha amada.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

epifania nos olhos de uma lagartixa

Se me vem a treva
e calça minhas botas
no lugar dos meus pés,

sabei, inimigos, a teimosia
é meu estado de graça -
prossigo o caminho.

Aproveito-me do instante
do fogo que me parte
ao meio

o crânio,
a coluna cervical,
todos os ossos das costelas.


mais um cafezinho

A felicidade é uma morta ilusão
atrás da qual loucos correm sedentos - 

e se não pararem de brilhar os meus olhos 
nem andorinhas de entrar por minha janela?

Digo que é hora de descer a escada
e plantar no jardim do prédio
as últimas rosas
e espinhos.


perfume

Se pudesse passaria o que me sobra da vida
contigo abraçado fazendo desenhos
de redemoinhos na pelugem
da tua nuca,

mas amanhã é o segundo dia
da batalha e preciso estar em forma
para matar meus leões que vivem na rua -

e você, querida,
dá-me uma moleza
penso que o mundo
é festa e que o banquete
é infinito para mendigos feito eu.

Despeço-me, assim, indo e não indo,
abrindo e fechando a porta e voltando
da escada pra mais um abraço e outro beijinho.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

plantinhas da varanda

As plantinhas da varanda
são mais das andorinhas
e dos pombos do que
minhas.

Como pode um pai amoroso
esquecer água de beber
pras suas filhas?

As andorinhas, eu já vi,
oferecendo-lhes pelo bico
às suas folhas pingos da chuva.

E os pombos, conquistadores
sem coração, também presenciei
depositando dentro dos jarrinhos
migalhas de pão, bolachas, milho.

Eu que deveria cuidar dos seus botões,
galhos secos e terra ressequida,
mas só penso nelas quando
dói meu peito.


canteiro de rosas brancas

Evoluo tão homem quanto poeta:
já não vejo e penso uma mulher
um simples caso romântico
ou sexo febril na cozinha.

O que primeiro me inflama a alma
é abraçá-las como um amigo -
seguro, forte e ouvi-las
até que se cansem

e vejam brilhando dentro
dos meus olhos
o amor.


fixação

A minha garota é solista
de nado sincronizado

e tem por mania,
quase obsessão,

quando vamos à praia
esquecer-me na areia
e perder-se do tempo

em alto mar
na companhia
dos golfinhos.

Esses golfinhos fossem botos
teria eu sobre a cabeça
uma coroa de galhos.

Mas são meus amigos, penso.
Criados na mesma rua
e infância.

O que me deixa preocupado
ao retornar o sorriso largo
no rosto da pequena

e as manchas vermelhas,
roxas, no pescoço
e nádegas.

E ela sempre me diz,
isso me faz mais paranoico,
que os golfinhos são coisinhas incríveis.

O que ela quer dizer propriamente
com "coisinhas incríveis" ?

Bons nadadores,
bons amigos
ou ótimos
amantes?

Não quero acreditar
no que os meus inimigos
cantam aos sete ventos pela aldeia.

Porém, imagino:
"ser corno de golfinhos
teria eu alguma chance com sereias?"


rota de fuga

Não é apenas uma gripe, febre,
dor nos ossos e na cabeça,

mas também uma lúcida vontade
de amputar as mãos, empalhá-las
e deixá-las suspensas na parede
bem acima da escrivaninha.

Seriam meus dois troféus de caça.
Sempre que entrasse no quarto
lembraria que caçar versos
é um passo para tragédia.


terça-feira, 23 de julho de 2013

sentença

Sonhar com os deleites do mal
é o que dá força e gás
à ruína da alma -

como selar um cavalo selvagem,
enquanto ele dorme de olhos
abertos.

Você, atento,
pode adentrar o cérebro

e retirar aquele alfinete
de ouro que lhe causa febre.


o dúbio

Como acreditar em ti
se és uma grande atriz?

Sabes como poucas
torcer o nariz, franzir
o cenho, fazer covinha
na bochecha esquerda.

E eu a meu favor apenas
as paredes povoadas
de insetos.


nota didática da quimera

Primeira lição à musa de um poeta:
não se preocupe com os cílios.

Deixe-os bem naturais:
frágeis, fortes, pálidos,
escuros, grandes
ou pequenos.

Na ponta da flecha do cupido
só há lágrimas, nunca rímel.


a ausência da porcelana

Acreditaria se eu lhe dissesse
que depois da morte da minha antiga xícara
agora ao beber café na outra branquinha de leite
não consigo encaixar-lhe os lábios e bebo o café lambendo-a?

Se ela gosta ou não,
fica em silêncio.

E eu feito tamanduá lambendo-a
com uma das mãos no queixo
para não manchar a camisa.


a loucura de engolir moscas

Chegada a hora de ir caçar tatu,
preá, antílope, crocodilo, dragão.

O que seja, meu amor,
mas sair do quarto.

Há pouco quase me engasguei com uma mosca.
Cheguei ao êxtase de tanto abrir a boca,
a cantar poemas, engolir moscas.

Além do que
o meu rosto
está fundo
e chupado.

A poesia é carnívora, meu bem.
Pensava que só apreciasse almas.


os espectros também amam

Ciúmes tenho apenas
das minhas botas sujas
debaixo da escrivaninha.

É um entrar e sair sem respeito
de dentro delas: insetos
de todas as cores
e iguarias.

De gente [pessoa de carne e osso]
não tenho ciúmes, desde o dia

em que conheci
uma fantasminha -

e quando ela suspira
vejo refletirem no teto
os seus sonhos:

luzes de neon formando
um lindo jardim de cemitério.


o fiel biscateiro

Se dentro da sua cabeça
que você guarda seus segredos
eles nunca sairão do seu juízo, mas
se você guardá-los dentro dos seus bolsos
a cada passo deixará cair uma moeda encantada
e no fim da estrada estará leve, formoso, um passarinho.

Porque segredos bons
são para contar-se.

Os maus, faça-me o favor, esqueça-os
e aqueles outros íntimos e melosos
diga-os somente aos ouvidos
da pequena.

Depois, beije
as faces coradas
da sua matutinha.


a glória dos desvalidos

Já tive cavanhaque,
rasparam-me a cabeça,
já fui monge, lunático, trancaram-me
a sete chaves dentro do baú antigo da minha vó,
visitei deleitosos paraísos, desci ao submundo de Hades,
e não paro de escrever versos, versos, versos, versos, versos.

Sou um trouxa
que traz amarrado
à cintura um pote de ouro.

andorinhas quando fazem bico

Ofereço às andorinhas
farelos de torradas,
elas rejeitam

intrigadas comigo
pelo dia de ontem.

Será uma batalha e tanto
trazê-las de volta à janela.

Explicar-lhes que às vezes
o poeta é um cavalo mordido:
perda de tempo se elas cantam
nos galhos de árvores distantes.

Sorte minha que tenho
aquela fotografia quando era menino
e corria de peito aberto atrás das nuvens.

Elas gostam dessas imagens cândidas
em que os seus amantes, ainda crianças,
já possuíam no olhar o amor e deslumbramento.

Logo elas voltarão
quando eu acenar-lhes
a fotografia contra o vento.

papiros dentro das botas

Não corro o risco de me achar -
o deleite é permanecer perdido.

Que reino é esse do poeta
ao mundo rasteiro não vale
sandálias puídas de pescador.

E se a minha alma
acorda presunçosa,
corto-lhe uma mão
e lhe corto outro
braço.

