sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

lassidão

Não se iluda, moço
essa sombra não o deixará em paz
e beberá todo o seu sol pelo resto da sua vida.

O que pensaria você se lhe dissesse
que o seu esforço é ingênuo
e por mais vitórias
que conquiste

a sombra não se afasta
e continua a beber
todo o seu sol.

Mas você é cego
e ainda teima
sorrir.

Não vê que os passarinhos
já fugiram da sua janela
e levaram com eles
as suas costas
e suas unhas.


olhos negros

As minhas camisas há alguém
que adora cheirá-las:
uma barata.

Felizmente
nem todo amor
é compartilhado.

Espero-a sair da gaveta
para matá-la.

Afinal, os meus amores são trágicos.
Não combinaria comigo
oferecer-lhe o braço
para um passeio
matinal.


louvor

Enquanto a morte não vem
eu escrevo versos e estiro
minha pele na cabeceira
da sua cama.

Se houver outro mundo
quero levar a minha pele.

As nódoas, o sujo,
as marcas da lâmina.

Amor, sem drama.
Só digo essas coisas
para abrir os seus olhos.

E não fique triste
se não houver outro mundo.

Faça então da minha pele
sabonete, churros, cotonetes.


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

monstro

Não preciso de carbonato de lítio
nem antidepressivos, mas de cortar
a garganta de alguém e enterrar-lhe
o corpo debaixo da minha cama junto
a outros cadáveres e algumas orquídeas.

Essa placidez fingida
e esse sorriso lânguido
no canto da minha boca

é a mais explícita tristeza
por não confiar na própria dor.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

aleluias

A sede do poema
é matar o poeta
definitivamente.

E quando consegue
o poeta morto
exibe-se
feliz.

Com a metade do seu coração a poesia ficou
e a outra metade é o seu segredo
de morto.


flautas e realejos

Havia deixado uma espinha nas costas
daquelas que tu adoras
já virando sinal,

mas como vives distante
ocupada no trabalho
e diversão

resolvi eu mesmo
um homem solitário
espremê-la e fez aquele
barulhinho de quem abre um champanhe.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

pérolas nas conchas das mãos

Como não vive
aquele que escreve?

Não é preciso sentir o peso
de uma pata de elefante
sobre o baço

para pedir perdão
pelo roubo do marfim.

Tampouco espetar o peito
com agulhas de chineses
para ouvir a alma
cantando ópera.

Eu escrevo, vivo,
e a simulação
é apenas

arrojo,
enfeite,

para que a vida escrita
não seja tão óbvia
e infernal.



lúdico

Um cãozinho vira-lata,
bebê ainda, de tanto
brincar e roer

o cadarço
do meu tênis
fez uma linda trança.

E nela se balançam
os amiguinhos
carrapatos.


simbolismo

Eu era um graveto seco
perdido em um bosque
quando te encontrei,
flor do campo.

O tempo passou,
permaneço um graveto
mas agora sou forte e sirvo
como base de um estilingue.

O meu alvo é sempre os teus olhos
contudo, a viveres mudando de olhar

é raro eu me ver feliz
em tua lembrança.

Pois tudo passa tão rápido em tua memória
que já não consigo me desvencilhar
da morte e do espanto.

erotismo

Confesso-lhe por que deixo
crescer o cavanhaque -

só aguardando o dia
em que você fará
um carinho

com as costas
dos dedos

e sorrirá, obscena,
cheia de boas intenções.

confusão de santos

Estou preocupado com as plantinhas.
Desde que eu voltei a aguá-las
vejo algumas cambaleantes
de pontas tristes.

Se as plantinhas morrerem
eu me enveneno das suas
folhas mortas.

O que teria sido aquele curativo no pescoço
daquela mulher que passou debaixo
da minha varanda?

Uma mordida de vampiro?
Uma cirurgia de tireoide?
Uma picada de abelha?

O que tenha sido
não mudará o estado
das minhas plantinhas.

a liberdade da porta

Não lembro o que fiz de mal
com a porta do banheiro,
mas ontem ela soube
junto com o vento,
seu cúmplice,
bater forte

na minha testa
larga e sonhadora.

Talvez ela não saiba
que os cupins só foram embora
porque eu queimei o ninho debaixo da escrivaninha.

Ou ela me odeie justamente por isso.
A porta do banheiro era uma masoquista.
Adorava os cupins comerem-lhe por dentro
vísceras, alma,
coração.


cores de um míope

Gostaria de saber para onde
essa tua alegria infinita,

esse riso estonteante,
esses cílios voadores.

A tua droga
é muito pesada -
não dá pra mim.

