terça-feira, 26 de abril de 2011

orelha

Preciso ficar pensando
todos os instantes
que sou carne.

Senão viro seda, folha seca,
cachos de papai-noel e saio
voando pelas calçadas
e telhados.

Preciso não esquecer que sou carne.
Um pedaço de carne ambulante.

Caso contrário me transformo em pena de pombo.
Atravesso a janela. Invado a sala.
Pouso sobre o sofá.

Um pedaço de carne é um pedaço de carne.
O seu destino é pesado. Não é plumagem.

Preciso andar confiante.
Cheirar meu braço.
Morder meu braço.

Dizer para mim mesmo
antes que eu desmaie
que sou carne.

A todo instante eu não posso esquecer de repetir:
sou um pedaço de carne um pedaço de carne.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

lembranças do além

Fiz uma limpeza.
Uma geral no guarda-roupa:
cuecas velhas, perfumes vazios, jeans sem zíper.

O que me surpreendeu foi encontrar uma camiseta tua:
rosa, com um gatinho desenhado e lantejoulas coladas nele.

O que me assombrou ainda mais foi não lembrar de te ver usando
essa camiseta (quem esqueceria o sorriso de um gatinho desse)

Deve fazer muito tempo mesmo
que deixei de te amar.

domingo, 24 de abril de 2011

as rosas

Eu sou o único responsável pelas rosas plantadas no jardim.
Exceto aquela parte sombreada que foram os passarinhos.

Portanto antes que me culpe pelas rosas pálidas
procure observar bem de qual terreno
é a rosa que tem na mão.

Eu não pedi para que os passarinhos me ajudassem.
Mas eles são impossíveis quando voam rasante.

O mais engraçado é que eles quando voam assim
sorriem feito bobos e não conseguem segurar
as sementes que lhes escapam dos bicos.

Eu não sugeri aos passarinhos felicidade.
Por sinal até tentei explicar que rosas
precisam de solidão e silêncio.

Os passarinhos não ouvem ninguém.
Continuaram voando rasante e sorrindo.

Não pude mesmo impedir que sementes
caíssem e brotassem naquela parte fértil
em que todo passarinho adorar viver.

O jardim é imenso.
Vai de um reino a outro.
Os passarinhos no entanto
só se interessam por essa parte.

Eu próprio poderia ter plantado rosas naquele lugar.
Não o fiz. No íntimo eu sei que é dos passarinhos
a faixa de terra dentro do meu peito.

Nessa parte sombreada eu tenho medo de plantar o que seja.
Já os passarinhos adoram e voam sorrindo
largando todo tipo de semente.

Então não me culpe se por acaso tiver na mão uma rosa pálida,
fraca, triste. Os passarinhos nunca foram cuidadosos.
Não escolhem o que vão lançar ao solo.

Às vezes acertam e crescem vigorosos e surpreendentes girassóis.
As rosas são especiais [eu disse isso a eles] não podem
simplesmente ser plantadas aos bandos,
sob folia e gracejos.

As rosas precisam de muita solidão e silêncio
ou não crescem fortes, sadias e felizes.

E eles ouvem?
Os passarinhos não ouvem ninguém.

sábado, 23 de abril de 2011

idílio

Desejas ser minha macaquinha
e coçar as minhas costas?

Depois serei teu macaquinho
e coçarei as tuas.

Aqui no alto faz muito sol,
está tão quente: desçamos
ao jardim.

Sabe aquela orquídea
debaixo dela enterrei
o nosso banquete:

cupins, formigas, minhocas,
sementes de jambo, cascas
de amendoim.

Embora às vezes duvides,
sou um bom macaquinho.

Um gentleman,
delicado,
doce.

Perdoa-me pelas noites
em que eu sumia na floresta

louco, o rosto deformado,
ansioso e triste.

Olha, também guardei
um copinho de requeijão
cheio de refresco de uva.

Não faças essa cara, madame.
Sei que adoras tudo bem limpo.

A baixela eu mesmo lavei naquele córrego
aquele córrego do nosso primeiro beijo,
lembras?

Agora, senta-te.
Eis o guardanapo.

Meu deus, como és linda.
Poderia enfartar agora te olhando.

