quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

a santidade dos objetos

Quando sair, digo pra minha alma,
deixe a porta do quarto aberta.

Pouco me importa o vento:
que bata a porta até rachar o teto.

Saberão os ladrões
que tem em casa
um alma viva.

Não a minha, claro,
que já anda distante.

Mas a da porta
que vem e vai

e bate
e torna
a bater.

Quando voltar, digo pra minha alma,
veja se ainda serve a chave
e se o teto não desabou.

Se dócil a fechadura
e se o teto seguro

festeje então meu corpo,
a sua única e fiel morada.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

neuros

ah, esse sonho insano
querer atar a alma
do outro

ao nosso
capricho

já não nos basta esta
doida pela casa

tateando no escuro
xícara, mesa, toalha

ah, essa tolice mesquinha
de querer laçar o corpo
do outro

ao nosso
sapato

já não nos basta esta febre
dentro do olho

tateando no escuro
o último analgésico

ah, deixemos os outros
com seus ombros
com seu peso
e pluma

já não nos basta esta
cruz de santo
esta coroa
de louco

pela casa
tarde da noite

tateando no escuro os chinelos
e só encontrando os pés da estante
...

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

terça gorda e linda

Quatro dias é o suficiente
para tratar-se de uma artrite.

Espantoso,
nunca canto:

nem samba
nem fado.

A minha salvação é que sei
fazer uma andorinha gozar.

É lindo vê-la em transe
asinhas meio pendidas
biquinho entreaberto

e os olhos enormes
arregalados,

de vidro
ou porcelana?

Terça-feira gorda de carnaval.
Não conheço um dia mais santo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

ausente do juízo normal

No dia em que você rasgou meus poemas
eu deveria ter percebido de uma vez
a mulher louca que era

ninguém rasga poemas
por imensa a frieza
por maior o ódio

poemas são filhos sem mãe
que logo partem

sem dizer adeus
ou onde vão morar.

No dia em que você rasgou meus poemas
em diversas perpendiculares

fazendo horizontes
apartados das nuvens

eu deveria na mesma hora
ter feito minha mala

ou lhe dado uma bofetada
ou lhe ter jogado uma praga

porque ninguém rasga poemas
e continua a viver impune.

Mas tolo nada fiz
senão olhá-la

perplexo,
incrédulo.

Hoje em dia você se alegra com seus amigos
faz planos de trabalho e passeios.

Decerto você não imagina
que rasgar poemas
é um pecado

um pecado mortal
e sem expiação.

Veja o meu caso.
Um dia rasguei poemas.

Agora minha vida se resume a escrever versos.
Não tenho tempo nem para calar a minha boca.

E isto é triste
quando é eterno.

o nevoeiro que se dissipa

Os versos tortos que escrevo
é a comprovação que sou humano.

Falho como homem
e como poeta.

A divindade que me vem
com o poema eterno
some,

sequer tenho tempo
para festejar o assombro.

Esta minha capacidade
em ser falível e efêmero

é a sincera afirmação
de que sou humano.

Haverá para meu corpo
as dentadas dos vermes

como já voam sobre o que escrevo
os brilhantes dentes do esquecimento.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

melancolia

O coração sabe da tolice enfadonha
que é um punho com artrite.

Mas que bom que é domingo de carnaval
e todos estão na praia e na serra
felizes.

Deus na sua infinita ironia abençoa-me:
agora são os dois punhos com artrite
e os dez dedos obesos mórbidos.

Capitão Gancho pergunta se quero
que ele ponha açúcar na xícara

e Peter Pan me diz sorrindo
que no seu reino

para cada tipo de artrite
existe uma fada específica.

Preocupa-me apenas como apertar o tubo de pasta
e derramar sobre a escova
a lágrima de flúor.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

sábado de carnaval

Que raios de mão esquerda é esta
bastando mudar o tempo,
esfriar, chover

para que o punho inflame
e os dedos inchem.

