domingo, 24 de fevereiro de 2013

desaparecimento

Aquele poema que nos soa tão verdadeiro
é dito e assoprado aos nossos ouvidos
por nossa alma mais quieta.

Mesmo que falemos de trovões
destroçando nossas costelas

ou de lágrimas ácidas
a queimar nossos
lábios.

Aquele poema que nos vem tão límpido
sem manchas do dia louco que tivemos
e da noite anterior tão pesada

é forjado em nossos pulsos
por nossa alma mais quieta.

Essa alma que não se queixa da chuva
nem da nostálgica lembrança do orvalho.

Aquele poema que nos parece o único
aquele poema que nos acalenta
com suas mãos de fogo
e o seu olhar doce
de menino

é levado à nossa cabeceira
pelas mãos da nossa mãe -

um copo d'água e um comprimido
naquele tempo em que ter febre

era apenas um presságio
da ausência da morte.

Aquele poema que nos salva
é um grito sereno de alguém

que dentro de nossa alma
é a nossa alma
mais quieta.


sábado, 23 de fevereiro de 2013

brandura

Delicado assim hoje como estou
não haverá andorinha que resista.

Já preparo a mesa com migalhas de bolo
e um restinho de café na minha xícara
que há pouco
bebi.

As andorinhas adoram
beber a sobra do meu cafezinho

no mesmo canto da xícara
em que colei meus lábios trêmulos.

Dizem elas que é pra começar bem o dia.
Atravessarem nuvens cinzentas
e se molharem da chuva
cantando.

pescador

Os meus óculos estão velhinhos,
velhinhos, bem velhinhos
mas com eles

que pesco versos
dentro de mim

usando cílios
como anzol
e na ponta
lágrimas
como
isca.

Às vezes eu pesco um par de botas.
Outras vezes um guarda-chuva.
Mas tudo é peixe, meu amor.


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

limpo

Lânguido e sorridente
desvendei sua alma

e agora não há mais tristeza
quando planto uma flor
no jarro da varanda.

O sol lá fora frita ovos na calçada
e o céu de tão azul lembra-me
meu primeiro bermudão.

São só coisas boas, querida
que ultimamente me espantam.

Bob Dylan com sua gaita
e uma banda de nova orleans.


míope

É muita sorte agarrar um cílio em plena queda.
Quando ocorre colo o cílio nas pontas dos dedos

e como dizia a minha vó,
faço um pedido.

Às vezes a gente se engana,
não é um cílio -

é uma formiguinha
de asas.


palavras

São as histórias das palavras
que me fazem curvar a coluna

à procura dos
meus óculos.

Não sou eu quem carrega os sonhos.
São as palavras com as suas mil histórias.

E elas sabem como me deixar maluco
com o seu olhar de perda
e entrelaçamento.

Se eu te contasse os segredos
de cada poema que escrevo,

tu me deixarias sozinho
e correrias atrás
das palavras.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

nirvana

Fiz amor com a plantinha da varanda.
Nascerá um filho com meus olhos
e os cabelos da mãe -

meio amarelos
esverdeados.

As andorinhas ao entardecer que chegarem à janela
terão muito cuidado com suas algazarras
para não perturbar minha plantinha
durante a gravidez.


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

perfume

Os passos de uma mulher
de sapato alto subindo
a escada

fazem-me tremer a medula
de um frio gelado.

Tenho plena consciência
do que ela esconde
dentro da bolsa.

Um cigarro e um batom
depois de largar-me morto.

Morto sobre a cama
vejo-a sorrir e levar minha alma.

Os passos são os mesmos
descendo a escada.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

o bichinho esperança

Dentro do bolso da farda
cabe uma esperançazinha.

E ela veio-me inesperada
apropriando-se dos versos
que guardo no final da tarde.

Meteu-se entre os rabiscos.
Fez das palavras acolchoados.

Tive, entretanto, de retirá-la
do seu deleite entre poemas.

Pois o bolso da minha farda não é confiável.
Tanto pode haver versos quanto veneno.

E eu morreria se aquela esperançazinha
que caiu sobre meu ombro experimentasse
em vez da seiva das árvores o ópio do poeta.


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

éter

Pergunto-me o que farei com as minhas vértebras
quando eu aprender de vez a levitar

sobre o telhado antigo
da capela do cemitério.

Lá pelo musgo do telhado antigo da capela do cemitério
existem segredos que somente pássaros e gatos conhecem.

Os coveiros sabem da terra.

Sobre os segredos do telhado antigo da capela do cemitério
somente pássaros e gatos são mestres e misteriosos.

