terça-feira, 28 de junho de 2011

cafeína

A verdade é que eu sou um pescador
encantado e perdido em alto mar.

Os versos que escrevo
às vezes sonho dentro de uma ostra
outras vezes deliro nas costas de um golfinho.

São versos sinceros como ontem
quase morri de dor de cabeça

e só havia as estrelas
únicas testemunhas
do meu transe.

Não é bom ter somente estrelas
por perto quando a cabeça explode.

Dá vontade da gente querer ser também estrela.
Deixar o mar e não se despedir da mãe nem do filho.

O que diria meu filho sem pai nesse mundão de mar
e como choraria minha mãe sozinha no seu quarto.

domingo, 26 de junho de 2011

velocidade da luz

Quantas escovas perdidas
pelo cano da pia
do banheiro.

Sob todos os vacilos
uma coisa ficou clara:

a mão de um homem lúcido
não deve tremer se a mente sonha.

Felizmente as baratas
agora terão um sorriso branco.

sábado, 25 de junho de 2011

sátiro não sabe tocar gaita

Antes que o sol chegasse à janela
fugi apressado me enfiando
dentro da bota.

Aquela meia há tempo sumida
sorriu com a minha presença.

E ficamos lá (eu e a meia podre)
dentro da bota vendo o sol atacar os objetos
enchafurdando cada canto do meu quarto
sem piedade e sem escrúpulos.

Por isso eu amo a lua.
A lua não invade minhas coisas.

Fica na varanda, se muito
cai na poncheira de vidro.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

sátiro não sabe tocar flauta

Os versos egoístas e tristes
não te mostrarei novamente,

queimo-os dentro de mim
sem cerimônia.

Sei que a cada fornalha e urro na fogueira
perco um pouco da essência de monstro.

Mas, diz-me, o que vale
um monstro inocente
só quando dorme?

Os versos tristes e egoístas
deixarão de te fazer sofrer
ou te alegrar por vingança,

queimo-os dentro de mim
sem altar e sem unguentos.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

riso

ri enquanto o mundo
tenta te conduzir
ao desespero
da posse alheia,

ri pois não tem jeito
o osso que morde a carne
a carne que modifica o espírito,

ri não da comédia
mas do pranto e da farsa

do vazio absurdo de todos os dias
das mulheres distantes de todos os sonhos,

ri, meu camarada, ri com o máximo de desdém
que ainda sobra na tua mente e se foge a mente,

ri da fuga dos teus pobres neurônios apagados,
cinzas, decrépitos, perdidos a cada fumaça

ri dos amigos que riem da tua loucura,
ri dos teus amores que te preparam
o cálice da solidão

ri da paciência que te perturba,
ri da maternidade que te protege

mas não rias da tua insignificante vida
cujo imenso tesouro é uma sílaba
é uma palavra, é um verso
é um poema,

ri, amigo, ri da tua sorte
das tuas noites afamadas
da tua ânsia e do teu vinho

mas não rias do fim,
do tropeço e da morte

pois sempre há mais mortes que supomos
e mais tropeços adiante e todo fim
é um esplêndido começo

uma alegria infinda
que ora se conserva
no que chamamos alma

e depois ferve na pele
causando torpor
e mais risos

ri, amigo,
sobretudo do teu anjo
que rejeitou a vida de outro
para te embalar em noites confusas

e nunca pensou duas vezes
em te defender de ti mesmo.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

o próximo vazio

Se a cada poema escrito explodisse
uma bomba de endorfina dentro do meu cérebro,
Buda trincaria os lábios. Ao invés dessa euforia
abate-se sobre meu corpo uma apatia desnecessária.

Um leve perfume de sabonete indo embora.
Pelas costas os últimos pingos do banho.

doação

Assim que eu partir desse mundo
ofereçam as minhas cobertas
aos desvalidos das calçadas.

Creio piamente na energia
em cada fio de tecido.

O sortudo pedinte
além de não sentir frio

ao dormir com meus lençóis
todos os dias amanhecerá
com uma vontade louca
de escrever versos.

Não será feliz por isso.
Mas se ele tiver um bico de pão
e um golinho de café quente

quem sabe eu não estarei presente
também na sua alma.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

experiência física

"deixa que eu estendo as suas calcinhas
no meu banheiro"

Deu-me vontade de dizer isso
ao ouvir a vizinha do andar de cima
lamentar-se por seu varal ter quebrado.

Subo a escada,
toco a campainha.

Os seus cabelos ainda estão molhados.
Os olhos dela são olhos de quem vive sozinha.
(porque quer)

"pois não, senhor?"

"desculpe-me, mas não pude
deixar de ouvir sobre o seu varal..."

"ah..."

