domingo, 27 de fevereiro de 2011

o sinal

No lábio superior no canto direito
colado a uma cicatriz adquirida
por arte de criança astuta
tenho um sinal a cada dia
mais vivo e negro.

Sempre ao fazer a barba
curiosamente ocorre um desvio
da lâmina que sangra outra margem.

No meu tempo de trevas
[morto e falido do fígado
aos cabelos] era esse sinal
o meu único refúgio:

algo como um talismã
presságio de renascimento
oração silenciosa de combate.

Aprendi a crer no divino
contemplando esse sinal.

[sobretudo naquelas horas
em que divindade para meus olhos
representava somente fúria e fraqueza]

Agora que ando sobre as águas do banheiro
sinto o perfume das calçadas pelas asas das borboletas
alimento-me bem e ouço a paz reinar dentro dos sentidos

esse sinal parece-me ter mais vida:
move-se, curva-se, sorri.

Eu tenho um acima do lábio superior direito.
Outros têm uma pinta no braço.
[caravelas, lágrimas, folhas]

Ainda há aqueles que nem velhos e sambados
perceberam a longa existência de anjos
colados no corpo só esperando
um olhar atento.

manhã de domingo

Prefiro ficar com os passarinhos.
Acho que foi isso que sempre quis.

Enquanto o mundo enlouquece
[de maneira cínica] eu me encosto
ao parapeito da varanda e escolho
admirar as tolices as brandas tolices
dos passarinhos de galho em galho
conquistando uns os outros sem alarde.

O sol está bonito, bacana
até as nuvens o cortejam à distância

deixando-lhe espaço para seus raios
atravessarem pupilas, peles e vidraças.

Mas eu prefiro ficar com os passarinhos.

Ninguém é tão bobinho que acredite
que eles falam a minha língua
e sabem da minha companhia.

Claro que não.

Os passarinhos apenas permanecem
de galho em galho com suas tolices
suas brandas tolices

uns conquistando outros
sem fúria, dor e ciúmes.

Conquistam-se assim meio dengosos.
Meio preguiçosos. Meio o poeta hoje.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

pijama

Estou pensando em dormir agora
mas antes gostaria de lhe dizer

se porventura está envelhecendo
e a saudade só cresce

então cuide-se
do coração e do juízo

pois natural é que o dia
a cada dia que passe

pinte sua alma
mais jovem
e graciosa.

Amanhã não existe
mas é bom vez por outra
não esquecermos que faz parte
esse jogo essa farsa essa alegria.

dose de mercúrio

Uniram-se ao meu corpo
duas novas almas:

um par de óculos [esporte fino]
um guarda-chuva asas de corvo.

Os objetos vêm sem que eu peça.
Compre. Roube.Naturalmente vêm.

Espanta-me a grandeza deles
em volta da minha alma
me olhando

de tal forma que às vezes me questiono
quem de fato é o autor da peleja.

Amsterdã

Sempre pensei que louco
fossem aqueles que rasgavam dinheiro
comiam as próprias fezes
andavam despidos.

Agora tenho clara noção
que existe outra espécie:
os que escrevem versos
em demasia.

E pouco importa se os objetos são fictícios
se a lamúria é patética se o olhar é perdido.

os dois crepúsculos

Assim que vivo:
moendo carnes
e fatiando versos.

A poesia é um golpe de samurai
[a única forma de beber o sangue
é escrevendo]

laboratório

Não é a mesma coisa o poema
que surge do nada e ao vazio se derrama
comparado com aquele escrito em outro instante
por simples inércia do teu corpo não da tua alma.

E não foram os outros que te impuseram o engano.
Nem o passado que te roeu o fígado.

Esqueceste que o vento que sopra
some quando se desperta o olhar.

Difícil é pegar uma bolinha de sabão
com a janela aberta e mesmo assim
[idiota] deixaste para outro dia
o momento do milagre.

E não haverá outro folião, outro anjo, outra lagartixa,
outro tubo de barbear com a boca de golfinho
suspirando mil e tantos arco-íris.

devaneio

Três palmos acima do piso
desenhos amarelos e tristes
me olham.

Eu não retrocedo um milímetro
da minha vista e passamos assim
durante toda a tarde um flerte abstrato

entre as ideias de um autista,
e sabe-se lá os pensamentos
das cerâmicas do banheiro.

longo e eterno suspiro

Esperança é um bichinho verde
que se guarda na caixa de sapato.

Tem noite que se ouvem seus berros
e se veem seus tremores.

Os pesadelos da esperança
chegam ao ponto de fazer
mudarem de cor
as suas asas.

Não sei se tu já observaste uma esperança
de madrugada berrando e com o suor
descendo pelos olhos
(creio que lágrimas) .

É algo formidável: depois de todas as tormentas
o bichinho verde até esquece que um dia
foi o ilusório passado
de tanta gente.

Mas o que tem o poeta sábado
(logo um sábado) falando sobre
esperança, bichinho verde,
caixa de sapato.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Aquiles

As suas botas não as deixe no trabalho.
Ouviu, rapaz?

O cesto de roupa suja
(sem o peso das suas botas)
não é o mesmo.

Nunca mais cometa a heresia
de deixar por livre vontade
no armário ou no chão largado
o par de botas.