Caso teime em não aceitar a simplicidade,
desfiguro-a membro a membro, fio a fio
de cabelo.

Veremos se a minha alma
é tão louca a fugir desse
oceano de golfinhos.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

jogo sujo

Faz um tempinho
que deixei de lado
meu ópio, o vinho,
outras alucinações.

O que me bate na espinha
e trinca os meus dentes
são papoulas da lucidez.

Não direi, em contrapartida,
que viverei até o final do mês
nessa secura de tenros neurônios.

Mas me amedronto
em promovê-los
a guardiões
do templo.

A minha mente conhece
os pontos fracos do que julgo alma.

Ela, a mente, pode seduzir
ao baralho minha doce alma.

E no baralho, ó céus, ninguém
é mais engenhosa que a mente.

A alma deveria cuidar do corpo
apenas na hora da partilha.

Mas não, a minha alma
tem uma mania frívola,
um desejo infantil,
de derrotar
a mente.

Nesses acordos secretos,
escritos com sangue
sob a penumbra
do submundo,

a minha alma
já perdeu sapatos,
meias, uma camisa de brim.

Duvido que algum dia
essas duas façam as pazes.

Tanto uma quanto a outra
são víboras cegas diante
do meu olhar.

Agora, meu bem,
resta-me saber
quem sou.

Se um facínora,
um anjo, um bêbado,
um rei de um reino perdido.

Creio em uma coisa:
há muitas doenças
que se manifestam
na minha candura.


lua explodindo de cheia

Se você viu hoje a lua subindo
entenderá a minha aflição,

de tão cheia ela explodiu
na minha cara as vísceras.

Se você já comeu vísceras
de lua cheia entenderá
minha falta de apetite.

Aguarde mais tarde
na cama um homem
louco a morder-lhe

as bochechas e enfiar-lhe
a língua entre suas axilas.

Sugarei das suas axilas as linhas
que você um dia roubou da palma
da minha mão e você nem era cigana.

Você mentiu para que eu lhe desse
de mão beijada e perfumada
a minha alma.

O que fará com elas agora?
Com a lua e a minha alma?

por onde vagam os corações?

O meu coração
dá-me um trabalho
que você não imagina.

Minha vida é viver
tirando-lhe das mãos
fósforos e querosene.

O seu sonho
é pôr fogo
na casa.

E nem adianta
eu explicar-lhe
se eu morrer,
ele morre
junto.

O meu coração não teme a morte.
Afinal, ele sabe que os poetas
são sujeitos de duas mil
aurículas e dois mil
ventrículos.

Ou basta
um gato preto.

nas mãos do vazio

Quantas mulheres passam
diante dos meus olhos
e batem na vidraça.

Dia chuvoso hoje -
não as deixarei sair do quarto
nem entrarem molhadas as andorinhas.

Serei humano
com os sonhos.


quase chuva

Ainda que você se arrastasse pelo chão
com a metade do corpo morta,
eu a seguiria
seguiria

pois por onde seu corpo se arrasta
deixa a sua alma um rastro de luz.

Um cego como eu não vê o corpo de quem guia -
o que salva é a direção da voz e o calor das mãos.


domingo, 21 de julho de 2013

o clarão da lâmpada é uma lua cheia

Eu já tive o coração no espeto,
entendo desses olhos lacrimosos
todas essas lágrimas agarradas aos cílios
com medo do inóspito terreno de um rosto sofrido.

Hoje, meu bem,
só tenho a leve impressão
de que o teto do quarto não desabará
sobre a minha cabeça - e isso é o bastante.


o princípio do fogo

A legítima insônia de um romântico
desperta afeto aos insetos noturnos.

Poucos conhecem as baratas
quando estão sozinhas
beijando as louças
largadas na pia.

Elas usam laços
e ouvem blues.


a lâmina do barbeador veste vermelho

Se alguma noite
ao fazer a barba
não cortar meu rosto
enterrem-me pois estarei morto.

Interrogo-me o que seria da lâmina do barbeador
sem o sangue dos seus filhos lunáticos que escolhem
a luz da lâmpada contra o espelho para melhor enxergar
o queixo, os lábios, o sinalzinho que sempre corto ao meio.

E cresce o sinalzinho
em três a quatro dias.
De novo passo a lâmina.

Esse nosso jogo de flerte
é uma das razões para
não desejar a morte
tão cedo.


ingenuidade

Não sei onde estão com a cabeça
os aracnídeos do meu quarto
que não veem as frestas
da porta do banheiro
dilacerada por cupins.

Seria certamente
um doce lar
lá dentro.

Mas eles, os tolos aracnídeos,
preferem o interior das minhas botas.

E fazem festa
na companhia
das minhas meias.


reis e pedintes

Ao levantar as mangas da minha camisa
as paredes tremem de pavor, sabem elas

que coisa boa não sairá da minha cabeça
sobretudo se estou com a língua de fora
e dentes trincando os lábios.

Assim batalho, meu bem,
com a língua de fora e os dentes
mordendo os lábios como se fosse
um maníaco, sou, um solitário, não.

Vivo acompanhado de fantasmas
que me usam o corpo e o meu sangue.

A solidão é apenas um pretexto
para que ninguém me veja dormindo
nem toque na minha armadura sobre a cama.


o íntimo entardecer

Os versos que somem
aqueles que chegam
à soleira e dão
meia volta

não partem
para sempre.

É como nossa infância
que cedo ou tarde
bica nossos
olhos.

Acostumei-me a beber meu cafezinho
e esperá-los, os versos e a infância,
a descer por minha lágrima.


fisioterapia de gafanhoto

Estas minhas trêmulas mãos
somente são firmes na hora
do poema.

Na vida comum
são umas bobalhonas:

caem delas pratos, xícaras,
a colherinha do açucareiro,
até o coador de papel -

sujo do eterno amor
pela sua cafeteira,
a sua cafetina.


cotidiano

Antigamente, faz muito tempo mesmo,
eu dormia e sabia definir o que era
noite e dia.

Agora mal posso vislumbrar o clarão da lua
dentro do abismo no fundo das minhas botas.

Perdi o meio da junta,
a dor que parte do delírio,
o simples interlúdio do assombro.

Só o vento frio que desperta meus ossos
me dá algum sentido de vida e de morte.


O homem que vendia caixões

Com o meu chapéu preto
entre o braço e as costelas
arrasto minha alma moribunda
exausta de tantas nuvens cinzentas.

A minha luz e sorte
e que logo mais adiante
é a casa de Laryssa Cagliato.

Aliviarei minha mente perturbada
bebendo alguns cálices do seu humor.

Na volta, que os corvos
deem-me um tempo
enquanto eu sorrio
por dois minutos.


entrançando hastes de flores

Rezo minha oração particular
para que sua alma seja sensível
entenda a minha durante a paixão
e na hora do descanso a despedida.

Muitos foram os estragos
de mulheres cruéis que após a cama
fizeram do meu coração boneco de tiro ao alvo.

Trago algumas cicatrizes
e três costelas que viraram pó.


sábado, 20 de julho de 2013

a esvaída porta do banheiro

As fissuras que os cupins
ao comerem a porta
deixaram - muito
me agradam.

Parece plástico
agora a madeira
da porta comida.

Se eu metesse a mão nesses rasgões
tiraria de dentro alguns duendes?


o gafanhoto

No princípio a felicidade
pode seduzir a alma
do poeta.