A minha alma sofre mais que o corpo
com sua mão esquerda podre
de punho inflamado
e dedos gordos.

A minha alma se torce,
se rói, se lastima

busca alguma magia
para aliviar essa dor patética.

Capitão Gancho é um bom sujeito.
Certamente escreve melhor que Peter Pan.

Segurar a pena com um anzol é para poucos.
Sobretudo bêbado de conhaque.

Peter Pan não bebe
e suas mãos de seda
encantam as meninas.

Basta chover,
esfriar o tempo
que volta a artrite

e o punho incha
e os dedos engordam.

Penso em capitão Gancho.
Dizem que um crocodilo
devorou-lhe a mão.

A verdade é que foi capitão Gancho
que amputou a mão de tédio,
louco de artrite.

Sujeito de coragem.
Natural que escreva
melhor que Peter Pan.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

a poética das coisas

Devo tantas vidas
mas não devo
a mentira

pois o que invento
corta-me a pele.

A estante de ferro
e o óleo johnson

não têm o mesmo corpo
mas têm a mesma alma
dentro do meu peito.

Devo a eternidade
mas não devo
a mentira

pois meu coração é súdito
de duas senhoras,

uma de espuma
e a outra de cristal.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

antes que o céu desabe

O sanguinário homem não entende
o perverso homem não entende

que a alma humana é salva
dentro da sua própria casa

com a voz dócil
e os olhos sinceros.

O mesquinho homem não entende
o egoísta homem não entende

que o brilhantismo da alma humana
acontece quando o ancião lembra

que tem memória
e o jovem arrebatamentos.

O louco homem não entende
o ansioso homem não entende

que a bravura da alma humana
vem da sua primeira inocência

dentro da sua própria casa
dentro da sua própria casa.

docinho

O musgo da árvore
não é o mesmo
do telhado.

Pelos galhos pássaros,
borboletas e cigarras
já demarcaram
território.

Enquanto o telhado antigo
guarda no seu musgo
apenas os olhares
das estrelas.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

chuvinha fina e um sol tímido

Se digo que os olhos da ninfa
brilham mais que estrelas

apenas suponho
que o fogo da juventude
é tão reluzente quanto distante.

Se digo que os seios de uma ninfa
é um par de doces devaneios

apenas sugiro
que o sabor do pensamento
ainda dá água na boca do sonhador.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

a boa insônia

Senhorita, perdoa-me os dentes
faz tanto tempo que não beijo

eles pensaram que tua língua
fosse um bife.

Senhorita, perdoa-me novamente os dentes
faz tanto tempo que não mamo

eles pensaram que os bicos
fossem de borracha.

Senhorita, pela última vez, perdoa-me os dentes
faz tanto tempo que não meto a cara
em um jardim perfumado

eles pensaram que os pelos pubianos
fossem relva do paraíso.

o último estalo é que acende o fósforo

Não, meu bom moço
ninguém observa tuas lágrimas
chora então e não peças clemência.

Não existe atrás da parede um deus oculto
nem sobre o telhado um samurai misericordioso.

Não acredites em olhar de quem vive morto.
Não escutes a voz da mãe que mente ao filho.

A única razão para que mexas em cadáveres
é vê-los sorrindo e não acomodados
em sonhos.

Acorda-os e escreve as cartas do teu coração
que nunca em hipótese alguma te serão entregues.

Abre teu baú de memórias
inferniza-te até que tuas pálpebras
se cansem dessa luta insignificante
entre lágrimas de cera
e cílios postiços.

Descer à masmorra das mentiras
é como correr em volta da praça
em dia chuvoso que parte ossos.

Deixa pelos canteiros tuas costelas.
Deixa que mais cedo ou tarde
hão de virar cinzas.

No invisível de ti há um jardim todo florido
plantado e replantado quando exausto
tu paras e consegues ver
uma rosa branca
que é azul.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

ondas

O poeta é um tolo, notório e conhecido
desde o tempo em que nasciam batatinhas
esparramadas pelo chão, diziam meus inimigos.