"se a doce dama me permitir posso secar
na minha suíte ou na minha varanda
as suas peças íntimas."

"muito gentil,
qual o seu nome?"

"Senhor Solitário,
ao seu dispor."

Pego a mão da madame
beijo levemente as pontinhas
dos seus dedos.

"ui, tenho cócegas... (o celular dela toca)
um minutinho..."

A toalha a envolvê-la quase
escorrega do seu corpo,

tremo, suo, ela volta trazendo
uma cestinha artesanal
dentro várias joias:

lycra, algodão, seda
mil cores e feitios.

"pronto, aqui o meu tesouro (ela ri,
tem os dentes brancos de publicidade)
o senhor estará à noite em casa?"

"sim, pois não... (a toalha dessa vez
deixou-me aflito) "

"gosta de vinho?"

"adoro, senhora."

"às nove então, levarei uma garrafa
Quinta do Morgado suave,
está bem? agora licença,
era meu sócio
ao telefone..."

Antes que a vizinha do andar de cima
feche a porta ela pisca
e sussurra.

"o senhor é poeta?"

"sim... (respondo engasgado) "

"sempre ouço seus gemidos e urros
quando a lua está alta e cheia"

A dama sorri e me beija o ouvido.
Fecha a porta devagarinho mostrando
parte do encanto que a toalha encobria.

domingo, 12 de junho de 2011

o imoral

Se o teu homem foi comprar cigarros
e nunca mais voltou ou se a tua pequena
(manhosa) pediu um tempo
e já faz séculos

não cortes os pulsos
nem pules da ponte,

garanto que terrível
um inferno mesmo
é se o teu homem
ao voltar para casa
esquecer teu nome
ou a tua pequena
ficar bem velhinha
sem dentes.

"O mundo é bão, Sebastião"
afinal tem cafezinho quente na cafeteira
ótimo livro na estante e um sorvete
maravilhoso de sobremesa.

sábado, 11 de junho de 2011

a traição dos travesseiros

Só agora notei  na parede
encostada à minha cama

uma mancha escura
como se um sujeito carvoeiro
houvesse colado as costas.

Ah, então é isso, enquanto durmo
os meus travesseiros mantêm
um certo envolvimento
com a parede.

E eu que pensava o único amor
dos meus travesseiros
a minha nuca.

Confiava a eles os meus sonhos e a minha insônia.
Mas sabe-se lá o que planejavam os pérfidos
à cabeceira da cama.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

amante

Dia após dia
desço a escada do meu bloco
e vou ao jardim do prédio
para ver como está se saindo
a flor que plantei.

Sempre é um olhar diferente
dela dentro do meu peito.

Sempre é outra a brisa
que me causa frêmitos
e certamente a ela
também.

Na hora da despedida,
penso "Deus, não mereço
tanto êxtase e encanto
no meu pescoço"

Sim, no meu pescoço,
pois a flor que plantei
no jardim do prédio

naturalmente despede-se
encostando suas pétalas
e me fazendo cócegas
pertinho da orelha.

(ela não usa batom,
portanto não há problema
quando entro em casa
e sento para o jantar)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

o amor infinito do lenhador

Faz um tempinho que não ando contigo.
Lembro-me das calçadas molhadas,
das nuvens alaranjadas,
dos chicletes, das tampas
de refrigerantes,
das folhas
secas.

O tempo quando tem pressa
quando foge do controle  
torna-te cada dia jovial

e um ar de mistério exala-se
dos teus botões de aço.

Estranho ter ver sempre próxima
da tua irmã (ou seria tua namorada?)

e ao falar apenas contigo
e ao olhar apenas para teus olhos

é inevitável supor que no fundo
é uma só coisa a tua alma
e a alma dela.

Mas é engraçado, por exemplo, agora
conversar tão chegado aos teus ouvidos
sabendo que ela (tua irmã ou tua namorada)
também está me ouvindo em alto e bom som.

Então dize a ela
que o meu amor se estende
e se multiplica por dois.

Eu não amo o meu pé direito
mais do que o esquerdo.

E tanto um quanto o outro
precisam de vocês assim
coladas e inseparáveis.

Amanhã (loucura falar sobre um sonho iminente)
mas, enfim, amanhã nós subiremos a montanha.

Aquela montanha cuja imagem
passamos horas admirando
o cartão postal.

Dize para tua irmã e namorada
(se ela já não estiver dando pulinhos)
que subiremos a montanha encantada.

E lá em cima, bem no topo,
eu tirarei vocês dos pés
(minhas meninas)

e nunca nunca mais
voltaremos ao quarto,

a este quarto empoeirado cheio de livros imprestáveis
com marcas de bunda de xícara sobre suas capas.

Eu cavarei um lindo buraco
eu farei uma prece
e enterrarei emocionado
vocês duas.