Pouco dura,
pois breve é a chama na cabeça do fósforo
que sobe com aquele fulgor alaranjado
e logo some antes de um minuto.


colina

O mais saudável da nossa loucura
depois de cada poema o vento
continua com suas rajadas

e nossos olhos
girando moinhos
com a mão pesada
de enviesar algodão.


"hoje eu canto muito mais"

Vamos apostar quem cultiva mais orquídeas no coração?
Começo com a vantagem de uma recém-plantada,
novinha, espirituosa e genial.

Ela não me disse de onde veio,
qual a sua terra, mas que importa
a sua origem se ela me fez sorrir
em noites sombrias.

E vejam só até danço no banho
e canto Belchior com a porta
do banheiro aberta.

Fato raro, meu bem,
coisa do século passado.


os primeiros passos

O meu lençol perdeu o status
de ser o primeiro a receber
a minha atenção e carinho.

Deixo-o largado na cama
com feições de dorminhoco.

O caso é pessoal, pois quero que sinta
no seu tecido o que eu sinto na pele
como é bom não ser tocado
ao acordar

sem saber ao certo se as oiticicas ainda estarão nas calçadas
e andorinhas à minha janela a assobiar cantos gregorianos.


voltando à estaca zero

Sei que é piegas mas lhe direi,
se eu tivesse dois corações
ambos seriam seus.

E viveria eu
do seu sopro.

Se essa joia não for uma declaração de amizade,
meu bem, nunca será outro sentimento -
tipo casamento ou férias.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

a lucidez de um vaga-lume

Voltar a ter sonhos
dos nítidos sonhos
que se teve um dia

é algo estranho,
lúdico e divino.

Sentimos uma voz
[por perto e dentro]
dizendo somente

"que valerá a vida
daquele que vive
por amor irrestrito."

Irrestrito, amor irrestrito,
talvez seja o que sinto agora
nesses dias de intensa poesia.

Não diria feliz -
digo, atento
somente
atento.


o filho de Krishna

Matar um porco
obeso e albino
é fácil.

Agora enfrentem
um javali selvagem,
desgraçados carniceiros!

Com essas últimas palavras
o filho pródigo bateu à porta

e bravejou ao seu pai dizendo que não mais  queria
nenhuma festa em sua homenagem. Que ele tinha voltado,
continuou o filho pródigo, para trazer a palavra dos vegetarianos.

Segurou-se ao ombro do pai, a vista lhe tinha escurecido,
quase desmaiou. O pai riu cínico e completou,
é falta de ferro e proteína cuja sustância
está presente na carne daquele
obeso e albino
porco.

Alguns viajantes riram,
eu me incluo entre eles.

A festa foi regada a muito vinho
e atravessado em uma estaca
o nosso amigo albino,
nem tão obeso,
assado.

O filho pródigo a um canto do jardim
conversava com uma linda jovem
contando sobre suas andanças
em terras exóticas.

Os seus olhares eram febris.
Decerto, logo, logo, iriam
pra cama.

O pai chegou com uma taça
e fez um brinde e disse
um discurso.

Eu já estou distante
passando pelo pátio.

Cansado, baby,
muito cansado.


tempo

Lavar meu prato
é o que devo.

Mais tarde não existe.
Nem amanhã nem depois.

A profunda oração da alma
é dita baixinho a cada passo.

As revistas ficarão pela mesinha.
E todos os insetos aos meus pés
hão de sossegar dentro das botas.

Bem-vindos ao paraíso,
seu moço e mocinhas.


bárbaros com dor de nada

Para viver o instante que eu vim à vida
nem que seja adorar com óleos
e incensos

esse vazio
glorioso.

Respiro, conto até dez, abotoo
os vinte e três botões
da minha batina.

Depois, corto os pulsos e pulo da varanda
levando comigo minha plantinha favorita.


a suspirar no banho

Passei toda a semana
preso na minha cela
vendo a rua, calçadas,
o mundo da minha janela.

Quando chega sexta
um diabinho-mor aproxima-se,
senta ao meu lado e me aconselha:

"chega de metafísica, poeta,
agora é dar o fora - mulheres,
ópio, bebida pois o poeta é mau,

mau, mau, mau, nasceu para devorar corações
como quem morde maçãs e para degustar a vida
como quem sorve morto de contente uma taça de vinho."


selva

Não gosto se as plantinhas da varanda estão quietas.
Alguma coisa errada, fora de ordem, presságios
preocupantes.

As plantinhas da varanda são minhas ciganas
que me leem as mãos e me dizem como
será o dia.

Se estão assim quietas,
imóveis, petrificadas -
não é um bom
sinal.

Devo ficar atento tal qual um antílope
bebendo água a olhar trêmulo
para os lados.

Há predadores na área,
passarinhos me avisam.

Ainda não estou preparado
para oferecer minha carne
às presas de um leão,
cruel, felino filho
da mãe.


a líquida indiferença

Não se trata de amor,
deixo-te em paz
por orgulho.

E espero sinceramente
que estejas aproveitando os dias sozinha
com a casa toda tua e de quem mais desejes.

Só de um tempo pra cá observo
meu rosto: as cicatrizes, o formato
do nariz, do queixo, a fronte, os lábios.

Sou um sertanejo forte
com resquícios de alma lírica
herdada pelo sangue português.

Aproveita a tua temporada de frivolidades.
Pois eu cá, osso a osso e carne a carne
aproveito muito minha volúpia
solitária.

Quem de nós estará vivo na velhice
para se lembrar do perfume?
Não me olhes,
querida.

A poesia é uma amante tão dúbia
quanto a ânsia do silêncio.

Velho e decrépito, deus queira
que eu tenha forças para lavar
meu prato.


cântaros

À noite os animais nunca vistos
saem da toca e passeiam -
se houver caça,
caçam.

À noite eu entro em um mundo fantástico
sem ajuda de ópio sintético ou natural.

Dentro do meu coração
escondidos entre cavidades
os animais saem da toca sanguínea
e passeiam pela casa com olhos de membrana especial.

Se houver caça,
eu também caço.

E há, sempre há:
objetos falando alto,
insetos em volta a picar-me,
a torneira pingando ainda quebrada.


quinta-feira, 18 de julho de 2013

o náufrago perfumado a jasmim

A minha mão cheira a jasmim.
Tu que vieste ao meu quarto beijá-la?
Por que não sentaste um pouco no meu colo
e te contaria a história do náufrago que acenava
ao navio distante para que mais longe fosse pois tudo
que sentia naquela ilha perdida era felicidade: amor dos golfinhos,
das sereias, dos coqueiros, dos moluscos até do frio terrível ao entardecer.

Quando vieres novamente
traz o mesmo perfume
que te contarei
outra fábula.

Talvez a do louco
que adorava
as botas.


o deslumbramento é bálsamo

Eu ainda sou tão ingênuo:
chuvas de lanças dos inimigos
sobre o meu escudo atravessam.

A sorte são as entidades
de tudo que acredito
juntarem as mãos
protegendo-me
as faces.

Ou de mais loucura necessito
ou de entendimento desses cristãos
que além do meu corpo e da minha alma
há outro universo desconhecido e mágico.

Mas se para guerra
que vós me chamais,
prefiro olhar calçadas.

Os insetos invisíveis
aos pés das oiticicas.


tudo que é viperino é patético

A primeira excomunhão
nunca esquecemos.