O seu par de botas
é como se fosse
o batom de Lara:

faz falta dentro da bolsinha da poetisa
quando ela quer escrever algum verso
no ombro de algum passarinho.

Traga sempre o seu par de botas
[na mochila nos seus pés presos às suas asas
mas não o largue nunca nunca mesmo
o seu par de botas é sagrado
ouviu, rapaz?]

os meus fantasmas prediletos

Um cara que tem muitas garotas
por que escreve versos?

Versos são para moços tristes
e desvalidos [mesmo que desenhem
no ateliê de Marcantonio
rostos maravilhosos]

Versos são para sujeitos contemplativos
feito Assis que ao olhar uma estrela
esquenta-se o seu sangue
de sertanejo.

Marcantonio e Assis são moços tristes
e desvalidos [ainda que leiam pura Filosofia
escrita nos cantos da sala de Zélia Guardiano]

Não entendo por que sujeitos que têm o cabelo
e a moto de Jorge Pimenta escrevem versos.

E Jorge Pimenta o faz fabuloso
(também é um moço triste
e desvalido)

A verdade é que: tivesse eu
o brilho de Jorge Pimenta
a magia de Marcantonio
e a doçura de Assis,

não escreveria versos
não escreveria versos.

Viveria no alto dos telhados
conversando e comendo gatas.

[daria menos trabalho]

bibelôs

Somos tão boçais e inúteis
(não serão nossos versos
a redenção do fingimento)

A flor desenhada na toalha
é mais sincera que as batidas
do meu coração.

Não podemos viver sem inimigos.
Um rosto para esbofetear.
Um pneu para enfiar-lhe pregos.

Devemos compartilhar a nossa idiotice.
A nossa sede desenfreada pelo olhar do outro.

A rachadura da cerâmica significa
muito mais que a saudade antiga

que por um esforço supremo
fiz tremer levemente alguns
e poucos cílios.

O tomate que mastigo
engana-me igualzinho
à maçã de ontem.

Tive que cuspir no guardanapo
o que sobra da esperança.

Maçã podre,
tomate podre
são detalhes
da língua.

Revelador é que o guardanapo estava no chão
solitário sendo levado pelo vento:

bastou-me o gosto horrível na boca
para que ele [o guardanapo]
fosse a tábua de salvação
de um tímido vômito.

Sequer consigo ficar de pé
mórbido e preguiçoso
com as costas voltadas
para o ventilador.

Não existe pufe
[agora é uma cadeira
de plástico preta
que geme]

não duram um mês
as suas pernas de alumínio.

elas

Apesar da minha voz mansa
e dos meus olhos miudinhos
não cheiro a rosas

que eu corra cem metros
que eu levante trinta quilos

logo desce meu suor forte
borbulha o sangue rubro.

Ainda estou por saber
o que as meninas
veem em mim

[refiro-me, é claro,
às minhas meninas
formigas]

elas estão sempre aos meus pés
ultimamente deram a sumir

já cheguei a levar a sério
o que alguns místicos disseram
sobre as formigas serem do diabo.

Só sendo mesmo tentações abissais
a me fazerem virar o pescoço agora

e admirar no depósito verde
várias delas saboreando

restos de banana,
rodelas de abacaxi,
maçã e mergulhando
no copo suco de uva.

Não entendo por que não engordam.
Decerto quando malho na academia
elas também levantam pesos
dentro das suas cavernas.

ossos espalhados pelo quarto

Dificilmente o poema está completo.
Os meus, pelo menos.

Sou forçado a vê-los sob a luz do dia
se ainda têm graça nas túnicas

ou se o ímpeto noturno
deu-lhes o amarelado
dos sonhos.

Os meus lençóis
lembram-me que a vida
é cada pedacinho deles.

Arrumo a cama
pensando nos versos.

Na falta de juízo
de toda madrugada

naquele facho de luz
que bate na parede
quando não chove.

Os meus versos oscilam.
Seguram-se no braço da cadeira.

Sabem que estou por perto
para se for o caso
um adeus final

[catarse,
eutanásia]

embora eu prefira
podar uma plantinha
debaixo do olhar grave
de um mestre japonês.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

o combate da bailarina

Não se preocupe
você viverá bem
sem os outros.

Aproveite e dê margem
aos que vivem dentro

do seu olhar perdido
da sua voz trêmula.

Não creia que os outros
estarão juntos e lúcidos

na sua hora de loucura
naquela hora de pleno vazio.

O mal dos outros
é que a maioria
não se ama
o bastante

para abrir as portas das gaiolas
deixarem os pássaros em paz.

Sempre têm desculpas
neuroses e medo de ser um deles
um pássaro que cruza nuvens
e é queimado por um raio
que ninguém vê.

Não se preocupe
no exato momento da sua dúvida

você ouvirá o vento limpando
os seus ouvidos

e com a vista baixa
você enfim saberá

por que os dedos dos seus pés
sempre foram longos, tortos,
deselegantes.

E o mais incrível
é que amanhã

os seus dedos serão iguais
aos dedos dos pés dos outros

muito lindos, sem um calo
e sem uma nódoa

[é que a luz perde a claridade
quando acordamos]

âmago

Cresci ouvindo falarem sobre maçã bichada.
Não tinha visto de perto.

