domingo, 30 de janeiro de 2011

aprendiz

Do quarto não há muito o que fazer senão observar
o bolo crescendo as fatias queimando o leite subindo.

É um excelente teste para  minha mente
(franzo o cenho, fecho os olhos)
consigo sem mover sandálias

apagar o fogo do fogão
abaixar a torneirinha do gás

de lambuja ainda trago
um copo d'água.

As formiguinhas sacodem os ombros
e voam até a cozinha (beliscam o bolo
queimam-se nas torradas
bebem o leite todo)

Na volta me olham com desprezo
zombam da minha ingenuidade.

o pequeno Vinicius

Eu tenho outra alma
sangue do meu sangue
carne da minha carne

ao meu lado agora brincando
de batalha medieval.

A energia é a mesma
quando eu criança
falava sozinho

recebia de bom grado
influência do tempo
(paredes e tetos
invernosos)

e ouvia os soldadinhos
os monstros, os cavalos alados

sempre disposto a romper dias
até que as fábulas cansassem
o rei.

O meu filho de nove anos
é o milagre de todo final
de semana (ao ouvi-lo
meu coração pula
e aquela alma
atada ao corpo
resguarda-se
feliz)

Só falta uma borboleta
(ou uma mariposa
ou uma cigarra)

entrar pela porta,
dar boa tarde,
abancar-se
sobre a cama

e mastigar batatinhas
com os olhos festivos.

Quando eu estiver bem velhinho
sei absolutamente que meu filho
também terá ao lado outra alma

sangue do sangue dele
carne da carne dele.

Oxalá ele perceba
que a eternidade mágica
não vive em nossa alma

mas dentro da alma
de quem amamos.

sábado, 29 de janeiro de 2011

bilhete

Quando eu ajeitar os dentes
te procuro.

Por enquanto
permaneço
no quarto

cortejando meus insetos
e as minhas botas.

(ultimamente encharcadas
com pneumonia) .

Se tu fechares os olhos
juro que te darei uma rosa
e um selinho nos lábios.

Não chores se eu estiver longe
tampouco me imagines
em um sonho.

Os meus dentes amarelos
e quebradiços é sinal
do meu amor.

No inverno é muito ópio e chocolate.
Após o inverno termino o tratamento.

Mudando de assunto,
farei uma tatuagem
no braço esquerdo
no lugar da vacina.

No dia certo
verás.

Mas te adianto:
é um coração
em chamas.

Ou um capacete
de espartano.

mar

Por ter consciência
que não te levarei
para sempre

nem ao céu
nem ao inferno

(existem de fato
dentro de nós)

então procuro
não desejar tanto
a tua presença.

Perdi a conta
foram muitos dias
de loucura e solidão
imaginando que o teu corpo
(cada detalhe físico)

faria de mim um sujeito de sorte
ao relevo das montanhas
à margem do lago secreto

mas é tão natural
(enquanto tolos)
o engano.

Darei a ti a paz que desejaste. 
Embora eu me canse dessa delicadeza.

Foram tantas noites
de euforia e vazio
não me há outra porta
senão a do quarto

e o vento e a festa
e as vozes dos vizinhos

sei agora
também passam

(deixando fuligem
nas roupas do varal) .

semente de maçã

Cansei da minha cegueira
e nada fiz de especial.

Acordei um dia,
lavei bem o rosto

e disse pro espelho:
"envelheci, meu camarada!"

O céu lançou-se
contra a janela do banheiro,

as paredes tremeram
e o que havia de cão solto
prendi.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

o teu manjar prometido

Deus confiável é aquele
todos os dias empurra-te
para fora da jaula.

Aprender o caminho de volta
basta-te o primeiro passo.

Mas tens que andar firme,
sadio e forte.

Porque tu és pequeno
e qualquer nuvem
acima da tua cabeça
pode te ferir de morte.