A minha foi, ao entender
que o amor não se vê
com os olhos
do rosto,

ser banido do rebanho
por não ter lã sobre
o corpo.


entre ciências e fábulas

Um neurocirurgião abriu meu cérebro
constatou que não faltava, de fato,
nenhum parafuso e que todos
bem conectados, apertados,
ajustados, um zelo.

Só teve o cuidado de me falar [enquanto
cuidava do estrago que fizera no meu cérebro]

que a minha cabeça estava ótima
mas que viu lá do alto uma falha
no meu coração.

"Procure uma cardiologista,
mas uma cardiologista
que use renda preta
e escreva poemas.

O seu caso
é grave."


noivo infiel

Há tempo de baratas
e de andorinhas,
embora

o tempo que for
amarei as pequenas.


banho de lua cheia

A um louco como eu que vive cuspindo
nos próprios braços de tanto falar
com moinhos

há de merecer uma recompensa
bem antes da morte -

que não sejam apenas esses passarinhos
de papo vermelho, agora, vigiando-me
da janela.


ministro da eucaristia

Eu devo ser
(não tenho certeza)
o que está mais próximo.

Hoje sou um pacato noviço
que ajeita a sala da casa
para a novena.

E olha desconfiado os anjinhos de gesso
pendurados na parede - alguns podem
não concordar da localização
das cadeiras.

Ou se irritem
da minha indolência
e fraqueza de espírito.

Nunca ocultei a minha falta de fé
a tudo que é forjado pelas mãos
dos homens e das mulheres.

Anjinhos de gesso pendurados na parede
são bonitinhos e causam às vezes
grande aflição.

E se um deles voa
e adentra minha alma?

Serei anjinho pelo resto da vida
e quando morrer no meu encalço
somente anjinhos lânguidos e tristes.

É bom eu arrumar a sala
pra novena de logo mais à noite
e cessar de tantos devaneios e versos.


relógio de bolso

Tenho uma fama terrível com as paredes
do meu quarto. Por onde durmo os insetos
fogem horrorizados da minha terna loucura.

E tu ainda nessa briguinha infantil
a silenciar o que ama e não ama
dentro do peito.

O impasse, minha doce figura,
são dos poetas nunca das deusas.


trovadores românticos

Pras andorinhas não apenas
ofereço meus braços, sou-lhes
mais que amigo e poeta: um canibal
um lírico canibal que persiste sonhando
sem saber que já não há céu nem valsa.

Os gaviões comeram todas as nuvens.
E vendo o cruel azul de tão limpo
entendo a dor de quem deseja
chuva.


Pitágoras

Chinelos e pés molhados não combinam.
Os chinelos enxugo-os com uma flanelinha azul.
Os pés deixo que o vento da manhã trabalhe um pouco.


mosteiro

Meu sonho é ter uma pança iluminada
uma barriga de  Buda para que todos os  dias
antes de ir ao trabalho você passasse a mão, alisasse,
e pusesse algumas moedas de lado e eu rezaria e meditaria
por nossas almas perdidas nesse vale de ilusão e de tolo sofrimento.


passional

O espumante que abri na sua casa
foi o meu último ato de idiota.

E ao cruzarmos os braços
levando as taças aos lábios,
meu deus, quanta palhaçada.

Alguém tem de pegar a pistola
encaixar no pente as balas,
uma a uma, sem tirar
o sorriso do rosto.

todos os silêncios

Reconheço essas madrugadas
em que os meus ouvidos
separam-se da cabeça
os dedos das mãos

e as unhas cortadas
ficam próximas
da tesourinha.

Sempre deixo pedaços das unhas
por alguns dias ao lado da tesourinha.

Ritual de agradecimento
a esse objeto tão pouco
amado

que vive alheio
e esquecido,

mas sempre presente
para cortar unhas
de rinocerontes
ou beija- flor.

bisões

Os sulcos do meu rosto
avisam-me que bebi
muito da vida.

E que também traguei
a esperança até o fim.

Como nunca findará a noite
nem o dia nem os pássaros
beberei ainda nem que seja

o orvalho das pétalas
de um bosque
florido.


além do quarto

Para dizer adeus guardei o poema que não foi escrito
dentro da gaveta.Viverá agora esse poema etéreo
entre insetos e se confundirá
com o pó e a poeira
das baratas.

Não se assuste facilmente com a madrugada
que nos tira da cama para ouvir

os gemidos desse poema
que sequer foi escrito
mas teima viver.

Viva por ele, se assim desejar.
Eu partirei e deixarei a porta aberta.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

espantalho

Um novo tubo de pasta dental sobre a escrivaninha,
soberbo, confidencia dentro da sua caixa de papel
que veio para fazer a diferença

que seduzirá a minha escova
e os meus dentes como carrasco.

Trégua apenas quando
eu estiver morto
com um lindo
sorriso

branco
e idiota.


ao que se põe o olhar há poesia

A manta que cobre o sofá
não serve apenas para esconder
o tecido puído, as manchas e os furos.

Tem serventia sobretudo
para enfeitiçar os passarinhos
que ficam na janela admirando
os desenhos abstratos e coloridos.

Além também de servir-me
as pontas finas como fio
dental.

E fico eu limpando os dentes
e ficam os passarinhos paralisados.


pistoleiro

Pezão era um matador frio.
Aos dezessete anos tinha sobre
os ombros vinte e sete mortes.

Ao completar dezoito primaveras
foi visitado em sonho pela Santa.

Acordou puro e hoje vende bolo e café
na esquina da minha rua no seu carrinho
de zinco.

Não minto, às vezes o sangue
lhe sobe à cabeça e ele sente
vontade de meter chumbo
de doze

no flanelinha, no doutor,
nas andorinhas que voam
com o meu retrato no bico.


bárbaro das cavernas

Esmurrei o computador
de modo selvagem.

A tralha não mais acende
a sua luz quando desejo.

É triste perder a compostura,
afabilidade e doçura
de monge

por irritação
com uma máquina.

Quando o senhor da reciclagem
passar debaixo da minha janela
jogarei o estorvo sem piedade
e abrirei no rosto um riso
de vingança.


choque onírico

E batem à porta
viajantes de terras exóticas
carregados de ouro e lindas mulheres
oferecendo-me luxúria, contentamento, companhia.

E eu os expulso da soleira
a gritar feito um louco -

"não! a minha morte
já traz nas faces o brilho do ouro

e nos decotes das vestes toda a volúpia
de que o poeta necessita para morrer sedento!"

Não demoram, esses mesmos viajantes
carregados de pedras preciosas
e mulheres deslumbrantes

ressurgem oferecendo
a mais doce companhia.

E eu os expulso novamente
a gritar mais colérico -

"não! a minha poesia
já reluz nos olhos rubis exuberantes

e tem os seios apetitosos e as coxas roliças de incríveis virgens
com que um homem-bomba sonha no paraíso!"

Algo só me perturba quando ouço
os passos das mulheres dos viajantes
descendo a escada - como se a qualquer
instante fosse a vizinha bater à minha porta.


o que o coração deve saber

Há tempos, meu bem,
que só bebo café,
café, café, café.

O meu coração já tem a manha
de bater firme e abusado
enquanto a cafeteira,
tímida, prepara
o cafezinho.

Sempre ao acordar, se dormi algum dia,
e ao entardecer das andorinhas
o meu café é sagrado.