Após saciar tua fome de princesa
tenho uma surpresinha para ti.

Sabe aquele cogumelo na copa da castanheira?
Aquele que parece um anel e ficaste encantada.

Pois bem,
fecha os olhos,
dá-me tua mão.

Lindo, não?
(deu certinho no teu dedo)

Desejas ser para sempre minha macaquinha
na doença e na tristeza até o fim dos tempos?

Não chores, macaquinha
senão teu macaquinho
chora também.

E hoje está uma tarde tão linda
sem ninguém nas ruas.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

purificação

E se eu parasse de escrever versos
morreria sufocado dentro de uma bolinha de sabão
ou seria apenas um dedo suado encostado ao gatilho?

Se eu acabasse de vez com essa paranoia de escrever versos
seria curado dessa loucura de botas que engolem o sol da manhã?

A febre antes de atingir o pescoço
causa calafrios nos pés, eu sinto.

A chuva alimenta as telhas de lodo.
Noite chuvosa me lembra comprimidos.

Mas se eu parasse de escrever versos
teria perdido mesmo assim o guarda-chuva?

Adeus, homem casto.
Adeus, corvo.

Ultimamente quando cruzo praças
as flores dos canteiros reclamam:
"onde o guarda-chuva
a sua verdadeira alma?"

Elas não sabem que durante a noite
tu eras um homem casto rezando
para  que chovesse no dia seguinte.

E se chovia lá ias tu bicando
a terra fofa e cortejando
tudo que se chamasse
rosas ou gramíneas.

Se eu parasse definitivamente de escrever versos
ousaria dizer de maneira lúcida que o meu guarda-chuva
era um corvo quando chovia e um casto senhor no quarto?

Por essas e outras temo o dia em que à revelia
meus dedos vão pular das mãos e os olhos do rosto.

E de nada adiantará as minhas formiguinhas correrem atrás.
Os meus dedos e os meus olhos sabem se divertir na rua.

Os olhos espiam na esquina
e os dedos roem as unhas.

terça-feira, 19 de abril de 2011

borbulhas

Não se apavore com o seu sangue.
Não é você quem comanda o vazio.

Por mais que os seus músculos estiquem.
Seus gracejos e suas lágrimas apareçam.

Não pense que são seus os sonhos.
Você no máximo é uma bostinha
de pombo ou de borboleta.
Mas uma bostinha.

Esse riso ridículo é a promessa da angústia.
Esse meio caminho é uma trajetória insana.

Por mais que os óculos caiam sobre o seu longo nariz.
Os seus olhos se espantem com as fendas do espelho.

Não é seu o berro dentro do coração da sombra.
Não é sua sequer a sombra.

Você não passa de uma bostinha
de formiga ou de cisne.
Mas uma bostinha.

Não investigue os seus erros com esse cinismo.
O cínico é pássaro que não voa ou uma víbora
que sonha ser o dragão mais esperto da aldeia.

Não se assombre com o seu sangue.
Você é homem e não há como conter o fluxo.

Suponha que o dia da sua morte
não lhe cause entremecimento.

É um começo.
É um bom começo.

castiçais

Estou para conhecer alguém tão falastrão quanto o poeta.
Mesmo calado só olhando é um exímio usurpador.

A verdade é que leio pouco poesia.
Ou melhor, não leio.

Em dias macabros deixo um bom livro
debaixo do travesseiro e os fantasmas
fazem todo o resto: usando o cuspinho
da língua nos dedos, folheiam poemas,
escolhem os melhores, sussurram-me.

Às vezes sob o poder dos versos ando pela casa
sonâmbulo cantando odes e há quem muito goste:
as paredes.

A verdade é que não existe alguém tão enigmático quanto o poeta.
Se digo enigmático quero dizer uma espécie de coroinha do diabo.

Sabe que as palavras é um retrocesso diante do que veem no entanto
escrevem com uma fúria patética de cavalo picado por abelha africana.

Eu quase não leio poesia.
Conheço bem o ultraje dessa casta.

Levantam os olhos aos céus mas são os pés atolados no pântano
o que mais lhes oferece conforto, deleite, mistério, santidade e luz.

