terça-feira, 31 de julho de 2012

rabiscos nas paredes das cavernas

Não há nenhum glamour
em poeta trabalhando
senão seu olhar
distante.

Se eu permitir que me vejas escrevendo
terei depois que te matar a sangue frio.

Só meus objetos são gaivotas,
estão livres para mergulhar
e morder as bochechas
dos peixes.

a candura dos tempos

Ninguém faz um café como eu,
nem mortais nem deuses,
ninguém!

Se tu duvidas,
pergunta às andorinhas

que antes de se recolherem
aos seus ninhos vêm até minha janela
experimentar do meu saboroso elixir.

A carinha que elas fazem de satisfeitas
um risinho no bico e um bater de asas
é sinal que elas hão de retornar
no outro dia.

Só eu e vovó guardamos o segredo:
ela do tempo do coador de pano 
e eu agora feliz pelos suspiros
da minha cafeteira.

óculos

Depois dos meus óculos
não sou o mesmo
diante

de um livro
de um formigueiro
de um céu de brigadeiro.

Meus óculos apesar
da floresta de arranhões

confessam às minhas retinas
o que é verdade e o que é ilusão.

Desde o início
eu soube que nosso transe
seria para sempre esse lavar constante
das lentes e esse limpar incessante com papel higiênico.

Questiono se não valorizo demais seu olhar
desprezando minha intuição e se não seria plausível
deixá-lo um tempo um longo tempo sobre a escrivaninha.

Meus óculos não podem manter essa intimidade perpétua
com meus olhos: receio durante a visita da morte
vislumbrar algo de bom.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

a lua cheia encanta o telhado

Se minha cabeça explodir saibam todos
o único responsável é um tirano
que disse chega de miséria
e só me oferece amor.

Seus dentes estão amarelos
de tanto café e suco de uva.

Apaixonou-se um dia desse
por uma mulher de Atenas.

Saibam todos ele é um tirano que me roubou a alma
e só me devolve meus óculos quando estou chorando.

Vive a me prometer que um dia envia
uma mulher singela
que me ame.

Não o matem depois da minha morte.
Ele é um tirano mas é ele quem cuida do jardim.

as minhocas e os peixes

Como não amá-la, essa louca
que me parte o coração todas as noites
e já acorda trocando olhares com os objetos.

Aquele homem abençoado pela poesia
que a ferro queimou no braço
sua imagem líquida

é um homem simples
que fala pelos deuses.

Como não amá-la, essa criança
que se perde da mãe por conta própria
só para sentir-se entre multidões um rei.

espinhos floridos

Sou tão bobo
vendo as pessoas lá fora
acreditando em seus sonhos
lutando e desejando tantas coisas

enquanto eu no meu quarto
querendo somente lucidez
para escrever versos.

Tu não imaginas as lágrimas cinzentas que venho cuspindo.
A sinusite era apenas um pretexto, uma ilusão
para que meus pulmões
acordassem felizes.

Mas te digo, poeta doente não é poeta morto: 
é um poente sem promessa de noite
um clarão sem indícios de lua.

domingo, 29 de julho de 2012

os cupins têm olhos pequenos

Grande mistério para onde vão os cupins
depois que comem a porta do quarto
e a outra do banheiro.

Deixam um rastro escuro pela parede
cuja origem pulsa debaixo das cerâmicas.

Arranquei algumas
e tudo que descobri -

mais rastros escuros
pelos canos, tubos e fios.

Se eu fosse um tamanduá-bandeira
seria fácil atingir a populosa aldeia
e sorvê-los todos com a língua.

Mas sou apenas um poeta
e o máximo a mim permitido
é escrever versos admirando

o rastro escuro que eles deixam
depois de levarem no papo
duas portas, uma do quarto
e a outra do banheiro.

boticário

Na minha farmácia só vendo
perfume e cosméticos
às mulheres feias.

As bonitas e gostosas
façam fila pra tomar injeção.

Onde?

Na parte em que vossa mãezinha
passou talco, não tenham medo:

eu aplico,
depois beijo.

uma luz

Triste ver um homem vendendo sua alma.
Mais triste é esquecer-se de que se tem uma.