Hoje, no entanto,
meu bem, uma alma caridosa
levou-me à cabeceira uma xícara
com essa incrível mistura de leite

e café - quase morri de verdade
por tanta emoção ao levar à boca
o aroma distante da minha infância.

E eu bebi café com leite
batendo os pés e erguendo
as mãos em sinal de arrebatamento.

A boa alma não me viu em profundo transe.
Fugiu  assim que me espiou na cama
fingindo dormir de leve
ereção.


terça-feira, 16 de julho de 2013

réu por amar

Estive pensando por todos esses dias
e cheguei à conclusão: sim,
sou um canalha.

Não por mentir supondo nobreza e ouro,
mas por cobiçar a mulher do próximo.

Delirante mal, este meu,
de amar todas as mulheres
em que lanço os olhos e o coração.

E amo-as tão puro
com doce volúpia.

Portanto, não há pressa
em chegar ao cadafalso.

Caminho sereno pelos grupos de amantes
oferecendo as palmas das minhas mãos
para que eles batam em cumprimento
formal de respeito.

Sei que o carrasco só estará
completamente feliz quando
a corda romper minhas
vértebras cervicais.

Até lá desfilo a minha reverência
ao poeta Vinicius e ao marquês de Sade.


língua fora da boca

Quanto mais tempo eu viver
a pele das mãos enrugar-se
e as pernas perderem
a força

alguma coisa,
alma ou estrela,
brilhará sem limites.

E dos sulcos das pegadas
e das cicatrizes dentro
do olho

alguma coisa,
alma ou estrela,
beberá com avidez.

A velhice será um bebê
com o mesmo batimento cardíaco.


Quixote é um sujeito lascivo

Por pouco não derrubei da parede
um anjinho de gesso pintado
na cor bronze.

Pendurados na parede da sala há vinte deles.
Se eu fugir de casa será quase impossível
chegar ao portão do prédio.

Sob a proteção desses anjinhos
os parentes vivem tranquilos
como se à porta houvesse
cães de beduínos.

O poeta, assim, não foge
nem pra subir ao telhado.


verminose

Eu nada juntei:
livros, discos,
fotografias,
amuletos.

Pareço não existir.

Roubaram do monge
o seu hábito laranja

e já é muito tarde
para sair da cela
seguir o rastro
dos noviços
e dos cães.


cacos de garrafas de vinho

Não sinta piedade do poeta,
ó mulher, pois mesmo estando
para morrer o coração é de búfalo
e as gramíneas que ele come são todas papoulas.

Seu charme é o delírio
à cabeceira da morte.


divã para os lânguidos

Um romântico não compreende
que o laço desfeito dos cachos
de uma garotinha

o vento não traz
novamente.

E tento eu,
um poeta romântico,
trazer aos meus sonhos
o dia da tormenta do furioso vento.

Mas a garotinha já não existe
e ri do passado dos seus cabelos.


cadafalso

Perdi a conta das espinhas
que viraram sinais nas costas
desde o dia em que você partiu.

Até ontem eram três mil trezentas e quatorze.
E eu que imaginava que morreria de saudade
do seu peixe frito.

Mas é a ausência das suas unhas
espremendo as minhas costas
o meu maior infortúnio.


segunda-feira, 15 de julho de 2013

ruína de um império ocioso

Qualquer dia sem alarde
as lentes dos óculos caem

enfraquecidas de tantas lágrimas,
gordura do tempo, poeira e sol.

Sinto as hastes bambas,
frouxas, separando-se
a cada minuto
das minhas
têmporas.

Os microparafusos
já se foram e agora conto
somente com a sorte do suor
do meu rosto para colar ao meu caráter
as preciosas lentes que me salvam do tédio.

Os óculos são os meus redentores:
unem a fraqueza do meu espírito
à solidão da criança que ama
pela primeira vez.


interlúdio de universos

Existem gestos arraigados na minha alma
que não pertencem ao corpo: levantar a camisa
mostrando a barriga para as paredes e pro vento,

por exemplo, é um truque que mantenho em segredo
a fim de conquistar os meus fantasmas imaginários.

Supõem eles que seja um ato jovial
de plena felicidade e me deixam em paz.

Tempo suficiente para eu beber um cafezinho
e escrever os últimos versos antes que
a noite caia sobre
meu colo.

Depois que ela chega,
a senhora noite, os poemas
largam-se da minha lucidez.

Sem exceção,
passam a ser escritos
pelos meus bons amigos
esses fantasmas imaginários.

E cada um tem seu olhar peculiar
da minha casa, escrivaninha,
xícara e botas.

gerações de gerânios

Sempre que abro o baú antigo
busco de olhos fechados
as suas fotografias.

Vovó era uma santa
que adorava fumar cachimbo
e mascar fumo ao entardecer.

E você deitada sobre aquele cetim persa
com a sobrancelha cravada por um alfinete
tem alguma coisa da minha querida vozinha.

O olhar distante,
lascivo, misterioso.

Ou talvez apenas
uma solidão embutida
lá no fundo do poço da doce alma.


girassóis sob lua cheia

Deus sabe o que faz:
não me deu asas
mas me deu garras
para escrever poemas.

E eu aproveito-as,
subo em árvores
até a copa

e contemplo do alto
o arrebol da loucura.

o exorcista

Falaram-me que você é um demônio:
sempre pessimista, invejosa, fútil
e insensível.

Sinceramente o que vejo é uma mulher carente.
Quem sabe eu não a faça na cama
um anjo de delicadezas?

Pois é na cama
que sou um messias.

o homem de chapéu preto

Já enterrei gente e passarinhos.
Conheço a diferença entre

caixão de madeira
e caixa de sapato.

A emoção, porém,
é a mesma - corrijo-me,
enterrar passarinhos é mais assustador.

A qualquer instante o passarinho
abrirá os olhos e baterá asas.

Enquanto o morto de verdade
sabe que é o fim.


visões

Uma casca de laranja verdinha
estirada no piso da área de serviço
enganou-me: pensei uma lagartinha.

Quanto tempo faz
que não toco no abdome
frio e pastoso de uma lagartinha.

A última vez eu era uma criança.
E me lembro da vontade
que tive de comê-la.


domingo, 14 de julho de 2013

prole etérea

E  a cada verso
ficamos mais pobres
do ouro ridículo deles.

Entendimento?
Só de quem me causa assombro.


faces de um apaixonado

As gotas do meu sangue
pingadas na lâmina
do barbeador
são tuas,

bebe-as
e sente o gosto
da minha saudade.


velas acesas

Só creio na minha mente
quando ela é subjugada
pela poesia.

E corre seiva
da minha boca.

O coração,
deixo-o à parte:
é muito sagrado
para que eu o toque.



aromas

Se há um hospedeiro de almas
mais gentil que o poeta
ainda não conheço.

Todos os dias novos vírus,
bactérias, fungos, parasitas
espremendo-se entre as costelas.

E não há tempo de fingimento
enquanto versos são escritos.

Creio também não haver
outra forma tão sincera
de iludir a morte.


descompasso

A parada cardíaca de um poeta
é estranha, diferente
das comuns:

não são os braços
que formigam nem
o peito que se comprime.

O primeiro sinal é uma lágrima
apenas uma lágrima que desce
pelo rosto

tranquila, tranquila, tranquila
até pular do queixo mirando o abismo.

ato natural de um insone

Uma singela fenda
nos ladrilhos da pia
não é o bastante para
peripécias de baratas?