Quando eu aprender a levitar definitivamente
sobre o telhado antigo da capela do cemitério

lançarei fora as minhas vértebras ao vento
e convidarei os coveiros a se juntarem
aos gatos e pássaros

sobre o telhado antigo
da capela do cemitério.

Não estou pedindo para que eles se esqueçam das suas covas.
Só quero que os coveiros sorriam um pouco
sem ter que beber pinga
para olhar as unhas.





luxo

Há dias em que não gosto de ver cadáveres.

Como há dias em que sinto uma saudade
do meu guarda-chuva preto
com o qual eu furava os
olhos dos pombos.

Há dias em que meu coração bate solto entre as costelas
feito um rei preso à sua rainha passeando em um jardim
de uma pequena cidade holandesa.

Em dias assim em que estou cansado
de pintar os cílios dos mortos
e de ouvir meu coração
maluco por uma flor

faço então algo comum aos poetas -
escrevo versos com os olhos
pequeninos de vovó.

E vovó sabia ler em silêncio
como os mortos sabem
ficar quietos

tanto quanto os reis sabem subjugar-se às suas rainhas
e também sabem subjugar-se às tulipas roxas
de uma cidadezinha holandesa.




domingo, 17 de fevereiro de 2013

calçada molhada da chuva

Se você acredita ou não em outra vida
é uma questão insignificante
quando chove

e uma lagartinha
passa por cima
do seu chinelo.

almas trôpegas

As minhas lágrimas
são de farinha
de trigo -

beba-as comigo
e deixe-as cair
sobre nossos
corações.

Lágrimas  que se compartilham
viram flores dentro do peito
e um dia crescem
até os céus.


as cinzas de outrora

Então felicidade é esse céu cinzento que não chove.
Essa fresta de luz suspensa pela parede.

Esse quase trovão.
Esse quase raio.

Esse riso cínico no canto da boca
e esse olhar sério, atento, lúcido
a atravessar os livros
da estante.

Então felicidade é esse estado neutro
entre a euforia do mundo
e toda a morbidez
das minhocas.

Então felicidade é esse suspiro,
essa lágrima, essa mordedura
nos lábios.

Esse ar dentro dos pulmões.
Esse vácuo. Esse sangue.

Então felicidade é esse bermudão surrado.
Os bolsos cheios de papel higiênico
de tanto limpar as lentes
dos óculos.

Então felicidade é essa visão estonteante
da minha xícara de café equilibrando-se
sobre outra xícara branca de leite.

Meus chinelos quentes.
Meus dedos frios.

Os pingos da torneira quebrada.
Os vasos vazios na janela.

O barulho das louças
de quem come
na cozinha.

Então felicidade é esse aspecto de morte.
Um adeus embriagado após um passo
depois da porta.

Um passo firme
apesar dos pés
trêmulos.

Um passo firme,
querida, um passo firme.


rito

Antes de dormir um copo de leite.
Não por medo da insônia, mas
para me lembrar das tetas
de uma vaca.

Uma vez que é impossível
seduzir aquela barata
atrás da porta.


botas

Um pequeno tapete vermelho é todo o meu reino.
Deixo que lá descansem as minhas botas.

O trabalho delas
é bem mais difícil.

Levam dentro pedras
de caminhos humanos.

Durmam, minhas santas botas.
Sonhem com o novo dia
de calçadas
e asfalto:

sujeira de cães, folhas secas,
tampinhas de cerveja
e refrigerante.

Fechem os olhos
e ouçam cada estalo
cada som de despedida.

Logo mais não haverá outra vida
senão a música do graveto esmagado.

Da terra úmida.
Do chiclete preso.



sábado, 16 de fevereiro de 2013

amor andante

Nunca se preocupe comigo.
Sou dado a devaneios.

Desde cedo soube:
homem sonhador
é um bom menino.

A noite é longa
se a floresta é escura.

Mas eu não tenho medo:
o que seria do pântano
sem os seus sapos?

Guardo minha escova no bolso
e parto pra mais uma aventura.


tempo

A morte cansada de me ver tão perto
e de não poder me tocar sabe
que o melhor é deixar-me
sozinho.

Sozinho, pensa ela,
eu teria mais tempo

para abrir a porta
do quarto e entrar
o tocador de banjo.

Olhe para as paredes
e veja quantos insetos
felizes com as migalhas.

A morte é uma doce confeiteira
que nunca conhecerá a delícia
de andar com pernas
de insetos.

Há uma parte debaixo dos pés
em que não se sente o frio
nem é sentido o calor.

Sequer existem paredes:
é tudo nuvens, tudo
nuvens.

E em vez de pés
crescem asas.



segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

dócil

As minhas coisas são simples.
Quase monótonas: livros
que não leio mais,
óculos embaçados
de suor e não
de lágrimas.

