quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

distância

O que tu esperas de um cara
que sequer sabe assobiar?

As andorinhas e os bem-te-vis
que chegam à minha varanda
não vêm pelo meu assobio

são os meus olhos, baby
silenciosos e de outro mundo.

O que tu esperas de um sujeito
que pouco pouquíssimo mesmo

se importa com quem sofre
ou se alegra repentinamente?

A minha vida é tão simplória, baby
e justo pela tolice
do que vejo

coisa alguma me mata
quando quero amar

ou por nada
me apaixono

se quero
morrer.

O que tu esperas de uma criatura
de bermudão agora

pernas estiradas
os pés sobre

os livros
da estante?

Os meus travesseiros
dizem outras coisas
aos meus ouvidos.

Coisas como
levantar-se

e não escrever versos
pelo amor de deus

versos não,
versos nunca.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

não é solidão mas estou sozinho

Receito-me duas xícaras de café -
uma logo que amanhece o dia
e a última quando o sol

já quase morto [ou morno]
bate no fio de alta tensão
e atrai as andorinhas.

Ultimamente vigio-me
e aparto-me do vinho
e qualquer gênero
de fumaça.

Ando delicado em um território
que a mim pertence mas não conheço.

Sei que é forjado pelo fogo.
Fogo da lucidez e fogo da loucura.

Tenho flores para cheirar, mel para beber
e abelhas para ferroar meu rosto.

Quando se abre a porta
e revela-se outro paraíso,

digo-me sempre -
é bom ter cautela.

Duas xícaras de café parece algo bobo.
Mas se fossem duas xícaras de chá estaria doente.

Essas duas xícaras de café levam-me a sair do quarto.
Ouvir a cafeteira, visitar as plantinhas da varanda.

E é comum sentir na garganta um gosto diferente.
Não do café bebido mas da lembrança
do tempo em que o café
vinha acompanhado
de ópio

e giz
de cera.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

um olhar

O amor há de começar pela carne.
Pela jovialidade das marcas de nascença.

Meus cotovelos hoje sujos de um tipo de escama
pela monótona frequência de tantos banhos
pergunto-me para que me servem agora.

São tristes meus cotovelos por haver sumido
aquele verniz da mocidade.

Eu amava meus dentes e amava muito meus cotovelos.
Era tudo princípio e só existia para o meu deleite a carne.

O amor há de começar por aquilo que o tempo leva.
Que o tempo estraga e oferece depois outro sentido.

Justamente no tempo em que a medula range
quando nos curvamos para amarrar os sapatos.

E se não houver ouvidos destinados ao som da sabedoria?
E se o homem cansado mas vaidoso ainda ousar viver dos cotovelos da juventude?
E se os dentes amarelos por qualquer método de purificação estejam ainda mais brancos?

Creio então que o amor não se iniciou.
E se existiu foi breve e enfadonho.
Durou apenas o tempo
do espanto.

Vendo agora todos os dias meus dentes amarelos
e os cotovelos sujos de nódoas da existência
acredito que amei meu corpo
com intensa euforia.

Alguém que ame as rugas
das falanges dos seus dedos

como ama as ranhuras da sua estante
verdadeiramente amou a si e as coisas.

Esta minha fadiga tem nome -
é o amor exuberante
da minha carne.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

fim de temporada

Estou farto de poetas
pois já não me suporto -

esses olhos lacrimosos que escondem segredos
e não compartilham com as paredes
as últimas lágrimas.

Estou farto de bruxos que nunca beberam outra coisa
senão chá e café e limonada e de bruxas que nunca
fizeram fogo e queimaram as faces.

Estou farto da minha bebida, da minha loucura,
dos anjos que apunhalei e dos cadáveres
que andam presos aos meus pulsos.

Estou farto da minha xícara desfigurada,
das minhas botas tolas, da estante
de ferro, do teclado sujo.

Estou farto do meu cheiro no frasco de perfume
e do meu cheiro na minha pele e dos meus risos
e dos meus medos e da total ausência
de humanidade.

Estou farto da inocência dos golfinhos
que ainda morrem emaranhados
em redes de pescador.

Estou farto das estrelas, do meu pégaso
no telhado, do musgo, das águas-vivas,
das ondas, da poeira debaixo
dos meus tênis.

Estou farto das minhas cuecas no varal
e do vento que empurra o encosto
e me fere.

Estou farto de me sentir acompanhado
pelos pingos do chuveiro quebrado
batendo dentro do balde.

Estou farto da minha infância.
Estou farto da minha velhice.

Do meu sinal caindo pelo canto da boca.
Das costelas. Das minhas unhas roídas.

Estou farto de mim
que não me conheço.

Não ouço mais o que me diz a voz da fortuna.
Minhas mãos cambaleiam e nada trazem do jardim.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

cansaço

Dia a dia alimentamos nossa morte.
Nós nos divertimos tanto
e aproxima-se o fim.

Uma boa morte é alimentada
desde o início da tenra idade

com guloseimas, balões coloridos,
barquinhos de papel, pipas
e bermudões surrados.

Amo a tolice humana e amo a vaidade
oculta e tão óbvia no clarão
dos nossos olhos.

Você que é tão carente
noutros momentos
vivaz e eloquente

não aceita um drink
ou um chazinho
de hortelã?

A cada prazer delicado e simples
é um preparativo para a boa morte
que se anuncia.

Você vive cego
ou é passageiro
esse andado
trôpego?

Depois de um dia de batalha
carregamos nos ombros
três ursos.

Um para o vizinho
que ainda dorme.

O segundo para
a nossa sombra
dentro das botas.

E o último é somente seu.
O mais carnívoro,

presas horríveis
e bafo de onça.

Quem já se viu -
um urso com bafo de onça.
Mas é simpática essa imagem.

Durma,
você está exausto
após um dia de doçuras.

Amanhã cedinho
acorde seus ursos.

Vire-se e pegue de volta
aquele oferecido ao vizinho.

Calce suas botas,
espante sua sombra
e traga para si o segundo.

Quanto ao último urso
[o mais louco e feroz]

deixe-o
bem guardado

na terceira gaveta da cômoda
onde estão o fósforo, a taça
e o seu conhaque.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

folhas secas ao vento

A minha xícara perdeu o sorriso.
Era linda como antigamente -

as duas fissuras tão finas
em torno da circunferência.

Tremi de susto
ao vê-la hoje

com mil olhos
e dentes.

Minha xícara [é mais que posse -
é um amor entre pele
e porcelana]

deveria ser única
na minha boca

e eterna sob
meu olhar distraído.

Mas alguém a deixou cair -
cozinha, sala, varanda,
sei lá onde.

O que me dói,
exaspera-me a alma

é que alguém antes a beijou
mesmo contra sua vontade.

Ela silenciosa
de um silêncio triste.

E eu morto de desilusão
embora sempre soubesse:

o que mais fere
é o encanto.

domingo, 13 de novembro de 2011

inefável mas se sente



Você já me viu chorar
mas esqueceu minhas lágrimas.

E eu não chorava pela perda
de um desejo antigo
destroçado

mas sim [como choro agora]
por essa possessão poética

do meu sangue
e ossos.

É como se não me pertencessem
as palavras que brotam
da minha unha

no entanto,
as ranhuras delas
foram todas minhas.

Você não mais existe
e deixou de existir a partir
do dia em que esqueci teu aniversário.

Não foi maldade [acredite]
eram muitas lágrimas
dentro dos meus olhos,

e um cego lacrimoso
esquece até do dia
em que se fez
sol -

um lindo dia 
de sol.

sábado, 12 de novembro de 2011

meus tênis e um sapato estranho

Não preciso de sapatos.
É tão natural a textura das nuvens.

Deem os meus tênis e mais aquele bico fino preto
[nunca usado] ao cidadão da esquina.

Ele precisa.
Sinto que ele anda pesado.