Deus único e verdadeiro
revela-se  nem na dor
nem na alegria

senão naquele momento
em que tu agradeces
por durar tanta vida
o teu nascimento.

E se vier a tristeza
(cedo ou tarde)

lembra-te que és grande
embora o céu cinzento
acima da tua cabeça
diga o contrário.

a floresta silenciosa

Os olhos dizem tudo.
Não te preocupes com o resto.

Os olhos sorriem mais que a boca.
Os olhos dançam mais que as tuas sapatilhas.

De nada mesmo adianta
um batom e um implante
se os teus olhos tristes.

O teu rebolado
os teus rodopios
totalmente sem graça
se os teus olhos frios.

Primeiro cuida
dos teus olhos:

enxerga-os
com os olhos
de dentro.

Verás teus segredos
teus medos e sustos
a um palmo
do teu coração.

Zela por teu coração
para que a tua alma
esteja preparada

(e ao perceberes o simples
entenderás o que é felicidade)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

feito mel

Ao chupar uma laranja
eu penso no seu sorriso.

Você corta em quatro pedaços
uma laranja ou descasca?

Comigo acontece às vezes respingarem
dentro dos meus olhos as lágrimas dela.

As lágrimas da laranja
(quando doce) fazem-me
sorrir.

Verdade.

Eu sorrio sempre que corto uma laranja
ao meio. Depois dou mais um corte

(é nesse momento
que sinto a laranja chorar
dentro dos meus olhos)

Deixo então descer a lágrima da laranja
até os meus lábios.

Você gosta de chupar laranja
ávida ou à toa?

Invariavelmente
chupo laranja
apressado.

(pensando
em algum
poema)

Penso em você
também gripado.

Diga-me: a sua gripe
é demasiada febril
ou apenas breve
suspiro?

pescaria doutros olhos

Sequer posso tomar banho sossegado
vejo um espião esquiva à janela
do banheiro.

Ora um passarinho,
agora uma mariposa.

O passarinho bicava a madeira podre.
Banqueteava-se das baratinhas francesas.

A mariposa ao contrário
totalmente inerte dorme
(cansada da noite
de pesadelos)

É o preço que se paga
quando se tem uma alma
já completo corpo

(tendões
que são fitas
entrelaçando
os cachos
do coração)

Ao passarinho há nuvens
para apedrejá-lo
e dar-lhe
conforto.

Causa-me inquietação a mariposa
acordando molhada da espuma
do meu sabonete.

(talvez pense
de propósito)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

o rubor do padre

Deus me livre as pernas incharem
faltar-me ar no último degrau
(não há paredes fora
do meu quarto)

como beijaria
os meus insetos?

Na praça os pombos passeiam
de tênis nike vermelho

e não têm medo
da minha presença.

Eles (o cinismo do mundo)
nem imaginam que o aneurisma
pode explodir justamente na hora
em que eu cruzar o canteiro.

Pelo resto da vida
esses pombos teriam crises

sobretudo ao lembrarem de um jovem grisalho
com o seu guarda-chuva perneta
apaixonado pelas gramíneas.

Não tem tarde que eu não enfie
o nariz do meu guarda-chuva
contra o capim verdejante.

Chego a sentir os espasmos
do meu trêmulo guarda-chuva
como também ouço suspiros
do fundo da terra.

(assumo minha culpa
por essa paixão sem cabimento)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Urgência

Preciso fazer umas compras.
As minhas cuecas todas
apertadas.

Meus ovinhos carecem respirar.
Ainda guardo dentro deles
uma porção de filhos.

Serei pai de três
antes de morrer.

Aliás, quando eu morrer
sentar morada a sete palmos

hei de conhecer gentis minhocas
e engravidarei cada uma delas
com o resto de terra
que levarei das botas.

Eu sonhei sendo
pai novamente.

Serei pai outra vez
(nem que seja
engravidando
minhocas)

Renascimento

Jogue os seus remédios ao vaso sanitário.
Toda aquela porcaria não lhe serve mais.