Ninguém ouvirá falar desse lenhador
nem das suas meninas botas.

o dorso do solitário

Não é bom deixar as costas sem o carinho das mãos da amada.
Os cravos tomam de conta feito erva daninha ou arame farpado.

Nascem sombrios sinais que não são de nascença.
De solidão, decerto. E não adianta torceres o braço.

Mesmo que espremas um e outro
dentro do coração há mais e bem feios.

Caso estejas sozinho por vontade própria (duvido)
não te envergonhes de ir à praça
camisa no ombro.

Assobia, moço triste
mostra tuas costas
aos pombos.

Sempre tem um míope que confunde
cravo nas costas com azeitona preta.

Não te esqueças ao chegar em casa
lavar com sal grosso e sabonete
as marcas das bicadas.

Nunca se sabe em qual terreno
o bombo meteu o bico.

Há pombos que adoram
a sujeira dos poodles.

terça-feira, 7 de junho de 2011

epístola do corpo

Quando durmo sou um.
Quando acordo sou outro.

Depois de morto
serei quantos?

Não morderei o próprio punho
para constatar sangue nas veias.

A vida que me cerca
de fato é uma vida alheia
que se diz minha quando durmo
mas é de outro quando acordo.

A curiosidade em morder o punho
e beber meu sangue
é apenas um fulgor
de menino.

Afinal sempre ofereço a ela minha pele
enquanto sinto seu cheiro.

E não serei eu seu dono ou o seu deus
a rasgar céus e abrir mares.

Já lhe sou grato por ainda poder dormir
e ainda poder acordar
atento ao que passa
dentro de mim
e ao que foge
do outro.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

as três marias

Cansei-me dos meus olhos.
Se pudesse arrancá-los
e deixá-los de molho
em um copo
de vinagre,
fazia-o.

Mas os olhos berram, falam alto, chamariam atenção das estrelas.
Tenho medo que as estrelas despenquem dos céus dentro
do copo de vinagre tentando salvar meus olhos.
Não duvido.

Deus quando bebia vinho na taberna
e fez as estrelas e as jogou pro alto

a única lei foi que mesmo mortas
elas se conservassem servas
dos olhos do bardo.

Pelo visto essas meninas ainda levam a sério.
Pois sempre que morrem fingem-se vivas
e brilhando (tudo para que os poetas
não esqueçam seus antigos
amores)

domingo, 5 de junho de 2011

penúria maior do mundo

Ontem banquei o palhaço
dançando no meio do salão
com uma garrafa nos braços.

Patético mesmo foi andar uma praia inteira
debaixo de chuva, pisando em estrelas
chorando feito um bebê
depois do parto.

Você nunca me deu esperanças
portanto não se sinta tão mal.

Eu também nunca tive coragem
de suplicar seus pés e beijá-los
demente até o dia da sua morte.

Estamos quites, meu bem
e não sofra porque sofrimento
é para aqueles sujeitos poetas
que passam quase a vida toda
sonhando ser outra coisa,

dragão de Komodo
ou borboleta.

No fim do apocalipse [acredite]
são apenas crianças perdidas
em uma estação de trem
deserta.

Nada de monstros
e nada de flores.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

a taça dos loucos ou dos justos

Nunca pensei que eu teria ciúme da minha sombra.
Da silhueta dela sobre a estante.

É um tipo de ciúme muito estranho
além de apertar o peito da gente
estrangula a alma dos objetos.

Fico sem saber ao certo
se é o meu espírito
quem acorda
os mortos

ou se é a vida deles
que não foi gasta
o bastante
lá fora

e fico eu feito barata tonta rasgando papéis
bebendo café, lavando louças
aparando unhas

ora apático, ora surpreso
quando vejo que é o meu corpo

o elefante deslizando pela parede
a formiguinha de casaco cinza
a folha seca respirando
estirada na poltrona.

A minha sombra aproveita cada detalhe da luz
e vai fazendo ninhos pelos cantos da casa.

os vândalos de tênis nike vermelho

Disseram que eu estava vadiando
sem eira nem beira
nesses dias de ausência
e loucura

mas o que eu estava mesmo
era cuidando dos canteiros
da minha praça.

Ultimamente pombos enlouquecidos
deram a bicar os olhos das flores.

Tenho que ser paciente e negociar com eles
miolos de pão por ramalhetes.

Alguns gentis e solidários aceitam a oferta de bom grado
e prostram-se aos meus pés felizes com as migalhas.

Outros sanguinários preferem arrancar
com requinte de crueldade cada pétala
(que é da flor cada cílio) indiferentes
à minha tristeza.

Contra esses bárbaros não há outra alternativa
senão lançar mão do meu guarda-chuva
e acertá-los bem no peito.