Ou sou eu o louco
que não descansa
e cria expectativas
da meiga solidão?

Por acaso não são as baratas
as mais antigas cúmplices
dos poetas?

Imagino-as felizes
esperando apenas
que eu apague a luz.


sábado, 13 de julho de 2013

a célula-mãe das acnes

As espinhas não nascem em mortos.
Se tens no rosto uma triste figura
rejubila-te: pois tu fazes parte
do mundo dos vivos,
feiosos, mas vivos.

Agora se nas costas
já virou sinal,
então canta -

um dia alguém
há de espremê-la.


o que cabe e não cabe no vazio

Duas mãos entrelaçadas
levando uma só alma
por calçadas
frias:

é demais para mim
assistir a tamanho
desespero.

O amor não nasceu para todos.
E mesmo aos escolhidos
poucos suportam
tal loucura.

Saio da janela
e deixo os dois apaixonados
seguirem a estrada da minha fuga.


antes que o suspiro fuja

O que faz o poeta
com suas coisas
senão dialogar?

O cheiro de tinta
à beira do cavalete
muitas vezes é mais forte
que a própria pintura no quadro.

O que tenho feito
nessa minha vida
senão dialogar
com minhas
coisas?

Com a maturidade hei de poupar
poemas de afetos.


frêmitos entre os dedos dos pés

A solidão é a minha musa
platônica carnal que marca
com as suas linhas a palma
da minha mão: navio de pirata,
peixes, nuvens, pipas ao vento.

Sem o seu hálito
não viveria em paz
dois segundos após o poema.


loja de facas

A lâmina precisa de trégua
em vez de fatiar carne
quem sabe nuvens
e pétalas.

Jogada indiferente
dentro de um armário
a lâmina brilha mais -
descansa.

Outro dia cortamos os pulsos.
Ou fazemos gracejos
com a ponta afiada
passando no rosto
do inimigo.


manhã de sábado

Antes de comer a goiaba
combino com ela
que não lavo
com vinagre -

em troca,
poupará meus dentes
das suas sementinhas.

Assim, feito criança,
converso com as frutas.

Espero que a goiaba cumpra
com a sua palavra de goiaba.


a ponte é um abismo

A marca de vacina no meu braço
o sinal na artéria do meu membro
tu bem conheces.

Não posso, portanto,
chamar-te de fantasma.

Sei que é imperdoável
essa minha mania de olhar
para a alma de uma mulher
ao mesmo tempo em que olho

desavergonhado para os seios - e se ela se vira
meus olhos descem pelos cabelos até o quadril.

Fantasma não belisca
nem nos fuzila em silêncio.


inquietude siamesa

Saber que não existe fim
me dá vontade de sonhar.

Que são os sonhos
senão cílios, ciranda,
cibele, cicuta, cicatriz.

Não me juntam os ossos das costelas
dentro do meu coração sou outra coisa.

Não respondo por mim,
contudo converso
comigo.

Sem peleja
e braços febris.

Ofereça à sua mulher
um ramalhete de azaleias.

Ela vai estranhar,
"não havia rosas vermelhas?"

Sorria e compactue-se
da solidão do poeta.

Azaleia é um lindo nome,
de fato, mas para mulheres
como as nossas boas de cama
deveríamos ter comprado rosas vermelhas.

Detalhe,
vê se não erras
na garrafa de vinho.

Depois de esvaziada
ela deve refletir
o teu olhar
perdido.


suavidade

Mil cores tem o telhado
visto deitado e as paredes
mil pernas quando correm
pro saudoso abraço do filho.

A morte é minha melhor amiga
e vive ao meu lado me pedindo
para que eu olhe o teto deitado
e veja como correm as paredes.

Essa confusão mental
é a alegria dos botões
de rosas despetaladas.

Água de chuva
ou água de regador
trazem o mesmo deleite
para quem se cansa de ser só.

E tudo que sou é chama
a queimar meus pés
e mãos.

A morte é minha parceira
dia a dia quando os botões
das rosas o vento os leva.

Desce logo do teto
senhora aranha de mil pernas
abraça-me depressa senhora sombra
de mil cores e mil olhos assustadores.

As rosas sozinhas depois do parto
precisam de ti, ó jardineiro,
esquece a maldade
das abelhas.

As tolices de assustar
não significam tanto
quanto aquelas
que salvam.

Salva-te primeiro
e depois leva as nuvens
dentro do bolso do teu bermudão
para encher de delícias as plantinhas da varanda.

O regador de plástico
está de castigo, não o toques.

Será lindo o dia amanhã,
pois sinto minha língua
fora da boca

e os dentes
trincando
lábios.

Essa confusão mental
é presságio que sou
triste mas não morto.

Porque tristeza
não combina
com morte.

Nem esta
com alegria.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

pátio de freiras

O poema que não bate à porta
de tão bárbaro e sensível

não que seja meu predileto
mas tenho por esse tipo
um segredo inviolável.

São esses poemas bruscos
cheirando a perfume
de festa

que me queimam o ventre
e plantam uma orquídea.


sob a sombra de um besourinho

Qual o seu dom?
Todos têm um dom.

Alguns de enrolar brigadeiro
sem pregar e sujar os dedos.

Outros de ficar zarolho
por cinco minutos.

Eu tenho o dom
de ouvir e entender
os objetos: a cafeteira
ao sussurrar durante o cafezinho
é puro idílio à colherinha do açucareiro.

baluarte dos ociosos

Por viajar na contramão dos sérios
digo que existe apenas milagre
e sorte - trabalho e fúria
é pra quem não olha
a vida com olhos
de passarinho.

Por viajar na mão das águas
que descem e sobem
montanhas

digo que os salmões adoram
ser trinchados pelas presas
de ursos famintos.

Pergunta então a algum pássaro
após a construção do seu ninho

se foi dolorido pras suas asinhas
entrelaçar hastes, gravetos,
espinhos.


preces

Antes de dormir apenas acenei pro teto -
"Que amanhã me venham uma chuvinha
 fina e algumas andorinhas à janela..."

Deus sabe quando falo sério.
E hoje penso como cuidar
deste meu coração louco
e apaixonado.


banho gelado

Escrever cartas é minha paixão
amassá-las, fazer bolinhas de papel
e jogar da janela o mundo que escrevi
é outra paixão bem mais antiga, meu amor.

botas largadas debaixo da escrivaninha

A sua vida é sua
eu não quero um milímetro
dela para mim - bastam-me
os meus sonhos e as minhas quedas
que no fim é só um imenso desânimo.

Porém tenho por íntimo amor
a obrigação de arrumar
a cama e deixá-la
impecável

para a próxima
carnificina.

As flores nunca amarão o jardineiro.
O negócio das pétalas é com abelhas.

Esse lance de seiva
e pólen.


gnomo de saco cheio

Pouco a pouco
por conta própria
cria-se uma nova barriga
encaixada entre minhas costelas -

uma gravidez de vento,
ócio, versos.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

pergaminho

Contemplo meu rosto
amarelo e magro
de tantos versos.

Em plena puberdade poética
minhas mãos não se cansam
de fazer o trabalho
solitário.

Quando chegar a velhice
estarei só o plasma
e osso

de fonemas,
sustos.


matriarca de abstrações

Poesia é uma mãezona
que não deixa de amamentar
seus filhos nem depois dos quarenta.

Ainda velhinho estarei
com a boca murcha
grudada aos seios.