Eu lhe morderei o pescoço
e lhe darei sangue novo.

Você vai rir, chorar
enlouquecer de verdade.

Sem pena do bichinho doméstico.
Sem tanto padecer pela morte da cadelinha.

Ela já estava idosa,
quase centenária (só não andava de bengala
porque é difícil ajustar um cajado
a quem tem quatro patas
e um focinho)

Dê as contas do seu psicólogo.
Abrace-o, beije-o.

Mas dê-lhe
o último cheque.

Venha ao meu quarto
(um consultório doutro mundo)

e traga-me apenas o seu pescoço à mostra.
Branco, lânguido, com finos caracóis na nuca.

Morderei a belezinha.
Darei ao seu coração sangue puro.

Você vai pular do chão.
Não vai querer mais parar de sambar.

Eu lhe ensinarei a amar as coisas belas
com imensa e inesgotável devoção.

Começando por seu pescoço.
Depois seu umbigo.

Aproxime-se,
darei apenas um beijo
(em seguida uma mordida)

O seu coração (feito uma tampa
de champanhe) baterá no teto.

Venha ao meu quarto
(consultório doutro mundo)

sente-se na minha cama box solteiro
deixe-me ver seu pescoço (preciosidade)

será apenas um beijo e uma mordida
para que você nunca mais seja chamada
de louca, estérica, tola, coisinha sensível.

Eu lhe darei um sangue quente.
Eu lhe darei o meu sangue.

E você rasgará sua roupa
debaixo do chuveiro
sorrindo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

revelações

As muriçocas sugam meu sangue
as estrelas brilham

talvez o guarda-roupa
de braços cruzados
amanhã te ofereça
um segredo

(trata-se
da tua camiseta branca
agora me serve
como lenço)

sempre que choro
sempre que tenho crises
inalo tua morfina

não é nada bom isso:
mas quem escreve
deseja felicidade?

arbusto

O único fim do poema
(mesmo que se diga o contrário)

é a morte em si mesmo
independente do olhar
do outro.

Ninguém saberá mais do invisível
que a própria sombra.

O mergulho já é cego
por quem escreve
imagina então lucidez
por quem se atreve
tão somente
pela leitura.

O poema escrito
pode ser reformulado
engessado, empalhado
queimado, apagado
jogado em qualquer tipo
de lixeira mas nunca
será uma cortina transparente
ao simples devaneio e ciência
de quem se debruça sobre ele.

Escrevo o poema
para sua morte
definitiva.

E me dou ao luxo
(sob minha neurose)

de acreditar em algo
eterno feito um seixo
no fundo do mar.

sábado, 22 de janeiro de 2011

sabbath

Deixei as más companhias.
Agora só ando ao lado das andorinhas.

O problema é que às vezes
elas se esquecem
das minhas asas
de fogo

(acabam caindo dos céus
vítimas de infarto fulminante)

e mesmo que eu tente
ressuscitá-las respiração
boca a bico

elas não dão sinal de vida
permanecem estiradas
imóveis, com um risinho
de puro deleite
nos lábios sempre
molhados de chuva
e de orvalho.

Chego a entrar em depressão,
tranco-me no quarto,
passo dias sem beber
meu cafezinho.

Mas deus é pai
muito bom comigo

logo adentra pela janela
do banheiro e pelo vão
da área de serviço
outra louca andorinha

saltitante, feliz
me chamando pra rua.


sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

a descoberta

Não sou a ideia do que suponho
tampouco a cruz do pensamento.

Posso falar pelo meu corpo
uma vez que a dor é minha.

Embora ultimamente
a dor me venha
quando durmo.

Então penso "é sonho"
e volto a dormir calado

(só despertando na hora
em que a porta se abre
sozinha e o vento
da área de serviço
puxa meus cabelos)

A morte é a liberdade
mas hoje de tarde

vendo um pombo
de pescoço flácido
no meio da calçada

não achei graça
nem virtude.

