domingo, 21 de outubro de 2012

miséria

Não devemos nos apegar à mãe
nem filho, nem cachorro, nem gato.

Nem ao nosso umbigo
nem às nossas orelhas.

Não devemos nos apegar à tristeza
nem à alegria nem ao furor e vazio.

Não devemos nos apegar às sandálias,
aos tênis sujos, ao nariz do qual
tiramos meleca nem aos dentes
cansados de tantas mordidas
inúteis.

Não devemos nos apegar ao irmão,
ao vizinho, ao porteiro, ao camarada.

Nem ao dia de sol
nem ao dia chuvoso
nem à noite de luar
nem àquela noite
rala e fria.

Não devemos nos apegar
aos ossos das costelas
nem à tíbia nem pulso.

Ao coração não devemos nos apegar.
Nem à mente e aos seus esconderijos.

Não devemos nos apegar às fadas,
às andorinhas, à nossa xícara legal,
ao nosso olhar melancólico, em vão.

Não devemos nos apegar à promessa,
à poesia, ao futuro cínico, ao passado
louco e terrível nem ao presente
enlouquecedor.

Não devemos nos apegar à loucura,
à luz, ao cansaço, ao vislumbre,
ao fogo nem ao mar. 

Não devemos nos apegar ao escuro
do quarto nem à claridade da janela.

Não devemos nos apegar às nossas costas.
Nem aos nossos dedos dos pés longos e velhos.

Não devemos nos apegar a coisa alguma.
Ou corremos o risco de morrer antes do dia.

Aliás, não devemos nos apegar,
sobretudo, à morte.

2 comentários:

  1. Apegar-se a nada, afinal

    E ao final...

    Apegar-se a tudo?

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  2. Este final foi certeiro, flecha que me atingiu. Mas é verdade, nem a Ela. Mas Ela é tão cativante...
    beijos,

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