Era apenas imaginação.
Fábula.

Há pouco com toda a pureza da realidade
mordi uma maçã bichada e senti na boca
o que é a tristeza da carne.

Agora quando meu filho
(furioso) cuspir um pedaço

direi para o pequeno que maçã só é bichada
se houver as duas: rosada por fora,
podre por dentro

e que a ilusão
é artifício do criador.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

uma orquídea no coração

não te falta amor:
todas as coisas
estão por perto

e sempre te dizem
o que nunca imaginas

então não roubes do outro
a moeda que é de César
o ramo que é de Cristo

nunca te faltou amor
nunca ficaram mudas
as coisas ao teu redor

é bom estar atento
diante de uma serpente
ou olhando uma formiga

talvez penses que são anjos
as coisas que se rebolam
para te chamar atenção

[e será que não são?]

mas nada importa
crença ou juízo perdido

o amor não te falta
é inesgotável o olhar
das coisas em tua volta.

Compostela

Antes que eu chegue à pia do banheiro
vislumbro na segunda cerâmica
um morro de poeira da porta podre

e no alto do varal as camisetas molhadas
já me dão um certo frio na espinha
imaginando suas lambidas
nas minhas costas.

Escovar os dentes
começa pelo caminho.

flerte

Guardo cada fio dentário que uso
dentro do bolso do bermudão
e da calça jeans

mais tarde
faço laços costuro
entre os dedos
uma rede

e vou pescar borboletas
no jardim da garagem.

Não há como elas escaparem
da teia úmida dos meus dentes.

tattoo

O marinheiro tem uma âncora tatuada no braço.
O mergulhador uma espécie de água-marinha.
O louco que salta do penhasco uma gaivota.

Fernando Pessoa talvez tivesse um chapéu.
Bukovski uma garrafa de uísque.

Faz tempo que penso
o que tatuar no braço.

Quem sabe a minha xícara
com as suas duas fissuras na borda
cujo traço se assemelha a um sorriso.

Sinceramente não sei bem
o que tatuar no meu braço.

A foto do meu filho
decerto mas receio
que ao crescer ele
considere patético.

Preciso tatuar alguma coisa
alguma coisa que ao morrer 
meu herdeiro venda a pele.

efeito sonoro

Vaidade maior
é estar só

tendo por companhia:
muriçocas, formigas
um par de botas
e uma xícara

ainda assim sorrir
trincar os dentes.

Não é loucura
mas debaixo da cama
tem um arco-íris

cruzando o teto
o braço do Amazonas

[e se eu te dissesse
meu coração toca trombone
e os meus pulmões piano?]

Não te assustes cortei o cabelo
barba feita e pelo quarto
uma onda de jazz.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

dormência

Quem disse que água não tem cabelos?
Ei-los agora voando sobre o asfalto
presente da chuva.

Cheguei a senti-los perfumados
o shampoo da primeira namorada.

Tive que fechar a janela.
Meus olhos choram fácil.

[os pingos da chuva
quando aumentam
trazem ciscos]

coral

Sinto dizer mas tu não és um gênio.
Ou coisa que o valha.

Estás mais para mediunidade
do que assombro filosófico.

Também (sossega)
não és um bosta.
Ou calhorda.

Teus olhos são gentis.
A tua voz embarga.

Bastando uma mulher linda
o dia lindo e a noite fria.

Encaixa os livros que vendeste
os outros que perdeste nos bares
sai um pouco do quarto
esquece o café.

Sinto dizer mas a poesia
é bem diferente do transe.

Não há nada que enlace
seus cachos nem espartilho
que lhe aperte as costelas

e mesmo assim Ela
vive por aí

aos olhos
de todo mundo

(contenta-se com um chiclete
ou uma moeda antiga)

Não é justo morrer pelos versos
nem matar tua mãe por um punhado
de coisas tolas.

Sinto dizer mas tu és um homem comum
às vezes enlouquece com as bochechas
gordas e rosadas que me lembram
Buda sentado bem tranquilão.

Mas (sossega) já te vi no inferno
e tinhas os olhos fundos
de um quase quase
quase morto.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

reflexo

Não me perguntes
o que quis dizer.

Por vezes até minhas botas
espantam-se com suas solas.

As nuvens não dormem.
Os grilos são surdos.

Mesmo em uma noite clara
há pontas de nuvens em volta
há pares de grilos atrás da porta.

Eu não sei por que as nuvens não dormem.
Mas quando criança me diziam que as nuvens
são asas de anjos dentro de travesseiros.

Os meus travesseiros também não dormem.
Estão cheios de asas de anjos ou de nuvens.

Sei lá, não me perguntes
o que eu quis dizer.

Por vezes até as paredes
horrorizam-se dos insetos.

o ser

todo santo dia planto trigo
e colho girassóis

nublado ou ardente
debaixo desse céu

toda louca noite
faço meu café
bebo absinto

converso com espantalhos
sou tocado pelo fogo
da mula sem cabeça

da varanda mortos caminham
indiferentes ao que pisam

estrelas no alto
bostinha de poodle na esquina

o milagre não é a luz elétrica
mas o tenro pavio da vela

meu quarto é a minha alma
a toalha pendurada no trinco

os pulmões ainda choram
o resto das lágrimas cinzas

morro mas não dou trégua
invado, masco, torço, sangro

e os versos pulam do além
pingam sobre as cerâmicas

nós sabemos que tudo é uma guerra
olhar para dentro, deixar o corpo
viver alinhado às esferas
por míseros segundos

[até que o trigo cresça,
vire girassóis]

infiltrações

Quantos pratos passaram por minhas mãos
e só agora eu vejo os traços abstratos,
rupestres, geométricos em torno
da circunferência da louça.