Os meus tênis por serem velhinhos
são algodões-doces que se desmancham
nas calçadas sobretudo nas calçadas
ainda molhadas do orvalho
de ontem.

O cidadão da esquina anda carregado de muito ouro.
Necessita com urgência da alma daquele passarinho
que um dia se abancou no ombro
de São Francisco.

O sapato bico fino preto [concluo agora]
não lhe ofereçam. Também é carregado
e só tem no solado terras por onde
não andei e não conheço
o dono dele.

Pressinto que o sapato bico fino preto
não é recomendável para quem
deseja andar nas nuvens.

O cidadão da esquina
caso calce esse sapato
pode matar alguém
por mais dinheiro
ou mais ouro.

De quem será esse sapato bico fino preto?
Chegou-me ao quarto nem lembro
como e qual motivo.

Então deem somente meus tênis.
Todos eles e digam ao cidadão da esquina
para fechar os olhos quando atravessar as praças.

Meus tênis embora velhinhos gostam
de correr atrás dos pombos.

E por falar em pombos,
eles usam nike vermelho.

Vejam, não há um pombo
que não use um tênis nike vermelho.

a candura do pequeno sátiro

Se o teu filho te pede um sagaz aperto de mão em sinal
de uma amizade sem fim e sem nenhum tipo de vacilo
não é que ele esteja com vergonha do pai
ao levá-lo à catequese,

é que lá onde se aprende coisas de deus
de santos, rezas e histórias sagradas
também habitam ao olhar dele
meninas e meninotas.

O teu filho não se sente razoavelmente um homem
ao pé da calçada contigo beijando-lhe a cabeça
e abraçando-o sob gracejos
e despedidas infantis.

Tu não vês mas as meninas e as meninotas
encaram teu guri com um riso de deboche.

Quando, enfim, tu partes
elas chegam a desconfiar
e indagam irônicas
se o teu rapaz
de fato
tem dez.

Tu não imaginas o sufoco
do teu garoto.

Ridículo explicar aqueles teus efusivos beijos na cabeça
e abraços desesperados de quem vai pra guerra
ou retorna de outra mais longa.

Todas as meninas e meninotas coloridas de batons e esmaltes
metralhando teu filho com olhares e risinhos
e o teu pivete lá sem graça
um ódio louco de ti.

Sem mencionar os outros caras que vão sozinhos
dignos cavaleiros altivos e silenciosos
sem pai para beijá-los na cabeça
e sufocá-los em abraços.

Despede-te com bom senso,
faz o que te pede teu rebento:

um aperto de mão esperto
desses de mano
e só.

Deixa que beijos e abraços
ultimamente o teu filho
almeja das meninas
e meninotas.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

o crepúsculo é uma lenda

Agora é assim, qualquer esforço humano
meus pulsos doem e os nervos latejam.

Escrever é humano,
diga isso aos meus tendões
melindrosos
e frágeis.

Agora é assim, mal amputo meus dedos
sobre o teclado e nem se vê o sangue
meus pulsos já doem e latejam.

Como faço então meu amor para escrever cartas.
Sabe, essa manha das minhas mãos é herança
daquele tempo em que eu morria
em uma olivetti studio 45.

Batia a máquina mil cartas de amor e todas iam ao lixo.
Naquele tempo eu era jovem portanto podia morrer
quantas vezes quisesse - e todos riam da loucura
da minha língua que passava horas
fora da boca feito eu um lunático.

Valeu, hoje sinto-me um bom moço
por ter sido um amante exemplar
da minha velha máquina
de escrever.

E foram tantas voltas em torno da lua
usando rolos de fitas e léguas e léguas
de papel ofício.

No final [como agora] todas as cartas de amor iam ao lixo.
Isso não mudou, mas como doem hoje meus pulsos.

Haverá o dia em que só de olhar pras minhas mãos
elas se levantarão de dentro dos bolsos
quentinhas sem nenhum nervo delicado,
sem nenhum nervo mocinha,
reclamando de inflamação
nos tendões.

Mas tu sabes que te amo
e te amo mesmo sem nunca
haver trocado uma ideia contigo
nem trocado os lençóis juntos.

Te amo mesmo com os pulsos doídos
inchados e creio também
que estou nada bem
da garganta.

Garganta, pelo menos dela
eu tenho a voz que não muda.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

no ardor de uma tosse

Se tu nada fizesses agora
o dia todo sem mexer as mãos
nem um sequer piscar de cílios

que cor teria teu céu
e quais as fisionomias
das tuas nuvens?

Mas se tu matares uma serpente
e beijares enlouquecido uma andorinha
certamente

tua manhã será de um júbilo
e de uma alma florida
dentro da tua

que só mesmo o espanto
e a fúria do esquecimento
para enfraquecer o milagre.

velhinhas

As velhinhas me acham bonito.
Meus cabelos grisalhos
e o sinalzinho acima
do lábio direito.

Mas estou cansado de iludir as velhinhas
e empurrá-las da escada só pra que elas
quebrem as pernas ou a bacia
e prostrem-se entediadas.

Eu adoro isto -
alimentá-las na boquinha,
pentear-lhes os cabelos,
perfumá-las a alfazema.

Sim, sou um altíssimo santo maldoso
pois desejo para meu conforto
cuidar das velhinhas

que mesmo deitadas na cama
ou estiradas no sofá ainda que
desdentadas e suadas de apatia

querem-me bem,
acham-me bonito
e têm uma queda

por meus cabelos grisalhos
e pelo sinalzinho acima
do lábio direito.

Sempre ouvi falar em amor
jovial e dilacerante

mas não existe outro
tão rico e palpitante
quanto o que sinto

por minhas velhinhas de sorriso puro
depois de todo o pecado da juventude.

bruxas

Só as mulheres deveriam escrever poemas
e os homens escutar com os olhos atentos.

Os homens deveriam cuidar do fogo
e dos bichos ferozes atrás da montanha

enquanto as mulheres no seu dia atarefado
[couro secando ao sol e roupas enxutas no varal]
preparavam versos e não alimentos para seus homens.

Os homens que se mantivessem vivos atrás das montanhas
comendo a carne suculenta do animal ainda quente

e chegando gordos e exaustos a casa
lá estariam as mulheres com seus poemas.

Sentem-se homens tolos e frescos e ouçam os versos
das suas mulheres que além de cuidar do sótão,
da masmorra, da fornalha no quintal

tiveram tempo e delícias
para escrever poemas.

Ouçam bem, homens tolos e frescos
com os olhos atentos do coração
pois não há outra forma

de amar suas mulheres
suas belas e corcundas mulheres
que escrevem poemas fabulosos.

Vão pra montanha depois.
Pra lá das montanhas têm bichos ferozes
cacem e pelem e destrinchem todo o animal.

Comam da carne que é a mesma vossa,
homens tolos e frescos.

Não tentem escrever versos porque
só as mulheres o fazem
com perfeição
e suicídio.

uma guitarra melancólica

Ninguém me assombra
ou me causa leve desejo.

Aonde lanço o olhar são os ossos que voam
e se juntam às folhas secas da minha calçada.

O livro posto e esquecido é mais uma costela
sobre a estante criando uma alma de palavras.

Os corais vivem do sangue dos peixes desatentos,
digo eu, dos peixes destemidos que se ferem
e deixam peles das escamas em oferecimento
ao celestial brilho de quem se afoga.

Como eu, baby
como eu agora.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

mulheres

Quantas mulheres passam por meus olhos
e não me veem a criança doida por chocolate.

Sujar os meus dedos de chocolate
para que os lábios dessas mulheres

deem-me  beijinhos
e sorriem mansinho.

Quantas mulheres passam ao meu lado
triscam em minhas mãos e não se sujam.

Mas eu sei que elas ao entrarem no banheiro
percebem um cheiro de almíscar leve e amargo
nos pulsos e elas cheiram os pulsos e não entendem.