O reencontro com nossa alma
é a mesma coisa de contar

os dedos das mãos e dos pés
do filho da gente

logo quando
ele nasce.

Temos ainda tantos filhos, meu deus
tantos dedos dos pés e das mãos
para contar.

diário

Acabei de beber aquele cafezinho
a alma regozija-se igual a criança
em dias de praia, parque
e cinema.

Eu não era ingênuo naquele tempo
de espinhas e sonolência, acredite

já tinha essa mente
dúbia e incrível.

A questão é que não acreditava em mágica.
E não há brandura e inteligência fora da poesia.

Ontem quase não dormi
acordei várias vezes
de madrugada.

Roguei a deus para que viesse
por debaixo do meu lençol
algum fantasma

aquecesse meu corpo
dormisse abraçado

com a cabeça
no meu peito.

Acredite, ainda ouço minhas fitas cassetes
e o mais interessante é o objeto que toca:
aquelas caixas de música de manivela.

Sou uma múmia, meu bem
antigo mesmo é este meu olhar

que não passa da cortina
que tem medo da rua.

sábado, 28 de julho de 2012

flores

A mulher a mais pacata que seja
basta vestir um vestido frouxo
e calçar sandálias de dedo

aos meus olhos
é um delírio.

Se porventura essa mulher caminha
em frente à minha varanda

sinto um formigamento no peito
decerto o mesmo que sentem
as andorinhas ao entardecer.

Vontade de calar debaixo das asas
todo o céu que se foi de um lindo dia.

um coração, apenas

O lirismo é para minha alma
o que o vinho é para o bárbaro,

antes da primeira taça
meus olhos lacrimejam.

Se você tivesse tido coragem
e me visto por dentro enxergaria

o que sou todos os dias
desde minha morte.

Mentira o que dizem sobre os sonhos
e eu tantas vezes jurei que era verdade.

E a solidão, meu bem,
se não fosse por ela

não teria agora
ao meu lado

a janela aberta
e um sol azul,

distante,
lá fora.

axe seco

Graças a deus um desodorante.
Nunca sei se meu suor agrada meus amores
ou se espanta delas qualquer sonho romântico.

Pelo sim e pelo não,
um desodorante seco
também refresca meu nariz.

Nariz?
Que objeto é este?

A sinusite roubou-me
a epifania deste sentido.

Só percebo algo de bom
quando deixo pingar nas narinas

um barato nasal que na verdade
é uma droga inútil, água com sal.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

espírito festivo

Uma chuvinha inesperada
é sinal que sua divindade
que conversar contigo
mais tarde.

Que fiz de errado,
Divina Poesia?

"Tu não paras nunca,
chegas a me causar enjoos!"

Os pneus dos carros têm outra opinião
sobre minha loucura, ouça:

eles se estendem no asfalto molhado
como fazia eu antigamente
passando a mão
na minha calça
de veludo.

"Mais tarde converso contigo
sobre essa tua esquizofrenia,
poeta."

Que fiz de errado,
Divina Poesia?

Só por que mencionei minha antiga calça de veludo
minha preciosa calça de veludo que um dia
serviram-me os retalhos para eu forrar
meus primeiros passarinhos
nas caixas de sapato?

"Estavam todos mortos, poeta
e tu sorrias ao enterrá-los
nas caixas de sapato!"

Eram meus anjinhos
aqueles passarinhos
e tocavam blues
do Mississipi.

barrinhas de cereal

Quando eu estiver triste cansado das minhas mãos
louco para meter a faca de cortar pão no peito
eu te direi.

Ultimamente só tenho tido
uma espécie de furor
santificado.

As minhas mãos com seus dedos envelhecidos
estão vivendo uma festa particular só deles:

brincam, pulam e rastejam no teclado do computador
como se amanhã Deus enviasse um raio espetacular
sobre meus ombros me dividindo em dois.

Como seria dividido em dois um poeta
que só sabe roubar tesouro
de fantasmas?