Sapatos velhos,
cuecas velhas.

Uma fotografia antiga de chapéu.
Outra entre as plantas da varanda.

Todas elas patéticas
esperando a fome
das traças.

As traças que comerem
as minhas fotografias
hão de gerar outras
traças tristes
e inválidas.

As minhas coisas são sem graça
beirando o infortúnio dos tolos:
papéis com números
de telefones sobre
a escrivaninha.

Mulheres esquecidas da noite.
Que me deram vinho e fugiram ao amanhecer.

Se ligar para elas o que direi?
Que morrerei vil apesar da solidão?

A solidão é para sermos santos.
Lustrarmos os sapatos e lavarmos as cuecas.


fuga

Dou-lhe uma,
dou-lhe duas:

Quem recompensará o poeta
por sua alma fujona?

Ontem era um louco, uma víbora,
hoje é um anjo ouvindo blues.

Tão delicado o moço
que sua xícara treme
a tocar-lhe os lábios.

E amanhã, meninos,
o que será da sua vida
o corpo sem presságios
os passos lúcidos e firmes?

Dou-lhe uma,
dou-lhe duas:

a sua cova está linda
bem arrumadinha
lá no fundo

alguns livros
e uma orquídea.

Vejo coveiros sorridentes
e virgens de preto
bebendo vinho.

Dou-lhe uma,
dou-lhe duas:

juro que esse poeta
conhecerá noutra vida
o pai que não tem seu sangue.

Mas terá o seu rosto.
O seu rosto invisível.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

tácito

Com o tempo eu aprendo
a beijar bem demorado
as paredes da casa
sem causar inveja
à porta da rua.

Beijo-as tanto
que ando pálido.

E as cartas que vêm de fora
não entram por baixo da fresta.

A minha solidão tem nome e corpo:
chama-se paredes e são quentes
as da cozinha e são frias
as do banheiro.



velho quarto

Aquele senhor que caminha distraído
não se iluda ele tem asas dentro
das botas e os gravetos
que ele traz da floresta
são pincéis mágicos.

Aquele senhor de olhar triste
não é triste o seu olhar
é apenas o silêncio
da certeza de que
ninguém sabe 

dos seus sonhos de beija-flor
bebendo água doce em uma florzinha de plástico.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

irmã de alma

Não acredito que você não saiba
que sou o seu melhor amigo
mais amigo seu eu sou
do que sou dos
golfinhos

e olha que hoje estive sentado
na beira do mar olhando
como eles se divertem

fazem de tudo
brincam e assobiam
para me chamar atenção -

ainda trago no rosto
o beijo de um deles

com o sal
de Iracema.

Mas é você que tenho de salvar nesses dias quentes
em que a vida lhe é besta e o gênero humano ridículo.

Cortar os pulsos dói,
juro, pois conheço
as cicatrizes róseas.

Tente afogar-se no mar.
Sempre há por lá um amigo golfinho.



terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

telúrico

Querida, descobri que cada fio do meu bigode
tem vida própria e há os que se refrescam
com um copo d'água e outros detestam
os pingos lânguidos pelos cantos.

Os fios do bigode
são muito diferentes
das unhas dos dedos.

As unhas sorriem quando veem a tesourinha.
Os fios do bigode se escondem dentro da boca.


domingo, 3 de fevereiro de 2013

menino

Até um dia desses
pensava que o poema
tinha uma janela de entrada
e outra de saída, mas agora
entendo que o poema não sai
do corredor escuro do casarão dos meus avós.

E é lá brincando pelas paredes
um raio de luz que não tem por onde entrar nem sair
que vejo uma nuvem noturna cansada do longo dia de sol.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

circo

Nunca me encantei com os palhaços -
desde o início soube que eram eles
os mais tristes

e os mais ébrios
tarde da noite.

Mesmo assim os seguia de longe
até a hora em que limpavam o rosto.

E iam às jaulas alimentar os leões
com os olhos ainda mais tristes,
talvez pensando

em oferecer aqueles leões famintos
suas mãos e seus braços.



formiga pelo braço

A poesia tem seus inimigos naturais
como é natural um dia qualquer
amanhecermos sem a morte
por perto.

Sem o seu dente de leite
dentro do nosso bolso.

O que resta a uma boca
se apenas a lembrança
da primeira dor?

Decerto é uma boca murcha.
De poucas palavras.

Pensamos e sofremos pelo tempo
em que a morte era nossa amante.

Uma amante viva e cheia de manias
como acordar tarde de máscara
ou muito cedo segurando
o regador de plástico
e um riso feliz
de bom dia.