Pensam mil coisas
menos em um homem
com os dedos sujos
de chocolate.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

o tristonho dos tristonhos

Ai de quem não ama.
De quem não perde a tarde inteira
olhando pro teto e sonhando com aqueles olhos.

Ai de quem não ama e deixa de lado o leite no fogo
e as cuecas há semanas de molho
e o café já frio na estante.

Ai de quem não ama e não remexe as gavetas
à procura de somente uma carta perfumada.

Ai de quem não ama e não dá dois passos de volta
na calçada de uma floricultura embora sem grana
apenas para admirar aquela rosa.

Ai de quem não ama e quando a amada esquece
os chinelos de florezinhas debaixo da cama
o menino homem passa a noite abraçado
e cheirando os pezinhos da santa.

E não há de ser santo o amor.
Espero que um dia não o seja.

Ai de quem não ama e lê um livro
ou ouve um jazz e supõe felicidade.

Ai de quem não ama
e ainda escreve versos
pras andorinhas.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

compulsivo

O vinho abre a porta do inferno
e eu um diabo manco e caolho
desço as escadas espumando
no canto da boca loucura.

Mas como pode um infortúnio
em uma alma de santo?

Vinde então cruéis carrascos
decepai minha cabeça
e lançai aos porcos.

Doravante andarei apenas com o tronco.
Lúcido e delicado com o coração vivo
na concha das mãos.

E quem beber do meu sangue
beberá da vitória do mendigo
que acordou um rei -

um rei manso
que colhe flores.

fraqueza

Os mortos quando partem
não se refugiam no céu
nem no inferno -

prostram-se ao nosso lado,
nos nossos calcanhares,
nas nossas mãos,
na nossa nuca

e ai dos fracos que não suportam
o peso desagradável do morto
que não consegue fugir
desse vazio ridículo.

De tanto nos pesar nos ombros
e de tanto nos arrastar pelos calcanhares
e de tanto dizer palavras por nossas bocas

há momentos em que a nossa salvação é simples
como é natural um gatilho leve e uma forca perfeita.

Mas, faça-me o favor,
ser igual a um deles depois de morto
sorvendo a vida dos tolos que vivem feito fantasmas,

não,
isso não.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

ausência

Eu não fiz amigos durante a caminhada pelo deserto
nem quando cruzei o mar pescando.

Eu não fiz amigos enquanto caçava borboletas
ou quando deixava meus barquinhos de papel
tomarem o rumo da água da chuva
pelo meio-fio.

Eu não fiz amigos no telhado olhando as estrelas
nem sequer dentro das paredes naquele tempo
em que eu procurava um tesouro.

Eu não fiz amigos no funeral das minhas formiguinhas.
E estavam todos lá - minhas botas, minha xícara
e minha flauta doce.

Eu não trouxe nenhum amigo comigo
para tomar chá nem ouvir um blues.

Continuei só no quarto
olhando pras migalhas.

Um quarto sem formiguinhas
é um quarto triste
e sujo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Drummond

Drummond, não escreverei nenhum verso em tua homenagem.
Já escrevi poemas para flores e para meu filho, mas não creio
haver necessidade de escrever versos para teus ouvidos
nem para ouvidos de outros.

Primeiro tu não me ouves, estás morto.
Depois os outros estão cansados
da minha vaidade.

Drummond, posso dizer-te secretamente
que muitas vezes andei com livros teus
debaixo do braço em praças,
bares e não me lembro
onde os perdi.

Tu ficaste em mim de propósito.
Além da estante e do velho baú.

Vê, os peixes todos te saúdam enquanto eu [um trôpego]
caminho em sentido contrário para onde teus amigos
não nos vejam e eu possa te abraçar oculto
e sentir na tua camisa o cheiro do meu avô.

meditação

Da minha varanda também vejo
um rabo de cavalo na nuca
de uma mulher

que anda apressada
com sua roupa de ginástica

[na sala ao lado
a luminária oscila
sem ninguém
por perto]

mas eu não tenho medo
de fantasmas, aliás

na minha mente só vejo a mulher
com seu rabo de cavalo
correndo apressada

e balançando a cabeça
feito um cavalo comendo milho -

seriam castanhos os olhos da mulher
iguais ao mel dos olhos do cavalo?

domingo, 30 de outubro de 2011

escapulário

Mal amanhece ou anoitece
eu tiro um pedaço do meu coração
e colo em um poema. No dia seguinte
a mesma coisa sem pensar duas vezes.

A minha sorte é que o coração de poeta
é igual a fígado de bêbado após um mês -

não viu nada,
não ouviu nada

e nem se lembra
da última pinga
ou do último
verso.

é hora de queimar seus versos

O pingo do chuveiro
dentro do balde
emite um som
de sapo,

um sapo preguiçoso
coachando pela metade.

Embora tanto delírio
o poeta não viaja
além do poema.

Os versos têm faces ocultas
cujos disfarces podem
enlouquecer um
iluminar outro.

Que o poeta queime seus versos
sequer uma vez na vida
para sua própria
salvação.

A fumaça é outra
a tosse é de outra asfixia.

sábado, 29 de outubro de 2011

chuva

Eu nunca fugi de mim
por isso nunca me cansei

nem dos versos
nem dos sonhos.

A chuva é um sinal
que mais tarde
vem vindo
arco-íris.

E todo arco-íris lava a alma
depois que a chuva
molha os cabelos
das rosas

e os bermudões
das orquídeas.

Se já adultos e velhos não vimos arco-íris algum
havemos de ter por encanto na memória
aquele desenho que fizemos
quando éramos crianças.

E se rosas e orquídeas
é papo de jardineiro tristonho
havemos de lembrar que um dia

mesmo de passagem
desejamos os canteiros da praça.

O cansaço nem por morte minha
e a fuga de mim é um absurdo.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

uma nuvem de suspiros

Eu já fui um cavaleiro fiel e dedicado
mas um dia a minha frágil
e doce mocinha

levantou-se altiva e louca,
fechou todas as portas
e sumiu do castelo.

Eu também já tive
sobre o baú antigo
uma caixinha de música

mas em uma noite fria
a minha bailarina
pulou do palco

esqueceu suas sapatilhas
desceu as escadas do prédio

e sem  olhar para trás
não se despediu
do meu jardim.

Não é fácil para um cavaleiro
acostumado a batalhas
por honra e amor

acordar sem ouvir os gritos
de uma mocinha linda
apavorada com insetos
com trovões, sombras
e pios de coruja.

Terrível olhar para o baú antigo
e só ver aquelas sapatilhas
sem os pezinhos
da bailarina.

Até hoje tenho pesadelos -
se lobos comeram a mocinha do castelo
ou se peixes engoliram a minha bailarina.

Não vivo um minuto em paz,
como posso.

Um cavaleiro precisa de mocinhas sensíveis
para proteger e um ogro de uma bailarina

para vê-la girando e girando
quem sabe um dia o vento
derrube-a ao seu colo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

tríade

Se eu fosse o que penso
seria um céu cheio de nuvens
mudando a cada minuto
de fisionomia.

Também seria o crepúsculo
com suas cores silenciosas
às vezes tristes.

Mas o que sou
nem a mim mesmo digo
durante o tempo em que morro.

Apenas quando durmo
e tomam meu corpo
outros pensamentos,

revelo então uma ponta do céu
além deste acima do teto

e outro entardecer
que não é o mesmo
de lá fora.

Uma luz difusa entretanto
não me deixa confiar tanto
no que sou sob sonhos

pois esses pensamentos
têm a vida daqueles
quando acordo.

Graças! [grito às paredes]
dormindo ou acordado
eu não sou o morto
nem desperto.

domingo, 23 de outubro de 2011

o náufrago

Quando a tempestade veio e derrubou-me
passei quase uma eternidade em alto mar
agarrado às minhas botas.