Quisera pudesse
tocar de leve
sua cabeça

levá-lo aos pés do velho
que ontem pela manhã
dava-lhe migalhas
de sonhos distantes.

Ah, foi isso.
Foi isso que matou o pombo.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

descontrole

por favor,
não me perdoes
da minha loucura

é com ela
que ponho o pequeno
para dormir e quando
acordo é ao lado dela
que faço o café

faz frio mas tenho
que ir ao trampo
o guarda-chuva
riscando os canteiros
da praça tristonha

tu esqueceste
de derramar lágrimas
guardaste teus cílios
aos pés dos canaviais
queimaste a saudade

vê como estou
cego

grita à vontade
contra os males
que meu olhar
te faz

como se ainda estivesses
no alto do telhado
pegando sereno

não me perdoes
da minha loucura
ela é serelepe
igual a todo
poeta

e por falar em poeta
dize-me se acreditas
de fato verdadeiramente

nessa coisa que nos lança
ao abismo e nos traz de volta
com a bochecha furada
pelo anzol do tempo

ai ai ai
de quem é atento
observa coisa demais
dentro do aquário

então fiquemos
um pouco distraídos
para que os insetos
pulem do guarda-roupa
brinquem debaixo da cama

não não mates o peixinho
ele é dourado porque ainda
não é madrugada

de madrugada
ah, de madrugada
verás um gato pardo

com olhos de diabo
uma perfeição humana

eu só te perdoo
se tu me mandares
um beijinho pela andorinha

uma vez ou outra
saltitante esquiva
no parapeito da varanda
ou no quarto da minha irmã

sei que na varanda
a andorinha paquera
as minhas flores

na janela do quarto da minha irmã
ela cobiça as bijuterias

não não mates o peixinho
ele não é dourado natural
é um tipo comum hoje em dia
de melancolia

por isso amo meus insetos
na minha jaula as paredes
são sombrias o teto pálido

não há como fugir
do derrame cerebral
nem do parto

se tivéssemos um filho
ele seria louquinho
o riso mais lindo
dos anjos

e por falar em anjos
tu acreditas mesmo
que o poeta
é palpável?

sempre que corto
minhas veias
o sangue

não escorre
nem as cicatrizes
ficam vermelhas

ficam iguais às nódoas das unhas
(branquinhas)

é sinal de sorte,
dizem.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

posteridade

As tartaruguinhas quando fogem do ninho
desesperadas pela praia de encontro ao mar

elas só desejam
refrescar a cabecinha
exercitar as nadadeiras

e chegam ao cúmulo
(as mais espertas)
oferecer crustáceos
aos tubarões.

Cansei de esgrimir
contra nuvens.

Agora sou uma tartaruguinha
de tranças rastafári

antes de beijar o vento
o sol queimar a cara

abraço logo a concha
e deslizo até as ondas.

Tenho sorte.

Acabo nas costas
de um golfinho

e sou levado
até o teu navio.

De longe eu te vejo:
ah, tu  me esqueceste.

O capitão te consola
os braços em volta
da tua cintura.

Sabes o que faz
uma tartaruguinha
desolada e triste?

Pula das costas do golfinho
volta à praia (a nado)

e se enterra lá,
no buraco da areia

onde só restam cascas
do passado.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

túnicas

Antes de dormir
peço a deus
que eu não sonhe
contigo

(és malvada,
trágica
com o meu olhar
doce e míope)

acabas sempre
me acordando
de madrugada

e as roupas penduradas
no varal do banheiro
me dão medo,
agonia.

Penso logo no teu sutiã no trinco da porta.
Tua calcinha vermelha na torneira do chuveiro.

Ainda não entendi por que as minhas roupas
(jeans, toalha, farda do trampo)

me aterrorizam tanto e ao mesmo tempo
fazem com que o meu coração se encha
das tuas lembranças (chego a ouvir
teu brinco cair do bolsinho
do teu short)

As minhas vestes sombras animalescas
presas por crocodilos azuis e amarelos
tremem a cada rajada de vento.