Quantas toalhas de mesa coloridas,
recortadas, de plástico e de pano
e só agora eu toco na textura
os olhos inebriados.

Quantos insetos acordaram,
espreguiçaram, bocejaram
recém-nascidos viçosos
e só agora eu sorrio
de volta.

Quantas cadeiras, sofás,
cômodas, cristais, ferro
tive diante da minha alma
e só agora eu percebo
a solidão dos objetos.

Quantos chinelos, tênis,
sapatos, jeans e casacos
perderam-se mofados pelo tempo
e eu sequer derramei uma lágrima.

As pessoas não mudam
(o cabelo que embraquece
os dentes que caem
não é definitivo)

os objetos, no entanto, sob o nosso desleixo
renascem todos os dias com uma nova face.

o corpo

Constato de fato que borboleta
voa alto atinge nuvens rosadas.

Há uma certa cumplicidade
entre bem-te-vis e gaviões
para que ela voe livre
até enroscar-se no céu

(e nem sei mais o que é borboleta
ou nuvens transfiguradas)

Deixo a janela aberta.

(vai que a borboleta e as nuvens queiram
descansar um pouco os tornozelos sobre
meus chinelões)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

ceia

um prego
[ainda que torto
e enferrujado]

no alto da parede
é inofensivo

menos para as moscas
que se perderam

e não sabem onde
a porta de saída:

uma a uma
caem feridas

sem olhos
sem asas.

[bebo meu leite
imaginando a tristeza
daquele que não reconhece
a sua própria cozinha]

letargia

puseram um armário com espelho sobre o cesto de roupa suja
não gosto de ser observado enquanto pratico crimes
amanhã prego essa coisa na parede

há espaço para todos: pasta dental,
escovas, shampoos exceto
o sabonete que continua
na sua saboneteira
(um barco verde)

gravidade de coisas abstratas

Não vês o pombo de rara espécie
papo branco e asas pretas
no fio de alta tensão?

E as borboletas de escamas vibrantes
finos pincéis lilases nas faces
de quem tomou ácido
também não vês?

Nem falarei do sol hoje
um duelo contra as nuvens
tentando refletir-se
no meu ombro (antes
da chuva)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

facho

Lavando os meus pés vi no meu braço
(ao lado da cicatriz da vacina)
uma bolinha transparente
da espuma do sabonete.

No momento em que vi
pensei (por outra voz)
que certamente
era poesia.

Não havia necessidade
do verso, da busca.

O olhar distante
(que permeia)

já me fazia crer em alguma coisa
bem maior que as palavras.

Mas guardei assim mesmo o instante
para depois resgatar o milagre.

Sei que o fogo alto e claro
ficou para trás.

A poesia é um constante passado.
Não me digam que se domina o tempo.
O poeta não é mágico e louco o suficiente.

Reles sujeito apenas escreve
como faz o vento castelos
sobre penhascos.

veleiro

O pneu de uma moto que estoura
confunde-se com o estampido
de uma escopeta

mas se o coração estiver tranquilo
pode assemelhar-se esse som
a um assobio de gaivota.

O susto é tão ilusório
quanto as batidas do peito.

Não há monstros atrás da porta.
Não é fantasma a sombra do pijama.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

barrinha de cereal

Faça uma vez na vida
o que sua mente deseja:

coma chocolate
e cole o papel
na vidraça.

Assobie para as formigas.
Encoste os olhos de perto.

Não escove os dentes.
Beba água e deixe a garrafa vazia
dentro da geladeira atrás do leite.

Volte à janela:
a vidraça manchada
e o papel caído no tapete.

As formigas estão lá
fazendo uma ponte
entre a varanda
e o quarto.

Beije cada uma
e não lhes dobre
as antenas.

(a sua barba rala
maltrata as meninas )

claridade

Levei tua mala até o último andar
ajudei na tua mudança depois sumiste
deixando na escadaria o brilho do teu riso
de aparelho ortodôntico.

Três dias seguidos prostrei-me no corredor.
Arriscava sorrateiro à porta do teu apartamento.

Depois no banquinho perto da capela.
Sempre de olho comprido pro teu bloco.
Pra tua garagem.

Bastava ouvir um ronco de carro
interfonava ao comparsa:
"é ela?"

Nunca eras tu.
Tu tens asas?

Quem ganhou com a tua vinda
foi o camarada porteiro:

vivo acampado no hall oferecendo-lhe
cafezinhos e sanduíches por informações
sigilosas a teu respeito.

Sei que és de uma ilha.
Sei que estás de passagem.

Esquento a cachola pensando
se não és de fato um sonho.

Dos sonhos eu fujo
(nem quero conversa
sequer piscadela de cílios)

O porteiro camarada
garantiu-me que és solteira.

Jurou-me de pés juntos
que não recebes visitas.