A verdade é que o poeta é um melindroso xamã desdentado.
Caso não chova ao seu desejo e hora torna-se insuportável.

Pensando até em queimar seus livros
e quebrar sua xícara contra a estante.

a psicologia dos mortos

A essência é tudo que tenho.
Tanto no corpo quanto
nos reflexos dele.

Não preciso plantar árvores
para sentir nas unhas o gosto da terra
tampouco escalar montanhas para que
as nuvens me beijem.

A essência das coisas que estão fora
está dentro de mim com a mesma
inconfundível magia.

Assim é a vida que me transborda
e deixa minha xícara sempre meia.

Assim é o dia que amanhece e traz na juba
o que o leão sacode ao vento: raios, chuva,
gramíneas, poeira, alguns insetos pregados.

Tudo que a vida nos oferece
é esse pacto turvo e diáfano
entre acreditar ou sorrir.

Posso então chamar esse tudo de essência.
E é todo o meu amor esse tudo que tenho.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

abril

Quando são pedro mija assim devagarinho sobre o telhado
é muito difícil eu levantar-me da cama abrir o olho direito
e manter o esquerdo acordado: preciso da ajuda
de um pregador de roupa
entre os cílios.

Enquanto há criatura nesse vasto mundo
que já pula sorridente feito golfinho.

Todos os músculos despertos.
Uma energia assustadora.

Sai de casa cantando bom dia
aos porteiros, cobradores,
passarinhos e árvores
de tal forma alegre

que penso em dar-lhe na cabeça D. Quixote
[um volumoso antigo] ou mesmo uma frigideira.

Adverti-lo: "ei, a vida não é valsa,
vão lhe roubar o relógio, a carteira
e o celular na esquina e vão comer
a sua menina e cuspir no seu cafezinho

e vão pregar-lhe nas costas chacotas
e vão depois convidá-lo pra beber umas
e no dia seguinte espalhar seus segredos"

Mas esse tipo de criatura não me ouve.
Eu que sou o louco e o sisudo.

Eu o preguiçoso e apático
sobretudo quando são pedro
mija assim devagarinho
sobre o telhado.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

fuligem

O meu cheiro é forte.
A minha língua é doce.

Mas é hora de fechar a porta
e passar três ferrolhos:

um na cabeça,
outro no coração
e o último no ventre.

As plantas na varanda
nunca foram minhas.

É triste despedir-se do vazio
enquanto o bermudão sorri
com seu zíper aberto.

O meu umbigo é um olho de sapo.
Vou-lhe pregar uma argola cirúrgica.

Sabe por que levanto pesos?
Para quebrar os dentes do meu chefe.

Tiveste ciúme supondo que era para encantar damas
ninfas e sacerdotisas. Não, meu bem, é mesmo para
esmurrar forte e não escapar nenhum dente brilhando
naquela cara estúpida do meu chefe que odeia poesia.

As plantas na varanda
nunca foram minhas.

Os meus livros são coxos inúteis
que sequer andam pela estante.

Precisam de fogo.
O quarto e a casa toda.

Já fechei a porta
e passei três ferrolhos.

domingo, 10 de abril de 2011

delirium de nascença

Sempre que faço a barba
a primeira gota de sangue
é sua [você  sabe]

e as bolinhas de sabão
que escapam do creme
são nossos filhos.

Você quando faz as axilas
pensa em poesia?

Não lavo o rosto.

Deixo secarem os cortes
acima dos lábios.

[alguns cílios caem
e colam feito band-aid]

Veja, o vento leva os nossos filhos.
Os que batem nos meus braços
sorriem e espocam.

Outros fazem amizade
com a saboneteira.

sábado, 9 de abril de 2011

Salomão

Acordei mordendo bochechas
de uma fome insana
o que surgir na frente
eu como: lagartixa,
andorinha,
iguana.

Foge donzela
ao castelo encantado
pois eis de volta
o corcunda aloprado

com os dentes trincados
a saliva e o olhar de louco
e os medalhões brilhando
na jaqueta de general.

Corre donzela,
andorinha,
lagartixa,
iguana.