Eu tenho medo
que caia dentro
do vaso sanitário
a tua camiseta
aquela florida.

Ora diacho, ora bolas
são as minhas roupas
trincadas por prendedores
(crocodilos, sapinhos
e gansos) que balançam
com a noite.

Há tempos que teus sutiãs
e as tuas calcinhas andam
por outras margens.

Nunca pensei que as tuas sedas,
algodões, linhos, lycras
fariam da minha vida
uma loucura.

(são reais os fantasmas
sem teu corpo)

domingo, 16 de janeiro de 2011

notas soltas

é que às vezes
preciso beber
meu sangue

então não repare
nos meus lábios
rubros

é que nem sempre
sou pálido e tenro

preciso beber meu sangue
juntar meus ossos
encaixar a loucura
no vão encanto

é que por muito tempo
coçam meus dedos
salivam meus dentes
desce a baba
pelo canto
da minha boca
cortada

é que tenho
desde nascença
um corte fino
nos lábios

onde repousa
minha lucidez
asas de fogo
infância

é que a poesia
não está sob
a vigilância
do poeta

nem este
acima

do estalo
dos gravetos

dos uivos
das borboletas

da quietude
dos bisões

é que meus braços
procuram outra coisa
gente quente água-viva

abraço fecundo
fazer mais de um filho
fazer uma penca de filhotes

pela casa rosnando assobiando
festejando alegrando paredes
riscando o teto a cada salto
da cama

é que a tolice
de quem escreve
pode afugentar
um pássaro
prender o dedo
na porta

é que dói
ver o sangue gasto
(todo nos lábios)

e o piso pedinte
suplica uma gota
um pingo
nem que seja
do seu esmalte

é que a minha flauta doce
recusa nessa noite
o meu sopro

e sem blues
a vidraça embaçada
sinto dó das lágrimas

é que meus cílios
nessa noite
bela época

abanam-se
vaidosos
da solidão

alto nível de maldade

Sempre te levei ao rosto
com candura, zelo
pureza, vaidade

e hoje
tu me foste
impiedoso,
frio, sanguinário.

Tu que conheces
(como ninguém)

o meu sinal
acima do lábio direito

hoje foste
assassino calculista

(breve vacilo
da minha mão
tu me cortaste)

A partir de agora
desprezo-te

e te lanço à lixeira
do banheiro,

ó, barbeador
infame!

voando

Todos os dias eu beijo uma flor na varanda.
Pulo até a nuvem mais distante,
belisco suas bochechas.

Todos os dias eu procuro fazer algo mágico
que me lembre que sou uma criança

(os cadarços soltos dos tênis sujos
balançam a ponta da cabeça
concordando comigo)

e de todo cafezinho embriago-me
mais com a felicidade da xícara

sobre a estante
encostada a fotos
e livros

tentando me dizer alguma coisa
como se ela tivesse alma
e fosse eu seu súdito.

A verdade é que ela tem alma.
Os tênis também.

Todos os dias eu rezo
quando beijo a flor na varanda

e belisco as bochechas
da nuvem mais distante.

Morro em paz agora
(sobretudo porque
lavei o banheiro
sábado)

e as cerâmicas de tão agradecidas
curvam-se aos meus pés com asas
de anjo.

sábado, 15 de janeiro de 2011

sarro

Lá fora o banquinho de cimento
(arrodeado de flores)

é um belo pretexto
pra gente namorar.

A lua está meio gordinha
não totalmente cheia
(anda fazendo regime)

enquanto suas amigas estrelas
bebem refrigerante,
sorriem.

Perto do bloco C tem uma capelinha
nossa senhora parece tão solitária
vamos rezar uma ave maria
de mãos dadas?

Em seguida a gente
se esconde atrás dos carros
sente os tremores das pernas.