Pergunto-me se não és um feitiço
adorável presente de Iemanjá.

Búzios costurados em saia branca.
Guizos presos aos tornozelos.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

matadouro

Sim, tu ouvirás um blues
e ninguém te acordará.

Passarás a eternidade
ouvindo o giz cortante
da guitarra elétrica.

Dos céus nada de trombetas:
os anjos tocam gaita
e trombone.

Acordarás feito homem
(olhos negros e andado
de buldogue)

deixarás para sempre
morta no jardim
a saudade.

Serás gentil com as tuas vizinhas
comerás cada uma delas
sem tantos detalhes
pros amigos.

Mestres de plano algum
vão saber das tuas noites

dos teus tênis sujos
do teu casaco jeans.

Ouvirás o dia todo
coletâneas de blues.

Colherás algodão
às margens do Mississipi
(o teu violão de doze cordas
nas costas)

Serás homem de verdade
e amarás cada mulher
no altar (esquece
o vinho)

Assim, feliz e endiabrado
louco e santo, morrerás.

Morrerás, baby
feito homem

(calos nos dedos
e doce embriaguez
pelos olhos)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

ondulações

O vento da área de serviço
que toca e faz tremer o lençol da cama
lá fora agita os galhos das árvores
e não há diferença.

Esse vento que invade o quarto
também abraça as calçadas.

A única testemunha é o coração atento
dos pássaros que fecham os olhos
das minhas botas que se calam.

Não sei quantos pássaros suportam
o interlúdio entre o azul do céu
e o cinzento das nuvens

mas as minhas botas com os bicos
enterrados na lixeira
hão de viver mais tempo
que um papagaio de plástico.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

rinoceronte

Meus óculos fazem falta.
Imensa falta.

Tortura quando avisto um inseto imóvel
e não consigo acertar o alvo
lançando os olhos.

Embora eu tente até três vezes.
Na quarta o inseto sempre voa
(e meus olhos deixam marcas no teto)

Lembro-me de uma noite
em que amanheci caolho.

E pelo quarto desfilava uma espécie
com um olho a mais (pela solidão do olhar
calculei que era o meu) peguei-o na marra
entre chaves de braço
e mordidas.

(imagino o próximo assalto
agora a nova espécie
com meus óculos)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

happy hour

A verdade é que as mulheres estonteantes
têm em volta homens de puro sangue.

O meu sangue é impuro.
Só tenho aos meus pés
formigas e botas.

E ao lado delas mantenho
uma relação incestuosa
(uma vez que sou pai 
de tudo que calço
e admiro)

As mulheres que deus fez
deveriam olhar de perto

o moço com seu guarda-chuva
igual a um corvo bicando grama.

O meu guarda-chuva é um corvo bicando grama.
Isso pra mim é um milagre.

E o sol do entardecer
atrás da torre do casarão
é outro milagre.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

praça

Hoje choveu e não vou te dizer
que é a mesma coisa (olhos tenros
e coração apertado) ao contrário
nessa tarde gargalhei qual um louco
e os meus olhos sangraram de felicidade.

Já tenho a epígrafe
que tatuarei no braço.

São três versos simples.

Quando inscritos (modelo tribal)
tu então saberás a que distância
segue firme e forte o meu amor pela vida.

Hoje choveu e eu entendi que aos pombos
não há dia trágico se houver banquete na praça.

Com sensível elegância essas criaturinhas terríveis
bicavam o arroz, desfiavam a carne, guinchavam
(do fundo da marmita) o macarrão molhado.

Se porventura amanhã o sol abrir e lhes queime
o pescoço lá estarão eles com a mesma epifania.

Venho aprendendo muito por esse novo caminho:
a praça inundada ou com as gramíneas secas
os pombos não desejam companhia (apenas
alimento e água) .

A chuva é um descuido dos olhos da mulher.
O sol é a língua de um anjo rebelde.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

da janela

Para as galinhas
aurora e crepúsculo
é uma coisa só.

Com a diferença que
os cavalheiros galos
cantam logo cedinho

e no fim da tarde as cigarras
com as costelas quebradas
tocam um sax muito louco.

Mesmo que o vento assopre
as páginas do livro sagrado
mesmo que eu leia a parábola
nada deterá a lucidez do fogo:

O sangue dos pulmões cessa
as lágrimas dos olhos invertem caminho
o coração passa a banhar-se com o sal das estrelas.

Para as galinhas baratinhas francesas
é um ótimo petisco e água da chuva
um excelente vinho branco.

Aurora e crepúsculo
para elas têm em comum
unicamente um escuro azulado.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

olhos suspensos

Quem disse
que as minhas botas
são tristes?

Encostadas em uma cortina de vime
elas me dizem: "somos boas meninas"

Passam por elas (e somem)
as sombras das formigas.

Quem disse que os meus fantasmas são humanos?
Dormindo no teto há todos os tipos de insetos.

O único mal fazem para si próprios
quando têm pesadelos e despencam
ao fundo do abismo da minha boca aberta.

Nâo sei se ranger os dentes é meu passatempo predileto.
Nunca ninguém me acordou de madrugada
com algodão-doce e garapa de açúcar.

Os esquilos rangem mais que eu
mesmo assim jamais estão sozinhos.