O máximo de alucinação
que consigo é quando
vejo da janela

um sol se pondo,
ou alguns passarinhos.


abacatada

Aproveite o dia
e não saia do quarto.

Veja a cama linda
com sua colcha
laranja.

E o que dizer dos travesseiros
bem comportados vestindo
xadrez de irmãos gêmeos.

Deite-se, ouça Bob Dylan
e conte na mente
quantas vezes
a vizinha

bate a carne
e gargalha.

sobras

O que temos pra hoje, poeta?
Ainda estou procurando
debaixo da cama

a barata
de ontem.

Preciso tirar um dúvida
ou não terei paz:

seria mesmo aquela barata
um porco?

Pois eu vi, querida,
a barata fuçando
minhas coisas

como se fosse
um porco.

A mesma atitude desesperada,
faminta, contando os minutos
pra um novo banquete.

família

Meu amigo carpinteiro,
não abandones o serrote.

Não caias na tentação
do assento pomposo
só olhando

a máquina serrar,
adornar, polir

entregar-te
a peça feita.

E tu levas ao olho
as formas sedutoras.

Digo-te, falta o pó da madeira
pregado no teu suor: dedos,
mãos, braços.

Não te livres do serrote,
amigo carpinteiro
ou esquecerás
do teu pai.

Aquele senhor elegante
que sempre após a jornada
vestia o paletó branco e o chapéu preto
e atravessava a praça andando junto da felicidade.



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

a lucidez dos versos

Só fiz as malas uma vez
o bastante para remover
toda a terra do meu túmulo.

Depois de lembrar o trauma
deixou de ser requinte a dor.

São lembranças desse tipo
que me fazem forte, quase
uma árvore centenária
com passarinhos
nos ombros.


oferenda

Os meus sapatos estão sujos e velhos.
Não conversam comigo de tão cansados.

Nem mais consigo entendê-los
com suas bocas murchas
e desdentadas.

Serei um bom pai para eles:
construirei uma barca
e no próximo luar
largarei todos.

O pescador
do alto da ponte
terá uma boa surpresa.

Mas pensará duas vezes
antes de lançar o anzol.


entardeceu

Dizem que ao morrer
não se leva nada
dessa vida -

ah, filho,
que tolice.

Há gente que depois de morto
não larga do seu ouro
e da sua dor.

Enquanto outras pessoas
só levam no coração
rostos queridos.

Lembra-se das sombras
que sumiram do chão?

Eram raios do sol
que mudou de casa.


risco

Nem sempre acertamos
a bolinha de papel
dentro da xícara,

mas isso não é motivo
pra que se cortem
os pulsos.

Faça uma bolinha maior
ou tente jogar dentro
da poncheira
de vidro.

É uma questão simples
de amplitude e não de
complexidade.

Não se torture,
amasse mais outra
bolinha de papel dos seus versos.

E lance agora da cama
à lixeira do banheiro.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

um inferno longínquo

Parei de esquecer as xícaras
sobre a escrivaninha
e a estante.

Levanto-me a toda hora,
lavo-as com o pensamento
no filho primogênito que não fiz.

O filho que teria sido feito
em uma jovem moça

que muito me amava
naquele tempo.

Eu não fiz esse filho.
Fugi e hoje lavo
as xícaras -

sem perdão.


capcioso

Já me sinto melhor:
levo um livro
à varanda,
folheio-o,

leio duas ou três páginas
mas são as escrituras
das paredes que me
seduzem.

Isso não significa
aquele olhar perdido
uma flor de cemitério
a vazar o meu coração.

O coração, nesse caso,
bate firme e forte sem
loucuras

de pular
pra calçada.

A calçada do alto
pertence às aldeãs formigas.

Tentarei lembrar quando
os meus pés rudes
pisarem-nas.

Já estou bem melhor:
sinto o oxigênio
dividindo-se
em cada
narina.

É um ótimo sinal
que viverei alguns dias
além daqueles marcados
por minhas unhas nas páginas de um livro.

dá sede a quem tem sede

A cada copo d'água que bebo
lembro-me de você
com sua boca
aberta.

Nunca sairá da minha cabeça
o tempo em que aprendi

a beber água
da sua boca.

Caminhar pelo deserto
não me custou nada
se tinha água
debaixo

da calota
de sua língua.

Hoje em dia
sou um homem
só com sua água
nas minhas veias.

Água boa que vale
o meu sangue.


não acendas a luz

Não é o poema
o tesouro do poeta.

O poema é só mais um dente.
Não há eternidade mesmo
na bravura da mão
e do poema
escrito.