Não se magoe por minha loucura.
Juro a você e a nossa senhora
que sou um cara feliz
um tanto sem grana

mas para que dinheiro
se acabo de jogar ao lixo
meus anéis e colares
de rap?

Desde muito cedo
aprendi a seguir
os passos

das andorinhas
das nuvens

(e de tudo
que se mexe
no céu)

Mas nunca
perdi o contato
com a terra

(minhocas
cogumelos
musgos) .

Chega de papo sem sentido:
vamos namorar no banquinho
de cimento arrodeado de flores?

Digo mesmo aquele banquinho
que todo condomínio tem
perto da garagem.

(os faróis quando batem nos seus olhos
eu vejo uma gata de olhos persas)

distraidamente

Voltei a lavar cuecas de madrugada
olhando pelas frestas da janela do banheiro
(nunca se sabe qual a hora que cai uma estrela)

Antes de escrever o poema
penso como será o deleite

sentado no pufe
o teclado sobre
os joelhos

e a língua
de fora.

Jamais saberei ao certo
qual a última mordida

dos meus dentes
cravados no dorso
das minhas muriçocas.

(elas se esquivam)

Lanço a dentadura
contra as paredes
e livros.

Elas sobem ao teto
(zombam)

depois pulam
ao meu colo.

(aí é uma questão de princípio:
namoro todas)

ouvindo música

Dentro da barriga de uma baleia
faz frio é muito escuro

e eu nunca soube
o truque dos gravetos

(nem mesmo tirar fogo
de um velho isqueiro) .

Então me diga
o que será do pássaro
sem a sua nuvem predileta?

O tempo passou em um toque de mágica
feito aquela viagem na hora do almoço

(meus olhos perdidos no jardim
o silêncio descomunal do vento
a sacudir formigas
e folhas secas)

Não havia pensado sobre
os meus cabelos brancos
as rugas, os sinais do sol
na ponta do meu nariz

mas agora é um ótimo momento
para limpar os brinquedos do meu filho
dar-lhe o xarope e ouvi-lo brincar de luta.

Então me diga
o que seria do poeta
se fosse verdade o sonho?

Todo o meu tempo
(no jardim, no batente
na esquina, debaixo do poste)

passou mesmo feito um toque de mágica
falta apenas o meu filho crescer

esquecer seus carrinhos
soldados, dinossauros

e abrir a porta do meu quarto
segurando firme a mão de uma menina
com o sorriso de quem me dará um neto.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

tagarela

Os versos são inúteis em noites claras.
A varanda molhada é um lago para cisnes.

Atrás da minha nuca havia um beija-flor
bebendo água doce.

Não era por minha alma
que a pequena criatura
matava a sede.

Todos palhaços
(homens, mulheres
beija-flores e cisnes)

ninguém escapa
da tormenta
nem do beijo
molhado.

No meu tempo
os carros tinham vidro
transparente e tudo que se fazia
de bom e gostoso os vizinhos viam.

Resta-me a janela distante
do apartamento longínquo.

Vultos abraçados
podem ser muriçocas.

Esqueci de vez comprar meus óculos.

Lá fora gente morre de frio e de bala.
Quando a minha mãe partir eu fujo de casa.
Terei os olhos mais loucos (ou mais tristes?)

Não me pergunte sobre quem vive bem.
Quem é tão feliz que me causa náuseas.

Não me pergunte sobre aquele dia
em que lhe prometi uma maçã
com gosto de uva.

Lá fora gente vive festejando o sol
antes que o cantor de blues
se levante da cama.

Não me peça pra explicar aos jardineiros
que de noite as flores e as minhocas
fazem pacto com as estrelas.

Esqueci mesmo de vez comprar meus óculos.
Quando eu estiver bem velhinho estarei só.

Deus me livre de outros pés mortos
juntos aos meus.

Bastará um par de chinelos
e uma xícara comum.