Os amigos que tive dos céus as gaivotas
desciam até minha boca oferecer peixes.

Os golfinhos fizeram um cerco
dia e noite ao meu lado
aos gracejos.

Os golfinhos foram tão importantes
para que eu não sucumbisse
à terrível solidão do mar.

Em certos momentos os golfinhos
e as gaivotas conversavam entre si
sobre a minha sorte
e penúria.

Não entendia muito bem o que diziam.
Era uma confusão, sei que festejavam
o milagre de não ter me afogado

mas logo se abatiam
pela minha morte
já visível dentro
dos meus olhos.

Os golfinhos para me distrair
purificavam a água do mar
nos seus pulmões
e me jogavam
no rosto.

Eu aproveitava a brincadeira
e conseguia beber uns goles.

Alguma porção havia de mágico nessa água
que vinha dos pulmões dos golfinhos:
dois minutos após o primeiro gole
olhava para o céu esperançoso
e sorrindo.

E o que dizer das adoráveis gaivotas
das mamães gaivotas que repartiam
o peixe dos seus bebês comigo.

Passei quase uma eternidade em alto mar.
Nenhum pescador me viu ninguém me salvou a alma.

Quando eu morri,
as gaivotas prometeram
nunca mais comer peixes

e os golfinhos choraram durante todo o tempo
em que as ondas arrastavam meu corpo
até a hora em que as minhas botas
largaram-se das minhas mãos.

sábado, 22 de outubro de 2011

um duende apaixonado

Os teus sonhos são meus
pois todas as noites
sou eu que rego
desde cedinho
teu dia

fico à cabeceira
cantando aos teus ouvidos
entrançando meus dedos
aos teus cachos

e ao teu limiar suspiro
conheço o princípio
da felicidade

pois sou eu quem cuida
desde nosso primeiro encontro
das coisas simples da tua vida -

trocar lâmpadas,
descer a escada com o lixo
e aos sábados comprar pão.

O que seria de mim
sem a tua presença
decerto um louco

um mendigo
um falastrão

mas graças ao meu bom pai e meu deus
tu existes todos os dias de manhã
quando dou mais vida
às tuas plantinhas

até planto outras flores [escondido]
e te faço aquela surpresa
logo que o perfume
chega ao teu nariz.

O que seria da tua varanda
sem o dom das minhas mãos.

Então nunca esqueças
que os teus sonhos
são meus

desde quando teu paizinho e tua mainha
brincavam na primavera e te concebiam.

Não aceito distância.
Não aceito morte.

Jamais aceitarei viver sozinho
e dormir tarde distante do teu corpo.

O teu corpo é meu
e tu sabes que sou capaz
de enfrentar todos os brutamontes
do ufc e todas as gangues de skinhead.

O que seria de mim sem as tuas unhas e o teu esmalte
certamente um eremita de olhos vermelhos e distraído.

Então já sabes,
não fujas dos meus versos
pois cada sílada que acorda

gosta e adora
quando estás por perto
rindo ou caladinha

mas bem perto
onde possam meus cílios
tocar tua alma e fazer cócegas.

Não aceito outro encanto.
Não aceito outra vida.

Se um dia partires
parto em seguida
meu coração
em mil
tiras.

Junto tudo na mesa
e deixo para que vejam.

Para que vejam
como brilha
meu amor

ou minha
loucura.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

noiva

Amor, sabe por que não enlouqueço?
Porque eu não me canso
de olhar para as paredes
e elas não se cansam
de piscar de volta.

E assim passamos o tempo -
eu olhando-as sério
e elas rachando-se
sorridentes.

os tênis

Falta desfazer um laço
apenas um laço

para que os meus tênis sujos abram os braços
e impeçam as formiguinhas de chegarem
ao banheiro.

Quando os meus tênis sujos
estiram os braços no meio do quarto
ninguém passa.

As formiguinhas resignadas
pegam um atalho em torno
da cadeira giratória.

Algumas voltam a ser crianças
e voam agarradas às rodinhas.

os pregadores de roupa

Os pregadores de roupa
ainda que soltos no varal
vivem presos à lembrança
do perfume dos panos

e foram tantos -
algodão,
elastano,
jeans.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

pretexto

Exceto o momento em que sento para escrever,
eu sou por completo um tolo -

nos assuntos,
nos olhares
e na voz.

Natural então que eu escreva incessante
cada dia distraído e cada noite atento
lançando meus olhos

contra as paredes
e pelas calçadas.

É nesse mundo de faz de conta
a doer o dente e curvar-se a espinha
que me depuro das tolices em minha volta.

Sei de mim e do meu fracasso
quando me levanto
e deixo de lado
a imaginação.

Cai sobre a minha cabeça uma folha seca
com o peso gigantesco de uma montanha.

outra terra além do silêncio

Uma forca no pescoço de um gafanhoto
não faz nenhum sentido, portanto
que ele atravesse vagarosamente
com suas longas pernas
o campo de girassóis -

e que seus olhos perdidos
enxerguem outra terra
além do silêncio.

consolação

também não sei muito sobre poesia
eu só sei que sou um peixe
e aproveito a rede
do pescador

pra tomar um banho de sol
depois dou um pulo
de volta pro mar

também não sei o que é solidão
mas sempre que encontro meus chinelos
é como se encontrasse parte da minha alma

sei que as pessoas precisam de um abraço
o mundo todo precisa de um abraço
mãe e filha e netos

sobretudo se alguém da famíla
morre cedo e deixa saudade
na casa, nos objetos,
no telhado

é assim mesmo
sendo peixe

sem saber muito de poesia
mas tomando meu banho de sol

procurando e encontrando os chinelos perdidos
abraçando quem chora pela perda
de um filho

que vou vivendo
e hei de viver

apenas
e somente.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

caboclo reflexivo

A palavra é o pensamento do poeta.
Mesmo que se negue a verdade
ou meta-se ele em mentiras.

Suspenso entre querer ser
e aquele claro segredo
do que já foi feito

desperta o poeta o seu caminho
lançando aos céus as mudas
da sua pele.

A palavra do poeta
como o seu pensamento
embora possam enlouquecê-lo

nem um nem outro
tem o poder do sangue
do seu coração, se ameno.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

o eremita

Nunca direi qual o caminho o louco há de seguir
nem a nuvem em qual terreno árido deve chover.

Os meus pés já me doem
as minhas mãos tremem.

O louco precisa conhecer de perto
o seu olhar fundo e o brilho oculto.

A nuvem com o tempo há de fugir
da altivez e da desordem do vento.

Não sou o escolhido para indicar ao louco
o seu tesouro escondido atrás das costelas.

Nem à nuvem mesmo a mais solitária
apontar onde dorme e sonha o oceano.

Amanhã o louco pode se cansar da sua loucura
e a nuvem simplesmente se perder da sua vista.

domingo, 16 de outubro de 2011

terror

Quase o fim da minha xícara.
Decerto seria a minha morte.

Juro que meu coração também saiu pulando
junto com ela e que rezei todo o credo
em questão de segundos

enquanto o seu corpinho de porcelana
saltitava sob frêmitos pelas cerâmicas
da área de serviço.

Xícara de poeta é forte e brincalhona -
girou em torno do próprio umbigo,
deu piruetas e cambalhotas

até, enfim, inocente
pousar debaixo da pia.

Parecia um cachorrinho
pedindo afago.

E eu beijei-a como beija
um marinheiro a fotografia
da amada.

Prometi-lhe [com lágrimas
no rosto] colar sua asinha
aos meus dedos, polegar
e indicador.

zumbi

Onde perdi meu sonho
e quando esqueci
de visitá-lo

e abrir-lhe
as janelas?

Ando exausto das ruas lá fora,
das estrelas e da lucidez
das corujas.

Não tenho lar,
minha casa é uma casa
sem largas janelas
e sem sonhos.