Essa falha, essa falta,
esse vazio e promiscuidade
é o único alimento do poeta

que não se cansa
e não tem fim
o desespero.


intermitência

Amanhã é dia de aguar as plantas.
Conto nos dedos os dias
para ir à varanda,

matar a sede
das plantas

e contar-lhes
os meus segredos.

Sei que é uma troca.
Não sou tão bobo assim, querida.

invólucro

Rompeu-se o lacre de plástico
do estojo da minha escova dental.

Agora o mundo é dela,
da minha ingênua
escova dental.

Vejo felizes as francesinhas
que adoram passear
pelos objetos.

Sussurram -"façamos da escova do poeta
nosso bordel: todas as noites
muita música, lascívia
 e champanhe..."


o cãozinho e a cadeira

O seu cãozinho não é igual a uma cadeira.
A cadeira, com a sua morte,

não ficará à porta
esperando sua volta.

A cadeira não fugirá da sua casa,
atordoado, sem rumo,
caso você demore.

Não chute o seu cãozinho
nem berre com ele

como se fosse
uma cadeira.

A cadeira ainda pode derrubá-lo
naqueles dias de tontura,
embriaguez, vazio.

O seu cãozinho
mesmo de rabo pisado
dirá apenas "au, au, au, cuidado!"


ringue

É urgente um diálogo
um jeito simpático
de dizer àquela
barata

que passe por outro caminho
que não atravesse a cama
para chegar à sua casa.

Acordo com uma sensação
de ter sido desonrado
de mil maneiras
e gestos

por ela, essa barata
confusa mas decidida

que pouco se importando
com o meu asco
e náuseas

passa por meu corpo
todas as noites para cuidar
dos seus filhotes trancafiados
em alguma fenda ao norte da minha cama.

Creio não haver outra saída
senão à cabeceira
um soco inglês
e uma pinça.


segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

expectativa

O fio de uma toalha
serve-me entre os dentes.

Limpo-os já pensando
a próxima consulta
com a dentista.

Só escolho mulheres
porque elas sabem
como olhar

do alto a boca
de um poeta.

Sobretudo agora
eu com esta barbicha.

Queira ou não
a dentista há
de roçar-me

a luva
de látex.


domingo, 6 de janeiro de 2013

vestido

Abraça tua solidão
e não sonhes.

Somente a ela
tens os bons agouros
das tuas três almas e mais os versos.

Não a abandones, 
a tua solidão.

Não corras o risco da beatitude
do patético fiel a quem
tu não conheces.

A tua solidão,
ela quem te esbanja luz
clareia tua mente cambaleante.

Anda com ela,
com as mãos dadas,
sente o perfume das azaleias.

Somente a ela,
tua solidão

tu deves um sorriso
um arquear de ombros
e um adeus.

o suspiro da estante

Quantos monstros tenho guardado
dentro da minha caixa de sapato

e não são mais sementes
de mucunã nem moedas
encantadas.

São monstros,
querida.

Monstros silenciosos
e cínicos que desdenham,
evoluem, tomam corpo com
a minha loucura e docilidade.

Eles não morrem, querida.
Só mudam de cor o olhar
com a noite.



sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

figura

Nunca imaginei que dentro do meu colchão
ainda haveria aquela flor que um dia te dei.

Junto com ela, o poema
e o cachecol úmido
de teu perfume.

Os ácaros agora
tu precisas ver:

líricos
e sensuais.


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

a morte dos panos

Senti uma tristeza tão grande
que eu nunca sentira antes
ao pisar na minha toalha

na minha antiga felpuda toalha
que agora não passa
de um pano de chão
desprezível.

Assim será com  o meu corpo
quando um bando de verme
dançar um tango sobre
minha caixa torácica.


a propósito

Guardei uma flor
no coração de vocês
pra quando eu morrer

e sempre que ouvirem
meus gemidos vocês terão
alguns minutos para gargalhar.

Não será tarde nem distante
a flor se abrirá e lançará

em chamas
alguns versos.


ida sem volta

Estou vendo a minha vida embora
e não me levanto da cama
e não fecho a porta

e não esmurro o peito
e não faço traqueostomia.

Vejo a minha vida embora
e não tenho forças
para dar adeus.


pelo olhar de uma barata

Quando nasci as mulheres juraram ser cruéis comigo:
minha mãe não me deu o peito, a minha primeira
namorada perdeu um peito e enlouqueceu

e as minhas sucessivas mulheres
fugiram, flertaram, casaram-se
com estivadores, marinheiros
e artistas velhacos.

A minha alma?
Ah, minha alma é de ferro
que sustenta cordas de navios.