Toda a minha tristeza é dos meus fantasmas.
Sobretudo quando eles me veem assim,
voando alto

sem a mínima vontade de pegar a faca de cortar pão
e meter entre as costelas, aliás a faca de cortar pão
prefere a textura da manteiga à carne
do meu peito.

delírios líricos

Essa voz não se cansa
de buzinar na minha cabeça
que é hora de mais um poema.

Talvez eu ganhe dinheiro
vendendo na feira
meus versos.

Escolham, fregueses:
versos tristes, alegres,
cínicos, tolos, sobrenaturais.

Mulher bonita não paga mas não leva.
Eu mesmo entregarei o embrulho na sua casa.

Esteja apenas deslumbrante -
um vestido esvoaçante
e um brinco.

O vestido eu rasgo
depois da quinta taça.

O brinco arrasto de presente
para uma mulher vaidosa
que tenho na outra rua.

uma panda ninfeta

Sei que você é novinha
tem um pai furioso

e três irmãos
irresponsáveis

que certamente chutariam e esmurrariam o portão do meu prédio
e atacariam minha honra com ofensas vulgares de extremo ódio.

O que pode fazer um jardineiro
senão amar seus brotos?

Da mesma forma que o jardineiro sofre desesperado
diante da flor velhinha que se curva na sua mão
e morre de morte natural

também o jardineiro deleita-se emocionado
por existirem brotinhos que encantam
seu jardim.

Sempre que você, mocinha, passar na outra calçada
em frente à minha varanda com sua calça de ginástica

deixarei que meus olhos te sigam
até você dobrar a esquina
e eu quebrar o pescoço.

sexta-feira

hoje eu lhe mostrarei toda a exuberância da vida
que flameja na copa das árvores onde as andorinhas
já acordam perfumadas do sexo swing que elas adoram.

Só queria ver o seu espanto vendo as andorinhas
escovando o bico com os gravetos e lustrando as asas
com o mel que elas sempre conseguem de colmeias distantes.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

um bom juízo

Você já viu um urso chorar, baby?
Eu vi uma gaivota roubar meu chocolate.

E se eu cruzasse agora a sala  falando sozinho
o que diriam as visitas que hoje rezam o terço?

Quem das visitas me pegaria pelo braço 
e me levaria ao meu quarto onde
esqueci a luz acesa.

Qual a alma bondosa entenderia
que tanto antibiótico pra curar sinusite

também causa uma leveza
no coração da gente. 

A minha mãe de 75 anos
é bem mais lúcida que eu:

ou sou eu a própria encarnação
de todas as imagens do seu oratório.

Você acredita que o soldadinho de chumbo
após a morte do peixe ainda casou-se
com a bela bailarina,
baby?

Diga-me, baby,
como casar-se com um soldadinho de chumbo
fedendo a vísceras de um peixe morto e cruel?

Você dirá que tudo é fábula
e que o peixe não é mau
nem teve culpa.

Culpa, baby, eu teria
se cruzasse a sala falando sozinho
e não beijasse a cabeça da minha mãe.

relicário

Meu primeiro bermudão surrado
e os meus tênis sujos

são meus restos mortais
que guardo dentro
da última gaveta
da cômoda.

Lá nenhuma barata ou traça 
fazem ninho e jantam à luz de velas.

Quando estou triste
quase perdendo a memória

visito meus restos mortais
e lembro-me de como
eu era feliz:

o vento riscado em cada dobra do bermudão,
o orvalho das calçadas no solado dos meus tênis.

mulheres correndo na praia

Esta é a minha maneira de amar.
Esquecendo do divertimento,
dos sonhos, do futuro.

Esquecendo dos mestres da minha infância,
dos profetas da minha velhice,
dos livros, das letras.

Esquecendo do meu pai,
do meu filho.

Esta é uma maneira egoísta de amar,
tu afirmas olhando meus olhos.

E tudo que posso te responder
é que estou esquecendo as respostas.

E tudo que posso te assegurar
é que este meu silêncio não é cínico.