Sempre me comportei como tal
mas a minha ira também assusta.

Eu assumo minha tolice
e a bestial cólera
que me prende
e sufoca.

Eu não apenas assumo como canto
assoprando flautas doces e clarins.

Agora mesmo racha-me a cabeça
um raio digno de um tolo
e furioso poeta.

Não há motivos aparentes
que o mundo saiba antes
dos versos suspensos.

Se tivesse na mão um objeto cortante
uma caneta bico de bronze

não demoraria o sangue
a sujar-me o bermudão.

O que tenho nas duas mãos são dedos.
Dedos espertos que tramam aventuras.

Cada gesto anterior à palavra e ao pensamento
os meus dez dedos parados sobre as teclas
já intuem, sabem, riem.

Eu sou um poeta tolo e colérico,
os meus dedos são eremitas

e a cada toque no teclado
uma estrela morre
e outra nasce.

Ah, que linda ilusão
escrever poema
com o peito
espinhoso
...

há de nascer uma flor
desta voz abafada.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

dois velhinhos sacanas

Viverei até os oitenta anos.
Não se trata de presságio
ou sandice.

É que gostei desse número.
Dessa imagem simbólica.
Simples assim, diria
Pitágoras.

Até lá hei de colher meus gravetos em pântanos sombrios
como também em coloridas florestas de esquilos.

Terei bem de tardinha quando o sol esfriar
o que lançar às calçadas: versos tortos,
poemas apagados, palavrinhas ainda
bebês.

Os meus olhos estarão claros.
O meu sorriso franco.

Não sei o que você terá lançado sobre as calçadas
quando o sol estiver frio, talvez moedas de ouro.

Sei que você igual a mim morrerá aos oitenta anos.
Suas mãos gordas e peludas não verei seu sangue.

Ouvirei decerto seu escárnio das minhas memórias.
Dos meus gravetos colhidos em pântanos sinistros
como em florestas aprazíveis.

Terei a meu favor a mágica da textura do bambu
e ao tenro toque reconhecerei qual o poema
mais louco e qual o mais dócil.

E você com todas as moedas de ouro
espalhadas nas calçadas o que revelará?
As mulheres estarão aos seus pés.

E você ditoso de tanto rir das minhas ilusões
e de tanto alegrar-se da sua volúpia
não perceberá que as suas mulheres
são demônios de saia
e perfume.

Enquanto as minhas mulheres somente terei em versos.
Pois cada uma terá envelhecido e morrido antes de mim.

E serão todas santinhas no céu.
Não lembrarei delas da dor terrível no peito
pelo que me fizeram sofrer durante quase um século.

Engraçado é que fecharemos os olhos
ao mesmo tempo, minuto e delírio.

Eu não morrerei feliz porque gravetos
guardados dentro dos bolsos do paletó
incomodam quando se dorme
para sempre.

Imagino você com tantas moedas de ouro.

tumulto

Não pouparei sangue dos dedos
até que seja escrito o último verso.

Não me venhas então com candura
sossego de espírito e calmaria no andar.

Meu coração é tão somente artérias
entupidas de delírios e estupidez.

Não me peças então paciência
placidez e olhar cristalino.

Minha alma é puro ciúme
do invisível que lambe
do inexprimível
que toca.

Não pouparei cálices de lágrimas
até que seja lançado ao fogo
o último verso.

Porque nunca fui calmo e consciente
e todo o meu pavor é reduzido à loucura.

Meus braços não temem as ondas
nem as noites de relâmpagos
que me queimam.

Não me digas então
que amanhã será outro dia.

Não há mudança no sangue das veias
de quem conviveu com a própria morte.

E esta dor é morte -
infame, deliciosa,
mas morte.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

rubião entristecido

Dá-me água fresca
não para matar-me a sede
mas para lavar meus olhos.

Bons tempos aqueles em que moinhos
eram fantásticos gigantes de mil tentáculos
e a prostituta da taberna minha querida amada.