Tudo que vejo é um marasmo
um ranger de dentes
um suspiro fraco.

Onde, meu deus,
perdi minha vida

e quando roubei
essa alma silenciosa
e louca?

sábado, 15 de outubro de 2011

do outro lado do jardim

Deve ter morrido aquela rosa lilás no canteiro perto da garagem.
Nunca mais desci a escada e tratei do seu ferimento.
Tinha ela na orelha esquerda uma mordida
de gafanhoto e outra de borboleta.

As rosas cruelmente são esquecidas
quando os poetas só têm olhos
pras suas botas.

As rosas não entendem que a etérea beleza das suas pétalas
é um insulto à ressaca do solado das botas -

tampas de cerveja
pregadas em chicletes.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

alma jovial

Sê forte, meu caro
não te deixes afundar
sob as ondas gigantescas
nem te escondas no porão.

Lá tem rato de todo tipo
certamente tu não és

um daqueles ratos
que vivem no escuro,
umidade e mau cheiro.

Abre teus olhos -
os objetos que te cercam [acredita]
têm vida própria e são cheios de graça.

Vê tua caneta que ganhaste de presente.
Presta atenção no biquinho dela -
parece soltar suspiros.

Muitas vezes cansada
por tão pouco uso.

Olha, meu amigo
uma caneta desprezada
é um demônio de saia
com ciúme.

Um dia lançará toda a tinta
sobre teus papéis e livros.

o sol no meu chinelão antigo

A minha poesia é uma prosa decaída
como eu sou - torto e trôpego.

Além de viver esbarrando em cadeiras
e tropeçando nas minhas botas

meu pescoço sempre pende
pro lado sujo da parede.

A minha poesia é uma formosa dama
convalescente de um longo sarampo.

Tento, por deus, tento mesmo
beijá-la na boca mas seu rosto
defeituoso de tanta febre
causa-me medo.

Pode ser que a minha língua caia.
Qual a utilidade de um poeta sem língua?

Não quero perder por paixão alguma
a minha língua com suas extremidades
azuis e flexíveis.

Nessas horas a formosa dama
supõe indiferença da minha parte.

Aventuro-me então a ser lúcido o possível
e explicar-lhe que ela na verdade
não é uma dama nem formosa
apenas um ato voluntário
sabe-se lá de quem.

Concluo [para sua surpresa]
que tanto eu quanto ela
não somos absolutamente
o que imaginamos.

A minha língua com suas extremidades azuis e flexíveis
talvez seja de fato o único elo perdido.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Dom Quixote

Padre, perdoa-me
pois pequei.

Ultimamente venho seduzindo e molestando
todas as formiguinhas do quarto
todas as borboletas da pracinha
e até as ingênuas andorinhas
que chegam à varanda
eu as papo.

Padre, embora essa vida de desfrutes
idílios e sarros pareça um paraíso,
tu te enganas

pois ando melancólico,
dormindo tarde

mais solitário que um pé de meia
perdido debaixo da cama.

Padre, talvez seja minha sina
minha fortuna e meu carma
essa onda de penúria

mesmo tendo ao lado
as mais tesudinhas formigas
as mais sensuais borboletas
as mais gatas andorinhas

e não há um dia
em que eu não acorde
com uma formiguinha
mordendo meus lábios

e logo que desço à calçada
surgem como por enquanto
mil safadinhas borboletas.

Padre, nem com a lua alta
vivo em paz com minha insônia -

penso em ler um livro
ou simplesmente
olhar os furos
do teto

mas eis que entram pela janela do banheiro
duas irmãs gêmeas duas sapecas andorinhas.

Não é loucura, padre
já tardão da noite
fria madrugada

duas irmãs gêmeas
duas sapecas andorinhas.

Padre, aconselha-me
dá-me um rumo
purifica-me.

Não é mais do desejo da minha alma
seduzir e molestar formiguinhas,
borboletas e andorinhas.

Juro, padre
quero morrer seco sem escrever um verso
se eu voltar a flertar e bolinar minhas meninas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ciranda

Não gosto de enlaçar o búfalo
quando o bicho está distraído
passarinhos sobre seu dorso
comendo parasitas -

gosto quando o búfalo
corre seguindo a manada
cruzando planícies e charcos.

Então é a hora - subo, aperto seu pescoço,
meto-lhe os dedos nas narinas, desabamos.

Corro o risco [e sempre acontece]
de ser pisoteado e partirem-se costelas.

Mas é prazeroso, eu e o búfalo
caídos, sujos, suados, entregues:

ele ao seu instinto natural de búfalo;
eu ao meu frenesi de peão louco.

Não gosto de balear pato
quando ele nada no lago
em círculos,

aquele ar ingênuo
beirando a santidade -

gosto quando o pato voa
atravessando céus
feito uma seta.

Então é a hora, miro seu peito,
aperto o gatilho e só vejo penas
dentro dos meus olhos.

Deleite maior é pegar o seu corpo na água
ressuscitá-lo com um canudinho de bambu.

Os patos nunca morrem quando a bala é rolha de vinho.
Há uma certa cumplicidade no oxigênio que assopro
e no seu suspiro depois do desmaio.

Não gosto de pisar formigas
quando no chão comem migalhas.

Sinto-me feliz quando elas
sobem pelas paredes
chegando ao teto.

Dou um salto de Bruce Lee
e quebro as pernas de três.

Mas todos sabem -
botas de visionário
não machucam  formigas.

Ao contrário, quanto mais pisões
multiplicam-se abdome e antenas.

domingo, 9 de outubro de 2011

proscrito

na minha aldeia o rio é transparente
pode-se banhar o coração com água limpa

na minha aldeia a caça é boa
e nas pontas das flechas
o macaco despenca

o veneno também é bom
não lhe queima o sangue

assim todos da aldeia
meninotes, anciãos
mulheres e homens

põem-se a comer a carne
sem prejuízo do caldo

na minha aldeia alegria é o batuque
em noites que o povo perde a alma
e a fúria

dançam frenéticos
como se o mundo
chegasse ao fim

na minha aldeia quando nasce o dia
ninguém sabe onde raios
meteu-se o pajé

mas quem não se lembra
das estrelas.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

beatitude

Quantas vezes te roguei,
não laves minha xícara
com os teus dedos.

A minha xícara é sensível.
Acostumada somente
aos meus lábios.

Há uma verdade especial entre eles.
Os meus lábios são os responsáveis
pelas fissuras na circunferência dela.

E ela de tanto queimar-lhes a pele
modelou-me o bico a tal ponto
que aprendi assobiar.

Há uma mística relação entre eles.
A minha xícara só sossega
quando meus lábios sorvem
o último cafezinho,

aí, então, ela dorme
sobre a estante.

A minha xícara é sagrada.
Os meus lábios o que há de corpo em mim.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

o jardineiro

Trata bem das tuas plantinhas.
Não te esqueças de lavar as raízes.

Se de fato vais mesmo plantá-las
então muda a água do jarro.

Não as deixes afogadas
em uma água turva.

Se cultivas plantinhas
não esqueças -

troca a areia,
muda a água,
faz nelas
cafunés.

Não as deixes solitárias
de pé, em um terreno árido
ou afogadas em água lodosa.

Afaga tuas plantinhas.
Apara os cabelos delas.

Não as deixes furiosas.
Sob toda fúria há tanta tristeza.

Vai à tua varanda,
conversa com tuas plantinhas.

Não as ouves?

Precisas de uma gota de amor
dentro de cada ouvido.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

lucidez

Que ninguém e nada
conspirem a meu favor.

Que o mundo permaneça alheio
e as coisas inalteradas.

Que a montanha não se mova
em minha direção e o mar
não se corte ao meio
por minha causa.

Que as estrelas nasçam e morram
sem mandarem notícias
do corredor escuro
de outras galáxias.