As mulheres que Picasso pegou eu também peguei
e os vasos de bronze que Picasso moldou
eu também moldei.

Mas os olhos de Picasso,
estes sim, são cínicos
e verdadeiros.

Esta é a minha maneira de amar.
Escrevendo tolices, resmungando por aí.

a rótula e as estrelas

A rótula do meu joelho direito precisa de reparo.
Do quarto à varanda caminho com dificuldade.

A rótula range,
move-se tresloucada.

Se a rótula pular fora do meu joelho
como farei para subir até o telhado.

As estrelas decerto não compreenderão a minha ausência.
As estrelas só dormem sossegadas sem medo da noite
comigo sobre o telhado cantando novenas
e boleros.

toro loco

Se um dia você beber um vinho acompanhado, sonhador,
e se esse vinho não lhe descer bem pela garganta
a queimar seu peito de outra forma

aconselho que fuja da companhia
e não ouça as mentiras da mulher.

O vinho que estraga o primeiro encontro
não é culpa das uvas colhidas
nem do tonel.

É a presença da mulher seu futuro amor
que não passa de um terrível pesadelo.

Fuja, rapaz
e só olhe para trás
quando pular do abismo.

Com o tempo,
pelo mesmo processo
que um bom vinho envelhece,

você aprende a não crer sempre
na primeira mulher que lhe oferece um vinho
e diz que será linda a vida depois de três taças.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

todas as mestiças do mundo

Basta que eu fique quieto
meu coração bate seu tambor.

Ouço meu coração com respeito.
Sei que ele é capaz de matar sorrindo.

Ponho a mão sobre o peito esquerdo e rezo
para que não me venha à memória
aquele amor antigo.

Meu coração percebe meu medo e arma o bote.
Minhas narinas me dizem baixinho
que não tem como eu fugir
daquele perfume.

E abrem-se elas as duas janelas
e entra meu amor antigo
ainda cheirando
a sabonete.

Meu coração sabe matar um poeta.
Mas são as minhas narinas
as senhoras da saudade.

fim do último prelúdio

Por favor e misericórdia,
não me diga nenhum poema
nem pegue minha mão e escreva.

Faça-se cego e me cegue também.
Dê as costas ao jardim do prédio
e das praças.

Não me traga suas flores
e as pontas de cigarro.

Chega de versos, seu moço.
Desmonte o relógio da cozinha.

Dentro do engenho
há uma mosca morta.

E ninguém sabe dessa proeza.
A mosca morreu marcando o tempo.

além dos nossos ossos e da nossa carne

Como acreditar em sonhos
se os meus são tortos e ralos.

Quanta diferença dos sonhos do meu tataravô
que bebia e fumava uma parada lisérgica
para vislumbrar se haveria boa colheita

ou para descobrir onde estava escondida
sua filha caçula depois que um estrangeiro
um estrangeiro sem escrúpulo a desvirginara.

Os antibióticos que bebo são uma tolice.
Não me causam visões e não me dão o dom da profecia.

Sequer consigo desvendar o mistério do desaparecimento
das minhas formigas que outrora eram multidões
de carnavais fora de época.

Já fiz vários testes a jogar pela casa
migalhas de pão e bolacha, colheres
sujas de doce de leite, taças de vinho.

Elas não aparecem.

Terei de apelar pro baú antigo.
Pros artefatos e substâncias místicos do baú antigo
cujo zelo meu avô confiou-me naquela tarde de sua morte.

Nunca vi de perto o que há de fato dentro do baú antigo.
Lembro-me, no entanto, das rugas na testa do meu avô
e da sua voz de oráculo sussurrando coisas
ao meu ouvido antes de morrer.

O que um poeta apaixonado por suas formigas não faz.
Pedirei licença a meu avô, bisavô e tataravô e logo
que caia a tarde pela sombra da janela do banheiro
abrirei o baú antigo e beberei e fumarei
as paradas lisérgicas.

Que eu não tenha um tipo de loucura sinistra
e pense que as formigas são meus dedos
e que meus olhos são os olhos
de girassóis.

o riso de Neruda

Juro que se eu fosse um jardineiro
plantaria uma roseira para Deus
e outra pra ti.