O prazer é recíproco
pois ouço bem os seus suspiros
quando mordisco seus bicos a cavar palavras.

E ela canta à minha alma - "mama,
mama nas tetas da tua mãezona
que esse leite é sagrado
se finda um dia
estás morto..."


sinal de crepúsculo

é bom que eu seja rápido
coma logo a macaxeira
pois tudo que se põe
sobre a mesa
elas vêm

e nhac, nhac,
nhac, nhac, nhac...

as minhas formiguinhas
são obesas e já não lhes cabe
aquele macacão jeans da adolescência.



pulsos em que brilham artérias

Os cupidos não têm mais flechas.
Os seus alforjes estão vazios.
Gastaram todas as pontas
furando meu corpo.

Agora sou São Sebastião
atravessado de amor.


imensa alma

Ao lavar seus pés faça-o com atenção
e você verá as cicatrizes da sua infância.

E você me pergunta
qual a importância
de tal delírio.

Eu lhe digo
que é apenas

pra que você se assegure
de que não é um zumbi.


desamparo

Prudência, meu amor,
é dar adeus ao prato trincado
antes que se despedace em minhas mãos.

Apesar do seu olhar tristonho
por ser agora um objeto largado.

No íntimo sabemos, eu e o meu prato,
que a memória viverá no paladar da minha solidão
quando sentado à mesa erguerem-se apetite e garfadas

e chegue até meus olhos a saudade
do seu fundo florido de cerâmica.


resquícios da madrugada de ontem

cupim que não gosta de madeira
a passear solitário sobre
a escrivaninha...

é mesmo o fim
do mundo.


a título de eternidade

Se os amantes se esquecerem
de brincar na cama, jogar contra
o outro travesseiros, correr pela casa,
gargalhar debaixo do chuveiro, queimar os dedos
em frigideira quente, se os amantes se esquecerem
facilmente das preliminares do amor então é chegada
a hora de se afastarem silenciosos, enfadados, tolos e tristes.

A paixão só é completa
com ternura e alegria

e dessa febre
o sonho profundo.


quarta-feira, 10 de julho de 2013

olhares subliminares

O tubo da pasta dental
a manchar minha camisa azul
deixou-me uma mensagem clara:

"Quando eu chegar ao fim
não me esprema tanto
que dói pra caceta."



lirismo

Você já viu um cílio
preso à lente dos óculos?

Igual a uma criança
agarrada ao seio
da mãe,

mamando.

o sensível lunático

Eu me tornei poeta
de tanto pedir a Deus
e aos seus filhos do submundo
que me dessem uma colher de chá
de zabumba e logo vieram os anjos
e tocaram as trombetas: "ide, poeta,
que a dor mais louvável é a de escrever versos."

a vizinha do andar de cima

O que a vizinha do andar de cima
prepara em seu liquidificador?

"Acerola."

Até parece que ela me ouviu.
Ela me ouviu e não sabe.
Pensa que foi a mente.

Será muito difícil
explicar pra vizinha
esse lance de vozes.

Melhor sussurrar:
"Desça a escada vizinha
que um dia você escorrega
e eu a pego nos meus braços."

Esclareço: as vizinhas
nunca estarão salvas
dos meus ouvidos
de hiena.

Portanto, vizinha do andar de cima,
acostume-se com a sua mente
tagarela.

A minha é déspota.
Sabe roubar vozes alheias.

se a saudade cantasse

De tão contente com minha solidão e loucura
passo horas no banho dizendo versos
pro chuveiro, lixeira, vaso
e ladrilhos.

Depois visto minha cueca de lorde,
preta, malha justa que vai até o joelho.

Mas qual morto
não gostaria
de viver
feliz?

E a tua lembrança
é apenas um soar
distante de sino.


sétimo mês

Como te explicar esses dias
em que acordo ligadão
como se tivesse
tomado dois
litros

de ácido
lisérgico?

Os pombos esquecem nossa guerra particular
e me acompanham jogando sobre minha cabeça
sementes de mostarda e pétalas de rosas brancas.

Ando a mil,
meu bem

e as senhoras e as senhoritas
que me olham devem pensar
o que de fato é real: eis
um faquir recém-saído
dos seus sonhos.

Tão leve e tão justo
com seus passos

a cada toque
do coração.


terça-feira, 9 de julho de 2013

penas de ganso

Embora os meus travesseiros
necessitem subir ao céu

e servir aos anjos
durante noites
de pesadelos

ainda teimo
em ficar com eles
aliviando minha cabeça.

Sinto um medo terrível
de sem os meus travesseiros
eu perca de vista os fantasmas.

E sem os meus fantasmas
o que seria da minha alma?


além-poética

Tu tens noção das espadas
que tu forjas sobre
tua bigorna?

Haverá o dia
em que a bigorna
tua lápide e as espadas
as tuas mais lindas flores.

A lápide não será fria.
E as flores lançarão ao vento
os tantos golpes da tua lâmina.


vertigem em alma lúcida

Para falar de amor
estou convicto
que havemos
de tombar.

Não morrer
porque a morte
é outro tipo de amor.

Havemos apenas de tombar
e criar raízes e virar árvore:

acolher todas as espécies
de passarinhos, cigarras
e gafanhotos

em nossos braços
que são galhos

ou em nosso peito
que são nuvens.


ilustríssimo bem-te-vi

Às 16:00 regularmente
vem à minha janela
um bem-te-vi.

Se estou ocupado
construindo origamis
ele entende e logo voa.

Mas se demonstro paciência
ele não cala o bico e me diz
toda a sua vida recente
de um entardecer.

Há pouco ele foi embora
contar suas fábulas
noutra janela.

Não eram origamis
o meu engenho
dessa tarde.

Eram castelos de açúcar
a erguer do fundo da xícara.



taça quebrada

A lucidez do bêbado
naquele instante
em que arde
o intestino

é o duro ofício
de ser trôpego
nessa vida

de passarinhos
dentro do peito.

Cada poema que escrevo
guardo uma história
pra te contar
um dia.


ermitão bipolar

Se você acredita
na claridade do poema
erra o caminho - o oculto,
entrelinhas e desconhecido
é lá que se encontra a verdade.

Se lhe disse que ando sereno
foram apenas dois minutos
de sossego.

O que me sobra da vida
é o escuro, a botija,
o ouro

junto
a ossos.


nirvana de um cego

Os meus desejos são manhas.
A minha vida corre perfeita:

a xícara branca de leite
e a colherinha dentro
dela.


órfão

Nunca tive um cãozinho,
um gatinho, um hamster
bobalhão.

No meu quarto
só há aracnídeos,
baratas e formigas.

São meus bichinhos de estimação.
E todos têm o olhar tão meigo,
meu deus, que a cada dia
acordo mais apaixonado.


graveto

Um graveto que entra
pela porta dos fundos
trazido pela ventania
ainda é um graveto
cheio de mistérios.

Não o jogue fora.

O vento não é o único responsável
por trazê-lo à sua porta nessa noite.

Veja que o graveto
tem o rosto da floresta.

Guarde dentro da sua gaveta
a árvore mãe desse graveto.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

o lunático que palitava os dentes com perninha de formiga

Não desanime,
linda formiga
insone.

A sua salvação
é a sua perninha
comprida e esbelta.

Eu a quero
muito, acredite.