É melhor que não saia da sua casa.
Se sair vista a capa.

E guarde sua pistola.

Chega de gente morta de bala.
O frio é um inferno quando se tem fome.

Lá fora ainda há gente
esperando uma luz.

Eu não tenho nenhuma.
Você tem?

Não me responda.
Deixe-me ouvir Dylan.

Não sei o que os bruxos dizem
ao se engasgarem com a luxúria.

A loucura pode vir de um simples suspiro
quando não se encontra um lar no próprio peito.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

banho de chuva

Você nem imagina
o friozinho agora

a música
o cafezinho
meus olhos
lacrimosos.

Não falta nada
nem mesmo sua alma

(já lhe disse
que é uma coisa só
a chuva e a calçada?)

Hoje eu vi um passarinho
andando despreocupado

entre um carro
e uma banca de revista

as asas feito mochila
coladas nas costas

e andava o passarinho
dando pulinhos

(já lhe disse
que em dias frios
os passarinhos
pensam na vida?)

Sim, baby
pensam como penso
em você agora ouvindo
meu coração infantil
apressado e louco.

Você nem imagina
o tremor dos meus lábios
minha respiração de peixe

nessas horas é bom embrulhar as asas
feito mochila no dorso de uma nuvem

e dar um tapinha
nas ancas dessa nuvem

(já lhe disse
como voa ligeiro
uma nuvem em forma
de puro sangue árabe?)

Você nem sonha
que ontem estive
na sua cabeceira

e lhe fiz cachos
e sorri pros seus cílios
enquanto você dormia.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Regressão

Tive de mudar de casa.
Embora os meus fantasmas
ainda me visitem com seus jeans apertados
tênis surrados e camisetas coloridas sem manga.

Esses fantasmas não querem nem saber.
Moram dentro das corcundas dos camelos
e de alguns moluscos.

A minha corcunda mesmo atrofiada
ainda serve como ótima morada.

Os meus fantasmas surgem
na cozinha entre cadeiras
e perto do fogão.

(sempre derrubam
o açucareiro)

No quarto ultimamente
apenas um e outro
sentam na cama

e viajam
de olhos tesos
ao teto.

No fundo eles sabem
que a minha casa
também não existe.

Não há portas
janelas nem paredes.

Os meus fantasmas visitam-me
só para me lembrar que houve
um tempo de guerras
e loucuras.

De mãos dadas (correntes
presas aos tornozelos)

bebíamos tanto vinho
e fumávamos tanta coisa

que nem mais sabíamos ao certo
quem era o espectro quem era o poeta.

Foi bom enquanto eu era uma criança.
Aprendi a não ter medo do escuro
nem de relâmpagos e trovões.

Mas ontem (confesso)
acordei sobressaltado
do cavernoso abraço
entre duas nuvens
imensamente tristes.

Creio que é hora
de ensinar às nuvens escuras
que todos nós (poetas e fantasmas)
precisamos do azul do céu no outro dia.

(nem que seja uma pontinha
depois do arco-íris)

sábado, 8 de janeiro de 2011

Trôpego

Todas as manhãs
ainda na cama

(e ao entardecer
bebendo meu cafezinho)

penso freneticamente
naquele teu sinal secreto
que ninguém encostou o olhar.

Decerto só eu em sonho
deslizo os meus cílios
sobre teu corpo

e admiro a tenra pelugem
do teu lindo encanto
tremer.

Antigamente pensava
que o teu sinal secreto
era uma lágrima solitária
por tua própria escolha
não destino

mas agora vejo
que nada disso:

o teu sinal secreto
é uma tábua em alto mar
onde golfinhos passam férias
e namoram.

milagre

As flores da toalha de mesa
são belas e gentis.

Chego a sentir o perfume
de todas as migalhas
e nódoas  (adormecidas
sobre sua pele) .

Movem-se aos meus olhos
sob um louco e sensível bailado.