Como só escrevo versos,
então, são todos teus.

Deus não dá a mínima pros poemas.
Quando falo de Deus acredite apenas na imagem.

Deus por sinal é agora uma janela aberta
e ao mesmo tempo um barulho insuportável de motocicleta.

Juro que não farei mal a mim senão através das palavras.
Mas as palavras quando são cuidadas como cuido da minha sinusite
não fazem mal nem trazem desgosto para quem as planta no jardim.

Se eu fosse um jardineiro passava horas a fio
admirando o sol que bate no muro
e faz sombra pras formigas.

Se eu fosse um jardineiro não plantaria roseiras.
Escreveria versos com os pés dentro de um riacho.

Com os pés dentro de um riacho
seria outra história: seria eu
um pescador.

E nós sabemos que todo pescador
tem um laço íntimo com Deus.

Deus ama os peixes.
Mais que aos poetas.

terça-feira, 24 de julho de 2012

o êxodo dos microorganismos

Meu corpo não se defende dos sinais da velhice.
Meus olhos sabem que a visão momentânea é triste.

Penso que serei nada quando a morte bater no meu ombro.
Não direi coisa alguma nem ai nem ui creio que ficarei em silêncio.

Talvez uma tosse.

Os versos não serão os mesmos sem a presença do poeta.
Difícil acreditar que morrerei um dia depois de tantos versos.

Nada levarei nenhuma palavra.
A palavra é dos vivos.

Penso seriamente que a morte ao bater no meu ombro
ainda me dará uma chance para que eu fuja, fuja, fuja.

Para onde se meu quarto não é meu
e se meus objetos sonham com minha morte.

Minha xícara já me deu adeus.
Ganhei um novo par de botas.

As antigas apesar de loucas
mantêm uma seriedade de santa.

O poeta após escrever seus versos
não tem nenhum poder sobre eles,
dizem.

Eu tenho poder sobre eles.
Guardo-os em um lugar secreto.

E a morte sabe onde.
Mas ela é a minha melhor amiga.

Não estragará a surpresa.
A minha surpresa.

amoxicilina

Não digo que seja verdade o que planto no jardim
mas semente de mostarda tem sua importância
no palácio de um passarinho.

A próstata é uma glândula do tamanho de uma semente de mostarda
e vejam só que estrago ela faz quando cresce sem limite
dentro do saco.

Passarinho não tem um saco igual ao do poeta.
Por isso o passarinho mesmo na morte se sente o tal.

O passarinho tem outras glândulas.
Uma em especial se esconde
na base do seu cérebro.

O cérebro do passarinho
é igual ao do golfinho.

E vejam só que alegria eles esbanjam
quando se encontram bordados
no roupão do meu filho.

O golfinho me parece um falastrão.
Não posso esquecer entretanto
que foi ele quem me salvou
naquela noite em alto mar.

As ondas já tinham levado minhas botas.
As ondas já tinham levado as portas do meu quarto.

Mas eles, esses golfinhos falastrões,
pegaram-me pelas orelhas
e me salvaram.

Por falar do meu quarto
os cupins foram todos embora.

Gostaria de saber quem dá a ordem
para que eles comam portas e janelas.

De uma verdade eu desconfio:
As aranhas tiveram um papel importantíssimo.

Vejam só como elas estão gordas.
Gordas e felizes minhas meninas.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

sob tratamento

Meu reino [que não é pouca coisa]
por uma xícara de café bem quentinho.

A minha cafeteira me adora.
Nunca escondeu de mim seus suspiros.

Dentro do meu nariz há um outro nariz de tucano.
Escrevi hoje cedo que o tucano quando espirra
saem bolinhas coloridas das cores do seu bico.

Lembrei depois que o tubo de shampoo
também quando espirra joga pro alto
bolinhas coloridas.

O amor somente é importante
quando alguém vai até à cozinha
e traz pra gente uma xícara de café.

E o nariz de aborígene quando espirra
o que lança pro alto senão brincos
de javali?