Pois quando chove
o monstro é uma criança
sabe como enfeitiçar calçadas
criar reinos distantes em esquinas.

Foge, foge, foge donzela
hoje acordei mordendo bochechas.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

constatações

Se fosse tranquila a vida
o mar não teria ondas
nem dos céus
coriscos,

a minha jangada
um barquinho de papel

e a minha toalha
o focinho de zé colmeia
ou talvez o riso de um golfinho.

Mas a vida tem ressacas gigantescas
tem relâmpagos assustadores

a minha jangada é sempre engolida
por uma baleia que não permite
conversas tarde da noite
dentro do seu útero

[reclama ela que toda palavra
traz junto uma perturbação humana]

A vida não é serena.
O mar calmo é traiçoeiro.

E só agora fica claro que a minha toalha também
se mostra a mais aterrorizante sombra
estirada no varal do banheiro.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

minúcias

Essa tartaruguinha de pano é uma comédia:
sempre que viro o pescoço
vejo-a de toquinha azul.

O ventilador chega-lhe às orelhas.
Voa seu cachecol.

Ultimamente o vento da área de serviço
anda tímido, sem atitude. A tartaruguinha
de pano agradece: não precisa então
segurar a porta.

O clímax da minha filosofia
é quando reflito profundamente:

"será que em todas as casas
junto às portas dos quartos
há um encosto confeccionado
a pano, linha, adornos,
recheado de areia?"

O meu encosto é uma tartaruguinha de pano.
Essa foi boa o meu encosto.

Claro que é o encosto da porta do meu quarto.
Mas bem que poderia ser o meu.

Ando molenga,
apático, lânguido.

Uma tartaruguinha de pano e cachecol
por companhia não seria desagradável.

O problema é que ela não pode tomar banho.
Ensopa-se de maneira tal a pesar mais que uma nádega de elefante.

Parece que ela ouviu.
Ou foi o ventilador que lhe assoprou aos ouvidos?

Só não lhe dou um beijo agora
porque ela vive empoeirada.
É gripe na certa.

sala de espera

Aguardo o exame de vista.

Sei que enxergo nuvens
e flores no lugar de gente
e fantasmas pendurados
no varal do banheiro.
Mas nada grave.

Nuvens e flores lembram-me a infância.
O vento quando balança as camisas molhadas
os fantasmas fogem.

Escolherei uma armação cor das asas da minha andorinha.
Meio marrom, creme, café com leite.

Vou colar a foto do biquinho dela na lente.
Dormirei de óculos.

A minha andorinha é muito louca
certamente há de querer entrar nos meus olhos.

Dizem que são os olhos as janelas da alma.
Pra que janelas se o sol quando bate
é engolido pelas minhas botas?

Aguardo o exame de vista.

Sei quando lanço o olhar
contra a calçada eu queimo
a folha seca e a  lagartinha.

Não sou um facínora.
Mas sempre que lanço o olhar
contra a calçada eu queimo
uma folha seca e a lagartinha.

Talvez seja por isso
que ao ouvir os meus passos
descendo a escada o vento assobia
e correm apressadas todas as folhas secas
e todas as lagartinhas pro outro lado da rua.

E se for preciso uma cirurgia?
Um implante?

Bato o pé pelos olhinhos miúdos
da minha andorinha [sei que só vou
levar as córneas]

Meu Deus, como sou egoísta.
Não pensei na minha andorinha.

Por aí de galho em galho e fios de alta tensão
com os olhos enfaixados a lamentar o infortúnio
de haver se apaixonado por um poeta.

Por um poeta quase cego.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

o frêmito da cítara

é tarde, moço
muito tarde
para ser feliz

embarque agora
não pense em despedida

termine de beber seu cafezinho
e não se sujeite ao destino
ou à dúvida

é muito cedo, moço
para esquentar a cabeça
antes da morte e da calvície

suba no pégaso
a galope

as asas chiam
mas só espantam
moscas e tartarugas

as moscas chegam até as paredes
as tartarugas se envaidecem da paciência

e o que tem você, moço
contra moscas e tartarugas?