[têm damas esquilas, senhoras esquilas,
mocinhas esquilas, ninfas esquilas,
colegas de trabalho esquilas,
vizinhas esquilas:

paraíso de esquilas
por apenas
um punhado
de nozes]

academia

Se tu estiveres vendo um corpo
colado numa pele de tigresa albina

então olha olha agora
até que as tuas retinas
tornem-se os fios intercalados
do tecido a tua frente:

não leves para o quarto
os rebolados da estranha

que te fez salivar feito asno
postura enlouquecida
pelos campos.

(o momento foge
da mesma forma
que escrevemos)

breve entardecer

Dizem que o poeta é um fingidor
porque é inacreditável
a sua tolice humana
enquanto homem comum:

ninguém de perto ou de longe
reconheceria a sua sublimação

os seus versos torrenciais
o seu combate metafísico
o seu olhar translúcido
e as suas asas de fogo

vendo-o gargalhando
contando anedotas fúteis

sendo mais comum e tolo
do que os homens
comuns e tolos.

Pergunto-me depois
(ausente do espantalho)

onde se mete o ente
que voa e rasga nuvens
em qual cidade encantada
esconde-se e morre.

O poeta distante de si
em companhia de outros
ou será um cínico terrível
ou um deus apaixonado
por seus filhos.

Nesse motim de almas
ganha-se a mortalidade
o insignificante lhe morde
fica na sua pele a honra
do humano (e a sua
imensa fraqueza)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

amanhã

Durma comigo,
só comigo
e deus.

Quando acordar
estarei na batalha
do dia

vendo coisas simples,
colhendo flores,
sentindo raiva
de pessoas

pois o animal
em meu coração é livre:

prefiro a quase morte
diária e momentânea

ao equívoco vislumbre
de supor eterno
o que é posse.

Faço questão de amar as pessoas
com todas as minhas armas à vista.

Se alguma delas morrer por minhas mãos
também poderei alegar que estas
há pouco plantaram rosas
e salvaram vidas.

Portanto, durma bem
e saiba que os meus versos
além de mim dançam e se inscrevem
noutras terras, noutros céus e noutros túmulos

e todas as batalhas
e toda a falta de coragem

aliviam o peso e a carga
do que sou enlouquecido

e do que penso
embriagado de clareza.

os dentes dos pré-socráticos

A dra. Renata ordenou-me
(com o seu sorriso doutro mundo)

caso eu comesse goiabas
nada de dentadas infames

(também aconselhável
que eu fatiasse maçãs)

Pensei "meu deus, os meus dentes
como são sensíveis"

Dra. Renata é uma alma feliz.
(e que deus proteja
os seus dentes
de marfim )

Eu (agradecido) seguirei suas recomendações
com o olhar perdido e a faca na mão:
fatiando frutas,
filosofando.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

dedos de cabelo cortado

Dessa vez não houve como fugirem.
A nova tesourinha até parecia uma guilhotina.

E sem protestos (resignadas à afiada lâmina)
todas as unhas dos pés e das mãos
tombaram sobre a cadeira da varanda
e sobre os jarros.

A brisa (aproveitando-se da vidraça
entreaberta) de leve juntava alguns nacos
daquelas outrora gigantescas unhas de monstro.

Só agora alguns dedos me confessam
que há tempos existe cumplicidade
entre o corte e a unha.

E não importa
se tesourinha
de freira ou ninfa.

(penso comigo como deve ser triste
um cãozinho sem sofá e sem parede)

cantares

O poema estará pronto
pela manhã quando
os gatos tiverem
descido do telhado

minhas botas pegado sereno
minhas cuecas ainda molhadas

esquecido dentro do bolso
do bermudão (meu pijama)

ao abrir os olhos
será breve o encanto

afinal os poemas são risos de morte
distantes de qualquer previsão
sobre felicidade;

terei forças para meter a mão direita
dentro do bolso e com a esquerda
(trêmula) erguer à vista a face
das palavras

não será diferente de ontem
nem dos últimos dias:

poemas,
bermudão,
pijama.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

neurose

Expulso meu filho do quarto,
tiro o jazz da vitrola:

é hora do silêncio
arrancar-me
as penas.

Calado eu contemplo
as minhas escamas
que pedem água.

Água que tem vive no mar.
O mar está sombrio nesse instante.

Só caem estrelas tristes
a queimarem os desejos
dos pescadores.

Nada de peixes.

(nem mesmo um cavalo-marinho
com os olhinhos de Neruda)

Pescador faminto não escreve
(o seu cardume dança debaixo do barco)

Difícil escolha: ou furar a jangada
e afogar-se com um peixe na boca

ou se esquecer do tempo
e admirar as estrelas tristes
desabarem.

aventuras

Aquele velhinho lançado à sorte
andando pela calçada (calvário)

parece ter ao lado
um anjo que lhe cuida

e o que dizer
daquele depenado bebê
no seu berço de espuma
alheio ao tempo
e às esferas?

Na verdade deus é o anjo da velhice
(e da solidão dos recém-nascidos)

Nós poetas ao cruzarmos o corredor escuro
ou dobrarmos a esquina deserta:
estamos por nossa conta
e dúvida.