Tenho três argolas do casco de javali sobre minha escrivaninha.
Também tenho alguns búzios e logo te direi, madame,
o que será da sua vida.

Para mim é muito fácil basta jogar os búzios com as argolas do casco de javali.
É um mapa espiritual que vejo diante dos meus olhos e já posso te adiantar,

madame,
que a sua vida sem mim será bem mais alegre.

Não se culpe nem pense em suicídio.
Afinal eu tenho minha cafeteira
e você seus cabelos.

domingo, 22 de julho de 2012

um passarinho bluseiro

Tem um passarinho de papo amarelo
na minha janela um tipo
que toca blues

e não se cansa
de assoprar sua gaita -

já lhe perguntei o porquê dessa alegria tão triste
ou dessa tristeza tão feliz e ele só me diz "bliu,
bliu, bliu"

Quisera fosse eu um cara que tocasse blues
pendurado nas janelas dos outros

antes porém de cada música
jogava o chapéu  pras moedinhas.

O passarinho de papo amarelo
não me pede coisa alguma
nem caju nem alpiste.

O negócio dele e me sensibilizar
lembrar-me de que tenho

um coração mole
e uma alma mafiosa

que ora mata,
que ora morre.

sábado, 21 de julho de 2012

Zaratustra é um sujeito bacana

O que fazer com o coração do poeta
em um sábado iluminado como este.

Cheguei à conclusão que o mais correto seria
que transplantassem o coração do poeta
ao peito de um rinoceronte.

O rinoceronte passaria a voar
e colher flores com os olhos doces.

O poeta, em troca,
passaria a andar feito um homem.
Com os músculos e pisadas de um homem.

Já vi um poeta andar feito anjo,
palhaço, monge, bandido,
mas nunca um homem.

O poeta tem medo de andar igual a um homem.
Então, baby, que ande o poeta feito um rinoceronte.

Pisadas cruéis a estraçalhar o jardim.
Um silêncio de amedrontar abelhas.

um bom sábado

Ah, essa vontade de saber das coisas.
Saber simplesmente do fundo do mar
o que sabem as baleias.

Em vão conversei com o profeta
sobre aqueles dias de exílio.

Tudo que Jonas me disse
é que na barriga da baleia
tinha de tudo: garrafas de uísque,
poltronas, mastros de corsários,
porcelanas, ouro e conjuntos de esmalte.

Mas nada de segredo oculto a ser revelado.
Nada de tábua sagrada ou sopro divino.

Ah, essa vontade de saber das coisas.
Saber o que sabem dos céus os pássaros.

Nem Ícaro que chegou tão perto da montanha encantada.
Tempo depois eu soube que não foi o sol seu grande inimigo.

Havia um pássaro sacana dentro da sua alma.
Certamente havia uma baleia sacana dentro da alma de Jonas.

Aliás dentro de todos os náufragos dos céus e dos mares
existe uma alma sacana plantada para nos enlouquecer.

E é loucura essa vontade de saber das coisas.
Bastaria que meus olhos se contentassem
com a roseira lilás na minha frente.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

telefonema

Para falar de amor tenho hoje
a meu favor uma rosa murcha.

Quem diria que há dois minutos
ela encantara uma legião de besouros.

Você sequer imagina quantas rosas murchas
eu lancei ao lixo ainda de ressaca e tão triste.

Era o corpo torto,
meu bem,

que ainda sentia
a dor do vinho.

A rosa murcha
em sua singular melancolia
não é o retrato da minha loucura.

A tristeza,
a minha pelo menos,
vem da alegria do sangue quente.

Depois,
que nunca se perca o costume,
brilha em meu peito a doçura da morte.

exercício de liberdade

Uma folha seca fazendo piruetas entra pela janela.
É um bom agouro -

preparo meus olhos e o silêncio
para os primeiros versos.

O poema tem seus truques
igual a uma velhinha que pensa
em morrer logo e nascer uma flor.

Mas a velhinha não morre
embora viva tombando
pelo jardim.