é tarde, seu moço
muito tarde para se opor

ao que queima as têmporas
ao que redime a sombra

não há equilíbrio
entre o tênue e o denso
o que existe mesmo é tempestade

de sal e de acre
de saliva e de soluços

mas o que tem, seu moço
ser perdido e vil
entre coisas
e ideias?

não há o que se celebre
nem o que se negue

a sua cabeça é louca
o seu sonho é um fardo

então não desça do lombo do pégaso
faz tempo [tanto tempo]
seu moço

que o vento da tempestade
riscou seu rosto apartou seus cílios
brincou de abelha dentro dos seus olhos

e o que vejo é sal e acre
é um aperto sem noção
é um desamparo

cujo espelho
é a coragem
cuja alma
é o corpo
cuja fonte
é o barro

é tarde, seu moço
para dividir os pulsos

para enxergar caolho
para andar reto
sendo coxo

só o seu pégaso
conhece o frio
do telhado

e sabe da distância
entre o homem
e as estrelas.

o tolo taciturno

Estou fadado ao vazio
pois tudo que me diverte
em seguida me atormenta

[e é triste a loucura
quando não há inocência]

Diriam, deixa de fingimento
moço sombrio e vive
a preciosidade
do instante.

Digo eu, estou fadado ao tédio
pois tudo que me completa
névoas que vazam
do que não conheço.

E de que adianta o apego ao invisível
se os anéis que se vão também levam
a pele dos dedos.

resquícios

Desde que tremeu o chão do quarto e as cerâmicas racharam
as formigas para chegarem até o banheiro dão uma volta
em torno da cama e deixam pelo cansaço migalhas
de bolacha e pão.

Outras fazem trampolim das correias do meu chinelão antigo.
O risco é quando não calculam bem o espaço e a velocidade
e acabam caindo no vaso sanitário.

Chovem despojos,
migalhas, sobras.

E eu não varro
um milímetro.

O que ainda faço é abaixar-me
e investigar qual a dieta delas.

Embora eu seja um poeta apático
não sou negligente com a saúde
das minhas formigas.

Por sinal, vejo agora uma fora do peso.
As antenas oleosas e as bochechas salientes.

Essa aí vem trazendo no dorso
uma fatia gigantesca de bolo fofo.

Sinto muito, menina.
Mas é o fim do caminho.

Engraçado a cara que elas fazem.
Parecem crianças quando lhes tiram chocolates da boca.

terça-feira, 5 de abril de 2011

o princípio do retorno

Ontem de noite o diabo visitou-me.
Ressaca é reconhecer a sua existência.

Na verdade só ele existe
e só existe o corpo enfadonho.

A ausência do diabo é a sublimação humana.
Nada de corpo nem nada de alma.

Ah, como sou tolo e pequeno
e como é dolorosa a eterna vigilância.

Amarrar os cadarços dos tênis sujos
de olho nas rachaduras do teto.

Vai que cai uma estrela.
Vai que cai um corvo.

domingo, 3 de abril de 2011

viveiro

A pele do meu peito esquerdo
é uma pele fácil de plantar flores.

O alfinete que atravessa sabe
que lá dentro um coração dorme.

Enquanto a pele do meu rosto
além do sol que bate e da chuva
é uma pele que engana o que sinto.

As rugas tremem.
O mármore trinca.

O meu coração dorme.
Dorme e não sonha.

As flores crescem sem o mínimo cuidado.
Chegam a misturar-se com as da toalha.

Chegam a criar pés e andam até a varanda.
Pras estrelas é um pulo.

sábado, 2 de abril de 2011

friagem

Quando chove assim feito essa tarde
as paredes ficam mais carentes.
Não me deixam sair do quarto.

Oferecem-me todo o tesouro:
teias de aranha,
patinhas de insetos.

Preciso explicar a elas que hoje é sábado
e que lá fora há estrelas e damas.

Mas o meu coração [um complexado]
prefere dormir aos  pés das paredes
a conhecer gente nova e louca.

O meu coração é quem manda.
Meto de volta na gavetinha o papel de carta.
Guardo na geladeira a última garrafa de vinho.

Deito-me aos pés das paredes
e penso no meu chinelão antigo:

feliz dele que tem por perto
o calor dos meus dedos.