Oremos para que o tombo
não seja cruel com o velho
tampouco a serpente
chegue à fronha
do pequeno.

episódio

doce de leite
na taça de sorvete
com bolachinhas
de maizena

faz a alma
despregar-se
do corpo

fugir pelo corredor
até o quarto

roubando
o deleite
dos mortais
diabéticos

e não há quem convença
à feliz alma que o corpo
tem a prerrogativa
dos sentidos

em êxtase
(debaixo da cama)

a alma reparte
com as formiguinhas
o último dedo melado
da taça de sorvete:

já não se pode confiar em almas
como antigamente.

filho

O meu amor por ti é o que alimenta os pássaros.
Que os torna velozes e fortes.

(felicidade pra eles enquanto não houver um fio
de alta tensão no meio do caminho)

O meu amor por ti é aquele que faz acordar um mamífero
ainda sonolento com frio sob uma nevasca para ver o céu.

Dizem que logo abre o tempo.
Mas se chover no lugar do eclipse
façamos uma fogueira.

O meu amor por ti é toda uma vida em volta do relógio
cujos ponteiros não têm fôlego suficiente
para alcançar o espanto.

Nem eu corro o bastante.
Nem há asas coladas nas minhas corcundas.

O meu amor por ti é explicado quando tenho pesadelos.
(o olhar que tu farias caindo da janela
o meu enlouquecido se não segurasse
as tuas mãos)

Mas tu me acordas
dando golpes de judô.

Derrubando o ventilador.
Gargalhando feito passarinho.

Se algum dia houver um fio de alta tensão no meio do teu caminho
estarei pronto para te ensinar a andar sobre o perigo.

Seremos então dois a agradecer
pelo eclipse que veio
e pela fogueira
que fizemos.

imperiosidade

As unhas têm vontade própria:
não há como domesticá-las
se quebram tesouras.

Não sei o que pretendem
(crescer até as nuvens?)

mas vi de perto
a tesourinha falecer
lânguida em silêncio

ao primeiro toque
na capa do dedão.

Nada foi cortado.
Nem uma pequena casca.

Apenas encostada
a tesourinha rompeu-se
(como se mandinga
dos dedos)

Cheguei a ouvir
um risinho irônico
do mindinho

(feito mortal
que escapa
da morte)

Guardei a tesourinha no estojo
ciente da desonra do objeto.

(um velho elefante
pede desculpas
quando parte)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Chicago

Quem sentenciou que para ouvir jazz
necessariamente tem de ter um copo
de uísque na mão?

Deito-me na minha cama box solteiro
e me bastam o ventilador limpo
e os travesseiros altos.

Depois consigo me levantar bem
sem tropeçar nem nos brinquedos
do meu filho nem nos cadarços soltos
da jovem formiguinha que joga tênis.

afazeres

Se molhas o teu chinelão
(e não querias isso)

justamente na parte
onde pousam os dedos

em seguida apressado
enxugas com o calcanhar

para tua infelicidade
terás os dois extremos
do teu chinelão úmidos.

A poesia (digamos,
o pensamento vivo)

também está presente
naquele gesto jovial
da mocinha no banco
do carro da mãe:

sem saber (ou convicta
de ser alvo de observação)
penteava as pontas dos cachos
com uma pequena escova bege.

O poeta do ônibus vê graça e através dela
se transpõe à outra realidade (digamos,
uma fonte borbulhante) .

Assim (nem mais nem menos
sem pôr e sem vazar)

ao ponto ideal da loucura branda
a vida renasce a quem atento não duvida

das reviravoltas do aviãozinho de papel
nem do meteoro em forma de estrela.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

enquanto dormes

Tua camisola azul
é um lindo vestido
de fada.

As tuas sandálias brancas
dizem-me coisas debaixo
da cômoda.

Tu não ouves porque estás dormindo
enlouquecida tentando me jogar fora
da cama e dos teus sonhos.

Podes rosnar e rasgar estrelas ao meio
mas logo estarei te fazendo companhia
ao teu lado direito te beijando a nuca.

Façamos barulho à vontade
os nossos filhos ainda
não nasceram.

os dedos de um gênio

Bach não alivia essa dorzinha de cabeça.
O sol hoje fez promessa.

Pagou todos os pecados da noite
sobre meus ombros.

O meu trabalho de ogro
é de feiticeiro:

com um escudo
e uma lança
às montanhas

(depois desço
aos pântanos)

Bach é uma ótima aspirina.
(vai passando levemente
minha dorzinha de cabeça)

Bach teve a fronte latejando
ao compor suas sonatas?

(se deixá-lo tocando a noite toda
minhas botas sonâmbulas sobem
ao telhado e paqueram estrelas)

dizeres

Novidades:
comecei o tratamento dentário.

Sabe os dentes da frente?
(aquele de esquilo
e o outro de cavalo)

Permanecem na mesma arcada.
Agora branquinhos.

Dra. Renata pediu-me
que parasse de beber tanto
suco de uva também café.

Suco de uva
troco por beterraba.

Mas o meu cafezinho
é um vício (os viciados sabem
como é perder uma alma
sem beber os infindáveis
cafezinhos)

As cirurgiãs-dentistas de hoje em dia
tão jovens, educadas e sensuais
(ai, meu pai, que faço?)