Que tem a ver folha seca
com uma velhinha moribunda
senão este ensaio de dramaticidade:

a folha seca que engana o poeta
com sua imagem repentina,

enquanto a velhinha
ilude Deus com sua morte.

terça-feira, 17 de julho de 2012

sinos do poente

O poema se faz mesmo quando não se deseja.
A gente olha pras paredes e ele está lá.

A gente abre a geladeira
e ele continua nos seguindo.

O poema é dono de si.
O poema é senhor do poeta.

O filósofo não percebe a hora de ir ao banheiro.
O filófoso pensa que é a vontade a soberana.

Mas é o poema que dita as regras da urina.
Também é o poema que dita as regras da sede.

um quase entardecer

para que tanto caminho, poeta
se tuas asas são de gergelim

e a cada passo os pássaros
comem de volta toda a trilha 

diz-me, poeta
quem te seduziu primeiro

se a lucidez
ou se a tristeza

para que tantos guerreiros
se a tua grande batalha
é íntima

lá dentro, poeta
onde só tu habitas

só tu fazes o fogo
e somente tu morres de frio

diz-me, poeta
quem és tu além
desse olhar inacabado

quem és tu, poeta
juntando teus ossos
fazendo um embrulho
de tua carne
e pele

que sobra de ti
senão os versos

e os versos além desse olhar
poeta, por ordem de quem?

os pássaros já comeram tua memória
e não há como buscar aquilo
que é fumaça

tua trajetória
vem da lama

os pássaros sob chuva
não dançam e não amam
a tua alma

poeta,
ah, poeta

diz-me qual o fuzil
que não treme

nas mãos
de um louco.

a brandura de um homem

despedi-me do mundo
sem fazer inimigos

assim como quem entra em uma casa nova
abre os braços, fecha os olhos
e sente uma energia boa

despedi-me do mundo
com os bolsos vazios

sem ouro, sem moeda
mas elegante, firme
e forte

despedi-me do mundo
correndo pelas calçadas

louco, louco, louco olhando pro céu
afinal é do céu que caem as coisas do mundo -

sementes de passarinho, folhas secas,
pipa sem rabo, raio, um pingo de chuva.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

uma garrafa de água benta

A verdade é simples -
não tem vestes
nem faces

não há caminho
debaixo dos seus pés
nem mestres que lhe segurem a mão.

A verdade é mansa
de uma ternura louca -

se nos embriagamos
perdemos seus olhos

e se acordamos sérios
ela gargalha, ela desdenha.

A verdade é uma permanência
que enfraquece as escamas
e cria mofo nas asas
de uma serpente.

Um suspiro sem lembranças.
Uma memória vaga e ardente.

A verdade alimenta-se do tempo.
A verdade tem filhos com o tempo.

A verdade tem três filhos com o tempo.
Um perdeu-se no mundo.
O outro vive dentro
de um túmulo.

O último é dúbio
e tem os olhos
tristes.

A verdade é simples, meu filho,
tão simples que me causa espanto.

Mas não é dor o espanto
nem encanto o que ilude.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

quando faço a barba sangro

ou meu rosto é de seda
ou a lâmina do prestobarba
é uma guilhotina sedenta por sangue

cortei-me esqueci sei lá quantas vezes
hoje o sinal acima do lábio direito
escapou com vida, viçoso
e arrogante

lembrei que milagre
é tão natural quanto

meu sabonete com sangue
com o sangue do meu rosto

ou meu rosto é uma pele de manga-rosa
ou o prestobarba é uma peixeira afiada
afiadíssima na ponta de um seixo

um seixo alvo e liso
do rio da nossa infância.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

origami e seus segredos

é para você que faço uma flor de origami
ou prefere um barquinho de papel?

no mês de julho venta tanto
a flor já abre as asas

e sonha voar
pela janela

o barquinho de papel que espere a chuva
o meio-fio correnteza e nenhum pirata
triste no convés

aprendi com um samurai
a fazer flores de origami

apenas para que em noites sombrias como esta
eu fosse até sua casa e lhe presenteasse
uma orquídea

não pense que é fácil
fazer uma orquídea
de origami.

terça-feira, 10 de julho de 2012

coxo e caolho

Se eu encontrar dinheiro no lixo eu fico com o pacote
e se vier alguém atrás eu fujo com o coração na boca.