Mesmo que não pareça
entre os meus dentes
sua perninha
é um ótimo
palito.


fulgores

Poeta, a ti desde o início dos tempos
no escuro da caverna e ao redor
da fogueira assando javali

foi te dada uma missão:
ser louco ao ponto
de tu não saberes
o que é mente -

o que é frio,
o que é quente.

Se tu, poeta, és dócil
que seja doce apenas
o teu simples coração.

Pois tua mente é a caverna
e escreve nas paredes
teus delírios

com os dedos sujos
da gordura
de javali.

Ao dia seguinte
reserva-te somente
à tristeza de lavar os teus óculos.

Mas isso, poeta,
já é outro papo
de solidão.

Não precisas ir ainda
ao céu nem ao inferno.

Lava teus óculos
e chora em paz.


noite fria

O frio dos meus pés
não é o mesmo frio
das minhas mãos.

O frio dos pés
traz-me saudade
dos teus chinelos.

O frio das mãos
é uma espécie de agonia
daquele tempo em que tinha
na ponta de cada dedo a tua alma.


domingo, 7 de julho de 2013

pena de corvo

Será tarde um dia,
mas em mim não é novidade
a ausência: essa pele
dentro do meu olho
que me ajuda
a enxergar
a morte.

Beba o seu café,
o seu espumante,
o seu chá, querida.

O peso de uma pena de corvo
curva meus ombros e nunca
chegarei na hora anunciada.


o tolo moço

Tu não estás cansado de ser muitos
a levar contigo entre as costelas
uma só alma?

E se tua alma
se bifurca e levita
qual língua de serpente
após o veneno onde a verdade?

Perguntas e mais perguntas
nosso destino desde
o tempo em que

ressuscitávamos de dentro
de caixas de sapato
passarinhos.


quinta-feira, 4 de julho de 2013

querubins

Amor, você não existe.
Por isso é tão difícil,
muito complicado,
esquecer-lhe
o corpo.

Pra onde olho
fantasmas
com seu
vestido.

Fantasmas com seu batom.
Fantasmas com seu sorriso.

Amor, você não existe.
Daí o meu sofrimento
eterno e pungente.

Pra onde olho fantasmas
com seus braços abertos
me chamando pra dormir

aquele sono sereno
em que não se sabe

se ruína ou felicidade
se morte ou alegria.


ladainhas

Quem me salva dessa ridícula caminhada
os pássaros esses sujeitos bacanas
de tão puros o vento os leva
na primeira rajada?

Ou os elefantes esses caras gorduchos
tão sensíveis que morrem solitários
abraçados aos ossos
dos ancestrais?

Não me há outra saída
senão pegar na mão
das formigas

e subir paredes
e descer escadas.


quarta-feira, 3 de julho de 2013

fim de festa

Imagino, de quem será
a última pá de terra?

Certeza tenho
de que as minhocas
farão a festa quando
descer pelas cordas
o meu suntuoso caixão.


terça-feira, 2 de julho de 2013

quando narciso era um pescador

Tão fácil e simples
pescar sereias:

basta eu encostar
minha piroquinha
na água cristalina.

E voam elas
ensandecidas
aos meus braços.


madrugada fina

Veja, cheguei a um ponto
em que me encanto
com os rostos
e imagens

que o meu mijo cria
dentro do vaso sanitário
igual às nuvens no alto do céu.

Se o meu corpo
e a minha alma

andam assim
tão íntimos

creio que é bom dividir
com quem me ouve

todo o deleite
e terror.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

cova iluminada

Não desperdice essa luz, meu chapa.
Esses cheiros de pasta dental e estrume.

Não precisa alimentar baratas,
mas também é ingênuo e cruel
esmagá-las com as botas.

Que o céu se curve
e toque seus pés.

Esqueça o teto
desabar sobre
sua cabeça.

Os inimigos vigiam-no,
sabem que agora ou nunca
você dará o grande salto de tartaruga-
marinha em direção à praia a pôr os ovos.

Será enlouquecedor retornar ao mar
com a genética de quem lhe deu vida.

As suas asas
são as nadadeiras

e você conhecerá
as delícias de voar
no fundo do poço.

Esqueça o teto
desabar sobre
sua cabeça.

O céu já se ergue
para o louco
mergulho.

mural

Relacionamento sério não deve ser um bom relacionamento.
Imagino que seja aquele tipo de relacionamento em que
a mulher bebe chá e o homem lê jornal distantes
e sisudos.

E se algum beija-flor entra na sala
para experimentar o açúcar
do açucareiro

o homem olha pra mulher
com ciúmes e esta pega
o tamanco e lança
contra o pequeno.

O beija-flor não entende
esse relacionamento sério
entre casais. Eu, por exemplo,
nunca tive um relacionamento sério.

Os meus relacionamentos
são todos de andorinhas
e bem-te-vis.

Agora, concordo,
que em certas ocasiões
não se deve dar atenção
a alguns beija-flores metidos
a conquistadores e falastrões
que só desejam roubar nossas
mulheres dos nossos braços e fugir.

A esses beija-flores é bom estar atento.
Eles também são humanos e escrevem,
e pintam, e compõem belíssimas canções.


entremear-se

Há poemas que escrevo
e ao ler dá vontade
de vomitar.

Mas que sabonete é esse
entrando por minhas narinas?

A vizinha do andar de cima
talvez tenha comprado
um novo creme.

Bom, mas falava dos poemas insípidos
que me causam náuseas depois
que leio.

Meu deus, o que a vizinha
planeja para essa noite?

Não posso me concentrar
com esse perfume devassando
a minha frágil alma de trovador.

visagens

Sou tratado como rei
pelas entidades que me cercam
enquanto sou visto como mendigo
pelos homens e mulheres desse templo.

Você não viu,
mas fiz uma pequena pausa
para pegar no outro quarto meus óculos.

Esses lances de pernas
a que você não assiste -

elas, as entidades,
andando por mim.

Como ser um trapo
que outrora era?

Se sou rei aos olhos
dos meus bons fantasmas,
ancestrais, anjos e santos:

devo-lhes então respeito
e não me embriagarei
com o álcool e ópio

dos homens e mulheres
desse templo de areia.

Fiz outra pausa
para segurar a minha nuca
com as duas mãos e estas mãos
poderiam ser suas se você quisesse.

Se você
me amasse.


mês dos ventos

O vento me irrita
quando no banheiro
ouço-o forçando a porta
com seus ombros de patife.

Se tivesse agora
uma espada de samurai
fatiaria seu corpo em tiras de papel.

E ele logo daria o fora
amarrado ao rabo
de uma pipa.


invenções

Muitos gênios gostam
de criar e montar miniaturas
de aviões da segunda grande guerra
utilizando somente pinças, palitos e lupa.

Outros de introduzir
navios piratas
dentro de garrafas
de vinho.

Eu, meu bem,
no momento
estou bolando
novas posições
do teu corpo
na biblioteca:

a perna levantada um joelho na escrivaninha,
sentada no cofre, debruçada sobre
a pequena cômoda.


baralho e mulheres

Lembro claramente
o que mais me encantava
na minha infância: o chapéu
do meu avô dentro do guarda-roupa.

Acreditava se um dia enfiasse
aquele chapéu na minha cabeça
me tornaria um senhor de engenho
com seu relógio de ouro à cintura
e níqueis tinindo no bolso.

Nunca o fiz.
Sabia que a mão do meu avô era pesada.
Tantas vezes havia visto aquelas mãos na hora da sopa.

Mãos gordas
e peludas.