Não consigo abrir a boca
vendo os olhos da doutora

sem que me tremam as gengivas
sem me engasgar com o coração.

Isso é outro assunto.
Esquece.

Quando tu fores limpar o teclado
não o faças com papel higiênico:
despedaça todo (a gente assopra
e acaba cuspindo as letras)

Outra coisa:
Sabe a orquídea enganosa?
Troquei por um cacto florido.

Quem agora se incomoda
(e me xinga) é o beija-flor

ultimamente usa minhas botas
diz ele que espinho de cacto
infecciona sua patinha de lã.

Se tu não mudares o olhar sobre
as coisas e as pessoas
tudo será cinza.

Muda teu olhar uma vez
(não te acostumes à cegueira)

Nada faças pelo outro
se não houver mansidão.

E mansidão se planta e pode dar em cacto florido.
(preciso dizer isso ao meu beija-flor)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

trâmites mágicos

Desconcertante o balé da pequena aranha
do teto à soleira da porta

sem rede de proteção
sem plateia.

A luz que passa pela janela do banheiro
ínfima réstia sequer clareia
seu dorso cristalino.

Ela assobia e calcula
a próxima acrobacia

(legítima praticante
de le parkour)

de pés juntos
alcança o cabide
ao mesmo impulso
chega à saboneteira.

Por último,
a pequena aranha
sobe na corda de nylon

(entre pregadores
de roupa)

cruza as patinhas,
entra em transe profundo.

Arrisco-lhe um beijo,
ela se espanta:

"chispa, poeta
ou vais perder a hora
da dentista"

corcéis

Percebo agora
(parece milagre)

os sons que ouço
não vêm de fora

mas de uma certa ressonância
tensa e suave do fundo do peito

(o coração é o lugar certo
para essas descobertas)

e quanto mais me deparo
com o silêncio algo desperta
talvez minha alma exista apenas
quando vejo o corpo e cora a carne.

Os sons que ouço
dessa caverna secreta
é a mesma coisa
(pressinto)

que um peixe ao acordar
um arco-íris riscando-lhe
as escamas

(ele ou enlouquece
ou pensa que é santo) .

A morte não parte do outro lado
a galopes e foice à mostra:
a morte é sutil e surda.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

formigas

Apregoa-se o sensível olfato do cachorro.
Esquecem-se das formigas.

Sabe-se lá das quantas
surgem sei lá de onde

(basta virar o pescoço
o copo de vidro
cheio delas)

Ao cão farejador ensinam
o que é cocaína e o que é café.

Com as formigas não há esse truque.
Elas simplesmente cheiram bem.

Sabem logo ao encostarem seus focinhos
o que é suco de uva e o que é malte.

Além do que os cães ganham docinhos
(alguns até medalhas) enquanto formigas
morrem de medo do pano de cozinha
ou de um repentino sopro de vento.

Fala-se muito da boa alma dos cachorros
sobretudo da fidelidade ao seu dono.

As formigas são mais companheiras
e não nos lambem o rosto
nem há possibilidade
de zoofilia.

Apenas não tentem afastá-las
das migalhas da mesa
ou sobejo do prato

(além de focinho
elas têm dentes)

Contra a raiva
o cão é vacinado.

Agora difícil mesmo
é segurar uma formiga
para que lhe seja aplicada
uma dose no quadril.

As formigas têm manha.
Conhecem os segredos humanos.

Um piscar de olhos,
fogem.

Mas retornam.

(as formigas torcem somente
os tornozelos quando correm)

diabete

No nosso primeiro encontro
talvez penses que sou louco

e vais jogar pedra
gravetos, bolinhas
de gude

tentando me fazer despencar
do campanário.

Mas é o nosso primeiro encontro.
Tenho de cantar feito Gonzaguinha.

(com poesia
e febre)

Cantar é a minha salvação
na torre da igreja

quase cego do crepúsculo
quase bêbado do vinho
do padre.

Mas é o nosso primeiro encontro.
Tenho de cantar feito Gonzaguinha.

(a voz rouca,
os pulmões estourando
aos poucos)

terça-feira

Não importa o que
ou quem mas ame

o seu açucareiro
e a colherinha

a menina da cantina
e a sua vizinha

as suas botas loucas
e a virgem da praça

os seus chinelões tristes
e a evangélica

a doceira, a frentista,
a senhora que faz tapioca
a outra da esquina do cafezinho.

Não interessa idade
se coisas ou gente
ame

o seu guarda-roupa esquisitão
a cama box solteiro

a colega de trabalho,
a chefe, a faxineira
todas as donas
de casa

não se preocupe
com as rugas da pele
ou com a poeira
dos móveis
ame

desesperado, faminto
cheio de vitalidade

acaricie as dobras
da tolha de banho

afague as juntas
do lençol adormecido

meta a mão por dentro
dos travesseiros tímidos
ame

febril, olhos lacrimosos
beije os lábios das pessoas
cheire as axilas das amantes
faça as unhas do seu amor

nem ligue o tempo
o clima (calor, frio)

ame mais que tudo
a alma das criaturas
da mesma forma
a alma dos objetos

ame, meu caro
ame até o fim
dos tempos

e mesmo debaixo da terra
ame descaradamente
as minhocas

ou se cremado
ame o vento

(mas ame de novo
até a vida seguinte)