Bateu sobre meus ombros o fardo das estrelas
entediadas de tanto brilho sem que ninguém
possa salvá-las do passado.

Dá-me água fresca,
lava-me o rosto com teus cílios.

Devolve-me os olhos de outrora
do viajante jamais do eremita.
Pois este não sabe cuidar
da sua própria casa.

Dá-me água fresca,
lava e beija meus olhos
diz-me adeus e acompanha-me.

Minha cabana é logo adiante
seguindo o chiclete das minhas botas.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

espiões

Não leve tão a sério
o que lhe digo bêbado

os gestos,
os olhos

a quase vontade
de pular da varanda.

No dia seguinte não tarda
vem a andorinha à janela do banheiro

inocente,
sem a mínima ideia
do monstro que sou

a confessar-me feito um anjo
sobre coisas dos céus e das nuvens.

borboletas de todos os dias

As borboletas não são idiotas
mas às vezes me cansam
com seus dois olhos
nas asas

vigiando-me os passos
quando vou ao jardim.

Então é hora
de afastar-me delas
com cascos de rinoceronte

para que a terra trema
e os céus ouçam.

Borboletas devem caber-se
somente em forma
de tatuagem

na nuca e tornozelo
de uma mulher.

Mas o que lhes confesso 
é outro tipo de juramento

naquelas manhãs de pura solidão
onde borboletas são princesas
e também nossas meninas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

lázaro e o molusco

Interessante eu nunca ter catado pedrinhas na praia
só me interessavam búzios talvez
por eu saber que um dia

dentro deles
viveram moluscos

e moluscos têm a mesma vida dos homens:
sonham com o mar dentro dos ouvidos
e temem horrorizados quando
são arrastados às falésias.

Eu fui um poeta a partir da noite
quando sozinho pela praia
colhi um búzio

e ao levá-lo
ao ouvido

não foram apenas ondas
e gracejos de cavalos-marinhos.

Eu ouvi o próprio molusco
ressuscitando a mínima parte
que lhe havia restado dentro do búzio.

E eu [que quase medo tenho de nada]
deixei que o molusco ainda meio
amputado do abdome

invadisse meu ouvido,
descesse não sei por qual via
até o meu coração e lá se plantasse
e lá se iniciasse a regeneração de cada molécula.

Sempre que estou sozinho no meu quarto
ou dentro do banheiro eu faço concha
com as mãos e não ouço ondas
ou gracejos dos cavalos-marinhos -

eu ouço claramente
os assobios do molusco
em forma de agradecimento.

Loucura minha mas é como se ele
o molusco ao qual dei vida

confessasse que eu sou
um rei, um maltrapilho
mas um rei.

um homem triste que tem um tesouro

Não falemos sobre os homens tristes
que guardam nos olhos flores
das quais até abelhas
fogem apavoradas.

Embora eu seja um deles
a selar um tesouro

na cova rasa
de um túmulo antigo.

Ninguém em plena e total consciência
haveria de se interessar por esse tipo
de rubis, esmeraldas, brilhantes.

Mas eu juro que tenho, baby
trancado em um baú debaixo
de um anjo de mármore

um tesouro com todas essas pedras preciosas
e mais alguns papiros que revelam a longa vida.

Mas quem haveria de pôr ao ombro a pá
e sob uma noite de furiosa lua cheia
escavar tal tesouro?

Por isso, baby
eu sou um homem triste

largado de deus
e esquecido do demo.

Sem um pingo de amor
a derramar dos meus versos.

Mas não falemos sobre esses homens tristes
que tomam seus porres e se drogam
até o amanhecer

e a vida, baby
permanece mais cínica
e cruel com esses tristonhos.

Esqueça, baby
esses homens tristes
que carregam no rosto
uma cor parda e escamosa.

Ainda não olhei da varanda
como está a lua, decerto
deve brilhar tão silenciosa
quanto meu coração.