quarta-feira, 20 de abril de 2011

purificação

E se eu parasse de escrever versos
morreria sufocado dentro de uma bolinha de sabão
ou seria apenas um dedo suado encostado ao gatilho?

Se eu acabasse de vez com essa paranoia de escrever versos
seria curado dessa loucura de botas que engolem o sol da manhã?

A febre antes de atingir o pescoço
causa calafrios nos pés, eu sinto.

A chuva alimenta as telhas de lodo.
Noite chuvosa me lembra comprimidos.

Mas se eu parasse de escrever versos
teria perdido mesmo assim o guarda-chuva?

Adeus, homem casto.
Adeus, corvo.

Ultimamente quando cruzo praças
as flores dos canteiros reclamam:
"onde o guarda-chuva
a sua verdadeira alma?"

Elas não sabem que durante a noite
tu eras um homem casto rezando
para  que chovesse no dia seguinte.

E se chovia lá ias tu bicando
a terra fofa e cortejando
tudo que se chamasse
rosas ou gramíneas.

Se eu parasse definitivamente de escrever versos
ousaria dizer de maneira lúcida que o meu guarda-chuva
era um corvo quando chovia e um casto senhor no quarto?

Por essas e outras temo o dia em que à revelia
meus dedos vão pular das mãos e os olhos do rosto.

E de nada adiantará as minhas formiguinhas correrem atrás.
Os meus dedos e os meus olhos sabem se divertir na rua.

Os olhos espiam na esquina
e os dedos roem as unhas.

14 comentários:

  1. A alma do poeta
    é a chuva
    o orvalho
    ou o sol
    sobre ele.

    Salve, Domingos.

    ResponderExcluir
  2. Bravo!
    Bravco!
    Que delícia de versos, meu querido amigo, grande poeta!
    Você, para mim, é unico, neste quesito de transformar o invisível[ ao comum dos mortais ] em geniais poemas!
    Ah, como podem o guarda-chuva, a formiguinha, as botas, os dedos, as unhas, ser personagens de tamanha estatura?
    Só você, Domingos...
    Abraço apertado da
    Zélia

    ResponderExcluir
  3. todo aquele que já foi tocado pelo mister esquivo da palavra, carrega dentro de si a semente do desassossego, o aluvião de barro e verso, nem as formiguinhas salvam


    abraço

    ResponderExcluir
  4. Grande poeta e amigo José Carlos Brandão, a alma do poeta, sobretudo,
    é a vossa alma
    ...

    forte abraço.

    ResponderExcluir
  5. Elevada poetisa e amiga Zélia,
    sempre que tu me invades com a tua inesgotável doçura deixa-me lisonjeado, profundamente
    lisonjeado
    ...

    Carinhoso abraço.

    ResponderExcluir
  6. Irmão Assis,
    as nossas formiguinhas
    vivem mais fortes dentro
    do coração e, creio, elas
    sabem da eternidade do nosso
    desassossego
    ...

    Forte abraço.

    ResponderExcluir
  7. Percebo-te falando a ti mesmo, Domingos... sentado entre a loucura e a lucidez... com os olhos espiando esquinas e os dedos roendo as unhas...

    Tua voz me impressiona muito!

    Beijinho, poeta das formigas!

    ResponderExcluir
  8. Inquietação e um novo olhar sobre velhas coisas! Escrevemos porque não podemos parar.

    Muito bom!

    Feliz Páscoa!

    ResponderExcluir
  9. Enquanto se pensa em parar de escrever, já se está poetizando sobre isso.
    Depois que vira unha e carne (poeta e palavras), não há mais como separar, nem arrancando as unhas.

    Beijo.

    ResponderExcluir
  10. AnaLuz, é muito bom ter tão próximo tua companhia
    ...

    beijo carinhoso,
    sensível poetisa.

    ResponderExcluir
  11. Valéria, é justamente nesse olhar
    [encarando o desconhecido]
    que nos conhecemos
    melhor
    ...

    Obrigado,
    abraço carinhoso.

    ResponderExcluir
  12. Lara (Alma Sensível Que Levita)
    é a puríssima verdade

    e que a unha e a carne
    o poeta e as palavras
    prossigam
    ...

    Beijo carinhoso.

    ResponderExcluir
  13. Sufocado na bolha de sabão, bela alegoria.

    ResponderExcluir
  14. Vanessa, muitas vezes são as alegorias que nos revelam
    de maneira mais transparente
    ...

    Beijo carinhoso.

    ResponderExcluir