Não precisam do sol
nem da chuva

e todas as moscas
e todas as formigas

passeiam na sua pele
feito jardineiros.

As flores da toalha de mesa
(pintadas com doce solidão)

só sentem falta
de uma ou duas
borboletas.

Mas não por muito tempo
(já desço as escadas)

não será tão difícil
no canteiro da pracinha
encontrar uma boa alma
que pouse nos meus ombros.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Galanteio

Não deixarei para outro dia
furar o meu dedo com teu brinco.

Traz-me logo
as tuas orelhas.
(onde?)

Dentro do bolso do meu casaco.
Desculpa.

Tenho andado com os teus ouvidos
colados ao meu batimento cardíaco.

Quero que lembres
que saí do coma.

Agora me traz as tuas orelhas.
(amassadas?)

Desculpa.

É mesmo uma onda
este meu coração maluco.

Ao saber da tua vinda
se enrola todo entre
os últimos versos.

Olhos Limpos

Estou criando uma nova alma
dentro do coração para você.

Saiba desde agora
que a minha mão direita
não me escandaliza nem
os meus olhos à toa pecam.

Percebo hoje a devassidão
(tão frívola) que se abate
na alma de um lobo.

Os meus uivos outrora
assopravam enxofre
escurecendo o céu.

Por isso (espantado
meio alegre)

estou criando uma nova orquídea
dentro do coração para você.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Violinos

Antes que eu me deite
na minha querida cama

(esmurre meus fofos
travesseiros)

ouço as muriçocas seguindo
o cheiro do meu sangue.

Faço de conta
que não as vejo
nem é comigo.

(continuo a tocar
minha flauta doce)

entre flores e conventos

Não olho para os objetos como olho para uma mulher.
Aos objetos me entrego diante de uma mulher tenho medo.

Olhando uma mulher eu penso
de que maneira fazê-la feliz
sem que ela sonhe.

Enquanto os objetos do meu quarto
(ou da rua) parecem todos já sentir
meu natural infortúnio
em cada devaneio.

Talvez eu ame mais os objetos
por eles me rasgarem o ventre
sem piedade.

Ao contrário as mulheres
(benevolentes) sempre
oferecem-me um sorriso

e no final da morte
aquele olhar diabólico.

Nunca soube determinar bem
até que ponto um olhar sério
(de uma bela mulher)

é apenas um convite
para que eu pule
do precipício

(um dia minhas asas
tomam jeito e coragem)

domingo, 2 de janeiro de 2011

Cicatriz

Depois lavo o banheiro
por enquanto só tenho coragem
para escrever versos e ver a rua.

Sei que as cerâmicas horrorosas
o assento terrível o vaso nauseante.

Mas da varanda posso me alegrar um pouco
com quem passa lá embaixo contente.

Penso em deus e dou boa tarde
pros pássaros da árvore vizinha.

Viro o pescoço e vejo
(no outro lado do céu)
o sol ardente gracioso
despedindo-se do dia.

É hora do sol mergulhar da ponte.
No fundo do mar dormir na sua casa
(a primeira ostra aberta) .

Depois lavo o banheiro
por enquanto só tenho força
para roçar a língua contra os dentes

(engraçado, não sei qual gosto
do doce que acabei de provar)

estou a envelhecer, meu bem
mas ainda espero entrar pela janela
o teu perfume nem que seja no bico
de uma andorinha velhinha e sapeca.

o dia seguinte do trovador

Quando falarem sobre anjos e clarins
sei que é verdade pois meus olhos
embriagaram-se e os meus ouvidos
enlouqueceram de todo o encanto.

Mas como o fim se aproxima
deixo-te no mais lindo sonho
(ainda dormindo) e me mando
pra minha vidinha de sempre.

Não posso te levar nas asas
nem escreverei um poema.

As minhas mãos estão sujas
de terra e sangue

(cavo no meu coração outra tumba
e lanço ao fundo uma semente de girassol) .