Que o meu bermudão não mostre seus bolsos
nem procurem nas minhas mãos moedas.

Que as minhas botas durmam
sem sonhar com as calçadas.

Que anjos não pensem em mim
nem façam da minha alma
uma aurora.

Que demônios esqueçam
o vazio da minha mente.

Que ninguém e nada
conspirem a meu favor.

Sei muito bem das emboscadas.
Da luz que finda e do grito.
Do olhar cúmplice
e da revolta.

Apartem-se do meu coração os arautos da felicidade.
Esses cães dos próprios ossos e da própria carne.

Sei do descuido, da farsa,
da longa vida que é a morte.

Que ninguém e nada prometam-me
a vida e o seu deleite em outra terra.

Que a paz dos meus chinelos
seja toda a verdade
que vejo -

sem truque,
sem medo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

castelos de fumaça

A casa foi construída, baby.
As portas abrem-se e fecham-se
de acordo com o humor do vento.

O teto não suporta o brilho das estrelas
e vive vazado cheio de furinhos.

O piso é uma areia movediça,
e a cada passo que se dê,
notam-se mil armadilhas

mas também é uma planície
uma vasta planície de girassóis.

Só não há janelas na casa.
Digo, há janelas, no entanto,

só o espaço aberto
sem grades e trancas.

[qualquer gatinho
pula e entra]

A casa foi construída, baby.
E é sua, traga as flores
para dentro.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

amálgama

Antes que eu morra meus lábios ficam dormentes
uma borboleta azul entra por meu ouvido direito
e sai uma bailarina de porcelana pelo esquerdo.

Amor não é somente o mel das abelhas.
Mas os zangões com seus infortúnios
e as escravas que tecem
a pelugem da rainha.

Amor não é saudade.
É delicada ausência
que junta os pontos
da cicatriz do ferido.

Amor não é posse.
É uma fatia de pão
dividida com todas
formigas do quarto.

Antes que eu morra meus olhos explodem
e duas estrelas ocupam o lugar no rosto.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

arroubo

Aquela noite eu parecia um doido,
os cabelos de Ezra Pound
os olhos de Baudelaire
o sorriso de Neruda

entrando em bares
e correndo nas praças

berrando versos,
bebendo todas,
colhendo flores.

Aquela noite assombração alguma me vencia
nem Cérbero nem Anderson Silva,

estava mesmo um doido varrido
um anjo de porta em porta

abraçando pessoas,
cães e gatos.

Aquela noite eu era uma coisa do outro mundo,
filho de D. Quixote com Dulcineia Del Toboso.

Os óculos embaçados,
as faces vermelhas,
os lábios trincados

cuspindo versos,
bebendo todas,
colhendo flores.

domingo, 25 de setembro de 2011

pausa

É um segredo,
mas te confesso:

a seiva do poeta,
embora ele envelheça,
é o brilho que seus olhos
não perdem diante das coisas.

Tudo em volta,
do lápis à camiseta,
dos tênis ao ventilador,
da calçada lá fora
às estrelas,

tudo faz seus olhos brilharem
apesar da ilusão que ele,
embora envelheça,
também não perde.

A sua oferenda
é rasgar a cada dia
uma veia do pulso

e abrir no dia seguinte
um janelão no peito.

O brilho que seus olhos não perdem,
a ilusão sempre delirante na sua alma,
na verdade, é a sua maior crença
em puro estado de graça.

O poema antes que escape da sua mão
[é um segredo, mas te confesso] anda
anda muito por muitos caminhos
que ele, embora envelheça,
não sabe.

retrato

Sinceramente duvido se haverá o dia em que
sentado na cadeira e o olhar perdido
direi: "eu vos amo,
meus netinhos."

Primeiro, se eu estiver bem velhinho
eu quero correr na calçada
e deixar o sol da manhã
queimar meus cabelos.

Digo-vos, meus prováveis netos,
quando eu estiver bem velhinho
não me venham com essa
de sentar-me na sala
cercado de gente.

Não tirem fotografias
nem me filmem sentado.

Já disse, quero estar na calçada
correndo feito um louco atrás
de uma borboleta
de três olhos.

Se possível,
acompanhado de uma jovem.

Não quero nenhuma velhinha comigo.
Nem que eu sofra ameaças dessa jovem.

Mas é uma jovem que quero ao meu lado
correndo também feito uma louca
atrás de uma borboleta
de três olhos.

Acreditai, se a morte vier assim
e me pegar bem acompanhado

passará pelo menos dois minutinhos
admirando a beleza da moça.

Tempo suficiente
para que eu fuja
pro meu quarto.

sábado, 24 de setembro de 2011

duas irmãs

Sim, há solidão alegre.

Aquela que nos estreita os laços
com nossos objetos de cada dia.

Que nos lança à plenitude
e coça nossos pés

e nos deixa livres
para nós mesmos.

Que bobagem ficar de mal da cafeteira
só por ela nos ter queimado o braço.

Que tolice insana ignorar um livro
apenas porque ele nos leva
a uma caverna escura
e fria.

Miséria é o homem que não beija
é a mulher que não beija

que se apartam da vida
sisudos, coléricos, fúteis

e acabam morrendo sufocados
por uma solidão, Deus, tão triste.

Esta é uma solidão triste.

terapia

Escovar os dentes dançando
ou debaixo do chuveiro
ouvindo blues

é a minha terapia
valiosa e cotidiana.

Exceto quando há uma montanha
de roupa suja assobiando
e piscando os olhos.

Mudo então de terapeuta.

Ora nuzão, ora de cueca
vou à pia da área de serviço

e inicia-se um ritual entre
minhas mãos e a espuma
do omo.

No fim da sessão [às vezes
dura uma madrugada inteira]

sinto o corpo mais leve
e a alma delirante.

É o que espero de todas as sessões:
um corpo leve, uma alma delirante.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

seu pedro

Há cinco dias não pesco.
Juro que a minha jangada
se não estivesse com o bico enterrado
correria pro mar e me deixaria sozinho.

Conhecedor dessa sua natureza impetuosa
afundei-lhe o bico na areia e a parte detrás
amarrei aos meus cabelos.

Só se mexe se balanço o pescoço.
E se vou à cozinha preparar um cafezinho
levo-a junto cruzando o quarto e a área de serviço.

Há cinco dias não vejo meus irmãos golfinhos
nem abraço as minhas amigas baleias.

Na verdade só vou pro alto mar
pra me sentir bem acompanhado.

Conversar com as estrelas,
paquerar a lua que hoje,
grávida de quíntuplos,

suspira lembrando-me
que há cinco dias
não me vê.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

digressão

Preciso trocar as fronhas dos meus travesseiros.
Vejo sombras das amantes: resquícios de unhas,
batons, sedas, chicletes.

Cuido debaixo da cama um gatinho.
Ele nunca sai, passeia, desce
até a garagem.

Vive pregado às correias
do meu chinelão antigo.

Se fosse um cachorrinho o meu gatinho
viveria mordendo meu tornozelo,
suplicando pra ir à praça
e abraçar os postes.

Mas é de um gatinho que cuido.
Míope, bigodes longos.

A última vez que ousou peregrinar pela casa
queimou-se no forno e os bigodes
entrançaram-se pelas pernas
das cadeiras.

[desastre]

Agora vive acuado debaixo da cama
pregado às correias do meu chinelão
do meu chinelão antigo.

Preciso trocar as fronhas dos meus travesseiros.
Quase andam as sombras das minhas amantes.

E cada uma tem uma unha diferente,
uma voz diferente, mas rebolam
do mesmo jeito mascando
o mesmo chiclete.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

credo

Triste quando alguém nos detesta.
Torce o nariz e franze o cenho.

Triste quando alguém nos odeia.
Muda de calçada e foge da praça.

Pensa em nos assaltar
e nos matar na esquina.