Não sou um bom moço e gosto de dinheiro achado no lixo.
Esbanjaria toda a grana com bebidas, mulheres e livros.

Então saibas ladrão que rouba restaurante
se eu encontrar dinheiro no lixo eu pego
e se tu vieres atrás de mim eu fujo.

Não tenho uma boa alma
meu espírito é delirante
e o meu silêncio
sacana.

o mestre que todos nós somos

espere-me
agora me espere

a vida não é o que você pensa
a vida é o que sempre foi -
cruel com os fracos

se você for fraco
pegue suas coisas
e vá embora

sua orelha é apenas
um calo de sangue

e a sua boca
uma armadilha

espere-me
agora me espere

de madrugada as paredes
são gatos pardos

levite e beije minha face
levite e beije minha face.

domingo, 8 de julho de 2012

sigilo

Não abra a porta da sua casa para seu inimigo
ou questão de segundos você perderá o rumo
não saberá quem é você nem qual a alma dele.

Cruze seus braços e não desça ao abismo
sabemos que a vertigem causa deleite
a quem é na verdade um rato
e nunca foi pássaro.

Deixe-o do lado de fora.
Deixe-o morrer de sede.

Não abra a porta da sua casa para seu inimigo
ou questão de segundos à mesa da sua cozinha
você e ele alegres e bêbados
hão de marcar o dia
da sua morte.

Acredite você estará feliz
e ele com um olhar cínico

lhe dará um abraço
quebrará sua costela.

sábado, 7 de julho de 2012

dizendo versos baixinho

plantei uma árvore que não tem raízes
e voa com as nuvens sem destino

disseram-me e ainda dizem
que ao sussurrar versos
aproximo-me
da loucura

mas a árvore continua sem raízes
e sem espaço definido

entre um rodopio
e um abismo

disseram-me e ainda dizem
que a minha sorte
é que a poesia
é torta

por isso meu canto engana
os que andam aduncos
por natureza

não são eles parte da árvore?
e não é a árvore somente minha?

então tudo que voa
brilhante e empoeirado
em suas folhas e no seu orvalho

é da minha vontade
e do meu delírio

que me importa se o abismo acorda
e o que foi lindo entristece

por encanto
e maldade
...

domingo, 1 de julho de 2012

Ganesh

Não me lembro da última vez
em que bebi o café da manhã

na varanda balançando os pés
e piscando o olho pras plantinhas

vejam só, até assobiando
e dando pulinhos -

meu deus,
que é isso?

A primeira andorinha
que pousar no parapeito
peço-lhe que me belisque -

decerto estou doente
ou sonhando.

Agora é na cozinha
que danço um bolero
agarrado à minha xícara.

Deus,
que é isso?

Nunca fui dado
a tanto festim
assim, sóbrio
e patético.

A primeira andorinha
que pousar no meu ombro
tentarei sufocá-la com um beijo.

Mas é difícil,
ah, deus tão difícil -

as andorinhas não colaboram
e não passam batom cereja no bico.

Diga-me, deus,
como beijar essas andorinhas
de bico ainda úmido do orvalho das calçadas?

Não me lembro da última vezem que cantei uma música
olhando as paredes.

Deus,
que é isso?

Devo estar mesmo doente
ou apaixonado por meus cabelos brancos.

ávido

Não me chames de amor
assim facilmente, sabemos
que as palavras têm poder

[vê lá, hein] tu podes acordar
imaginando que sou teu poeta

enquanto não passo de uma lagarta
trêmula na calçada esquivando-se
dos bicos das andorinhas.

O amor não me tolera -
é conhecido esse meu desastre.

Mas quem sabe
quem sabe,
né?

Vinde então, moças
estou só e aflito

preciso de um trago
e de outra língua.

Mas não me chames de amor
as palavras têm poder e loucura.