Pensa em pôr nossa fotografia
debaixo do ninho de uma coruja,

uma coruja cega e manca
em noite de lua cheia.

Aterrorizante quando alguém
planeja nossa morte.

Testa veneno em camundongos,
compra uma arma de traficante.

Suo frio só de pensar nas artimanhas diabólicas
que um estranho nutre mentalmente sonhando
com a nossa desgraça.

Triste e patético quando alguém se desvencilha
do nosso abraço e prefere pular do desfiladeiro.

É tão triste quando alguém que nunca nos viu dormindo
nem chorando nem atormentado com a própria sorte
ainda tenta nos esfolar como se esfola um bode.

Triste quando alguém não vai com a nossa cara.
E pede ao vizinho o telefone da polícia.

E pega no nosso pé.
E enche nosso saco.

É triste, meu deus
quando o santo de alguém
não bate com o nosso arcanjo.

É bem mais triste, confesso,
quando esse alguém consegue
incutir em nossa alma tal tristeza.

Ou essa vingança,
uma vontade inebriante
de roubar da mão
do carrasco
a lâmina.

É triste ver a cabeça do nosso inimigo
rolando escadaria abaixo com os olhos abertos.

São Jorge me proteja
e São Benedito me prepare

um cafezinho quente
na sua choupana.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

o sono do velho urso

Tiro os chinelos e dois segundos
antes que meu corpo desabe
penso em escrever
um verso.

Sei que não será um verso somente.
Sempre vem um trem atrás de uma montanha.

Se escrevesse um verso não bastaria para o mar
que tem nas suas águas profundas mil corais
e outros mil peixinhos dourados.

Um verso não bastaria.
Um pai nosso não bastaria.

As mãos postas e os dedos cruzados
seria patético para quem olha
a imensidão do teto
e além dele.

As estrelas furam o teto do quarto.
Um verso não bastaria nem o trincar de lábios.

Basta-me um suspiro,
um suspiro alto.

Desses que engolem um mar inteiro
e todos os seus mil corais e mais
outros mil peixinhos dourados.

o beijo

Fui testemunha da maravilha
que é um beijo demorado
entre um casal de sapos.

Eu vi com estes olhos [que a terra
há de oferecer às minhocas]

a suntuosidade e sutileza das línguas
do moço sapo e da senhorita sapa.

Eu vi com estes olhos [que o mar
há de oferecer aos moluscos]

a sensualidade das pontas
em leves gracejos e toques.

Não há mortal [gente
ou bicho] que beije
semelhante aos dois
anfíbios.

Fui testemunha de cada intervalo mágico
em que as línguas tremiam, suspiravam,
tomavam fôlego e retornavam

só as pontas para que depois
por inteiras sumissem as línguas
dentro daquelas bocas.

Eu vi com estes olhos [que o vento
há de oferecer às calçadas]

o casal estremecido,
as jugulares pulsando,
as glândulas ruborizadas.

Não tem gente ou bicho ou entidade
que beije tal qual o casal de sapos.

É um beijo longo e molhado,
tenro, doce, frenético
e ardente.

Eu vi,
eu juro que vi.

Com estes olhos
que a mim pertencem
por obra e divina graça

nunca cabendo posse deles
às minhocas nem aos moluscos
tampouco às calçadas em noites frias.

domingo, 18 de setembro de 2011

orquídea de fogo

Quando pensamos em alguém
e nos ferimos, cortando a unha
ou mordendo a bochecha
ou quebrando uma taça

decerto essa pessoa
não é merecedora
do nosso devaneio.

Sonhemos então com passarinhos.
Ou tartaruguinhas ou formiguinhas.

Embora no íntimo saibamos
que a dor da unha partida
ou da bochecha sangrando
ou da taça espatifada
em nossas mãos

é o motivo da loucura
do amor extremo
por tal criatura.

alvorada

De que adianta sumir por um dia -
a vida pela sua própria natureza
é uma exímia caçadora
e antes que eu sorria
ela me atinge
na barriga.

Para um toureiro é trágico
dormir com um curativo
atando as tripas.

Chora feito um desesperado quando se deita
e chora ainda mais quando se abaixa
pra pegar suas sapatilhas,

pois amanhece
e o touro na praça
já bufa e trinca os beiços.

sábado, 17 de setembro de 2011

fátuo

O poema depois de escrito
perde pra mim o brilho,

é como uma nuvem
que desaba dentro
do meu tênis sujo.

Parto pra outra vida.

E não ligo se vão comigo
meus ossos, minhas costelas,
meus olhos tristes não sei de quem.

o velho sansão de guerra

Os meus cabelos crescem
crescem pra chuchu,

tudo pra guardar entre os cachos grisalhos
uma bolsa de couro e uma orquídea
pro seu aniversário.

domingo, 11 de setembro de 2011

o meu pequeno vinicius

O meu filho sempre vem ao navio
feito um belo pirata e foge
deixando dentro dos canhões
seus chinelos.

É hora de comer o chocolate
que ele esqueceu na geladeira.

Dois dias com o filho
não se pode ensinar-lhe
caçar baleias cinzentas.

Ninguém matará baleia alguma.
Só mostrarei como dormem as mamães -
barriga pra cima e cauda feliz balançando.

Agora se o pequeno quiser chamar atenção
mergulhando próximo e puxando os cílios
das mamães baleias

estarei por perto
fazendo cócegas

ora na barriguinha da baleia
ora nos pezinhos do meu pirata.

O meu filho é um pirata.

E as baleias mamães dormem
como digo, de barriga pra cima
balançando a cauda feliz.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

as zombeteiras

A verdade é que não penso na morte.
A morte é um caso esquecido.
Já teve seus dias de fama.

As marcas rosadas da faca de cortar pão
no meu pulso é um retrato claro
do tempo em que ela
dava as cartas.

Agora só tenho duas covinhas nas bochechas.
E mesmo que eu pouco sorria são visíveis.

Essa estória de covinhas
foram certas andorinhas
que me iludiram.

Uma dizia pra outra,
"olha, coisa linda
quando o poeta sorri"

A outra completava,
"meu deus, que covinhas
delicadas e sensuais"

Para um cara solitário feito eu
que não acredita em alma gêmea

nem em metade de laranja predestinada
nem em formiga gigante de três olhos

ter diante de si
duas espetaculares
e maravilhosas andorinhas

sussurrando aos ouvidos
que tenho duas covinhas

evidente,
acabei acreditando.

E de fato tenho
duas covinhas.

Mas só quando levanto os braços
e vejo uma covinha em cada axila.

S'eu fosse uma mulher vaidosa faria cirurgia plástica.
Extraía essas covinhas das axilas e pregava no rosto.

As minhas andorinhas são umas sacanas.
Mentem pra burro e ainda se irritam
quando retruco, "são seus olhinhos
de mr. magoo".

Levantam-se da cama
e deixam o cigarro aceso .

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

cotidiano

Tenho algumas coisas sagradas comigo.
Alguns trejeitos, olhares, nuances.

Quando pego minha xícara
já ao entardecer e ponho açúcar
minhas faces mudam, há um certo júbilo.

Sinto que meu olho direito treme.
Mas treme de modo singular,
dando voltas em torno
da própria órbita.

Outro instante delicado
é quando faço a cama.

Estendo os lençóis, bato os travesseiros,
puxo a colcha aqui e acolá
e pareço sorrir.

Já ao fazer a cama quando acordo
muitas vezes não a faço.

Deixo os lençóis cansados da longa noite
espremidos entre as dobras
e os travesseiros loucos por não terem
conseguido dormir.

Se durmo bem,
meus travesseiros não dormem.

É natural,
se durmo bem
estou sempre enforcando
um ou outro em forma de abraço.

A minha vida é recheada de intervalos mágicos.
Beber café sob o crepúsculo e fazer a cama
são epifanias próprias de um solitário.

Existe, entretanto, um ato em si mesmo
mais elevado, existencial, que carrego
desde a mais tenra infância:
limpar os ouvidos.

Com o dedo mindinho.
Com o dedo indicador.

E ao cheirá-los
nunca muda o cheiro.

É um cheiro forte,
um cheiro de parto.

bodas de alabastro

Mistério envolve o escorpião.
Ele não envelhece.

As formigas percebo de longe
pelo olhar fundo e antenas flácidas.

Nas cigarras reconheço pela voz.
No meio de uma ária tossem,
tossem muito.

Os elefantes é facílimo observar sua velhice.
Franzem o cenho, separam-se da manada,
seguem um caminho obscuro
e somem.

Os pombos quando envelhecem
tropeçam nos cadarços
dos seus tênis nike
desbotados.

[todo pombo jovem
tem um nike vermelho
tinindo nos pés]

As andorinhas é simples.
Ficam sérias, aliás, seríssimas.

Iniciam um tal de tricotar uma colcha
que não termina nunca
sempre sozinhas
e sisudas.

O papagaio quando começa a envelhecer
parte para um estudo laborioso entre
aramaico e chinês.

Agora o escorpião coisa alguma
indica seu envelhecimento.

Continua o mesmo sujeito desconfiado,
sacana, amoroso, ciumento, misterioso.

Já me dediquei muitas horas de um dia,
muitos dias de um mês, muitos anos
de uma década, quase
toda uma vida

tentando encontrar um vestígio
um sinal sequer da sua velhice.

O escorpião não envelhece.
Não envelhece mesmo.

As luzes neons pelo seu corpo
se tempo chuvoso ou debaixo
do deserto brilham
e nunca cessam.

Só não sabem nadar
nem andar de bicicleta.

Mas isso é um detalhe.
Eu também não sei
nem uma coisa
nem outra

no entanto, envelheço,
envelheço pra chuchu.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

dádiva

Já troquei a água das duas meninas.
Uma dentro de um jarro de vidro.
A outra dentro de um cilindro
de bambu.

Ambas ronronaram (dengosas)
ao tocar-lhes as folhas
e as raízes.

Talvez a mesma
espécie.

Não entendo muito de botânica.
Só do coração das meninas.

E ao tocá-las (é um dom, imagino)
suas folhas e as suas raízes tremem
dentro da minha alma.

Dentro da minha alma.

É isso, dentro da minha alma
todas as meninas da terra
sabem que sou um jardineiro.

E se houver meninas nas nuvens
saberão que sou um anjo.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Pã enfeitiçado

Aprendi muito cedo
a tocar flauta doce.

Bastava assobiar para o vento
e abrir os dedos dos pés.

Era como se fosse
o som de flauta doce
a brincadeira do vento
com o deleite dos dedos.

As lagartixas do parque
juntamente com as cigarras
ficavam bobas e extasiadas.

O vento ouvia meus pensamentos
e tocava Bach e Villa-Lobos.

Era muito jovem minha alma.
Só depois (velhinho)
dei por mim:

não era o vento
nem eram os meus dedos
que faziam aquele som, era

a garrafa de vinho debaixo do sol
com suas luzes e seus reflexos.

E sempre era manhã,
e era dia, brilhava o sol

e meus cabelos
iam com o vento
de lá pra cá.

Descobri outro dia
que os meus cabelos
contra ou a favor do vento
também fazem um som legal.

Sobretudo quando
vão ficando fininhos
e brancos.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

porcelana

S'eu te chamar de meu amor
tu juras que acordas desse
sono profundo?

Os meus cílios deram pra cair
de hora para outra

e tu não estás ao meu lado,
assoprá-los e fazer um pedido.

S'eu te chamar de bailarina graciosa
tu te levantas da cama, lavas o rosto,
molhas os cabelos e vais pra calçada?

Talvez não saibas mas o sol
vive sob uma melancolia
entre pôr o pescoço de fora
ou ficar enrolado dentro
das nuvens: um sol
sem graça.

Meu amor,
minha bailarina graciosa,

sai do quarto, dá um pulinho
à esquina, toma um sorvete.

Sabe aqueles pombos?
Andam cabisbaixos.

Rejeitam de quem passa
migalhas de pão e arroz.

Um dia chegaram aos meus ombros
e perguntaram-me por ti "a menina
de tranças e de olhar triste"

Respondi-lhes
que não és
triste.

Apenas
santinha.

E que as tranças
é imaginação deles.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

paixão

Seis cuecas salvam uma alma.
Sobretudo as cuecas
de hoje em dia:

noventa e seis por cento de algodão
e quatro por cento elastano.

Espero que agora
as minhas formiguinhas
não sumam de madrugada

naquela hora em que o braço
involuntariamente busca a amada.

Elas sempre tiveram como desculpa
as minhas velhas cuecas sem elástico.

Diziam que não existia clima.
Que era de doer minha aparência.

Pelo que já pressinto
hoje tardão da noite

amarei enlouquecido
minhas formiguinhas.

Oxalá elas usem
aquele baby doll.

Aquele
vermelho.

insígnia

Os meus dedos são os meus melhores amigos.
Eram lisos e límpidos e nunca se orgulharam.
Agora ásperos, velhos e tristes e tudo bem.

Não largam das minhas mãos.
Acompanham minhas unhas
no outono e no inverno
sem questionarem
o tempo.

Seguram com altivez
e com a mesma loucura

a asinha da xícara
e o cadarço do tênis.

Os meus dedos são os meus únicos amigos.
Conhecem meu pensamento antes da unha roída.
Já viraram tantas chaves e doeram-lhes as juntas.

Nunca se gabaram
das suas falanges.

Da plasticidade dos ossinhos.
Dos seus ângulos e diretrizes.

Os meus dedos não me puseram contra a parede
à espera de um anel de aço cirúrgico ou de ouro.

Passaram muito tempo colados
uns aos outros sem ironia
e sem fracasso.

Os meus dedos não duelaram.
Não se sangraram à toa,

salvo sob momentos
de tensão em que
nem eu mesmo
compreendia
seus vãos
e a água
da chuva
escapando.

Também foram eles no outro dia
que me ensinaram a fazer concha
com as duas mãos e me levaram
à boca a mesma água da chuva.

Os meus dedos são os meus senhores.
Apontaram na cara de muitos canalhas a desonra.
Outras vezes apontaram para o céu o sol se pondo.

Os meus dedos são o pai que não tive.
Desde cedo é como se eles soubessem.

E cresceram comigo
e nunca me pediram luvas.

Os meus dedos nunca tremeram,
exceto aquele tempo de frenesi 
em que meu coração derretido
veio até eles.

E eles supondo minha dor
tocaram em vez de blues
um samba.

Um samba de roda,
banquete e festejos.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

a doçura do tristonho

Antes que eu volte à leitura,
permita-me admirar as suas costas nuas.

Um dia desenharei uma árvore
e escreverei nomes

da sua nuca passando
por toda sua espinha
e costelas;

e pedirei, sorrindo
e brincando, para
que você me diga
que árvore plantei
que nomes escrevi.

Não sei se você ouvira falar,
mas no meu tempo de anjinho

havia essa brincadeira delicada,
esse jogo sensual,

de desenhar coisas
e escrever nomes
nas costas nuas
da amada.

Em centenas de meninas
desenhei o jardim botânico

e nenhuma delas cresceu
sequer uma florzinha
na varanda.

Fiquei apenas com os nomes.
Uma longa extensão de areia de praia.

Inevitavelmente vêm as ondas
e também levam os nomes.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

relance

Consigo te ver por dentro.
Embora teu perfume
seja enlouquecedor
porque é breve.

E tenho que me segurar por fora
(portão, árvore)

para que teu perfume
não me estrague a vista.

Há dentro de ti uma casa
com janelas fechadas.

Nunca te disse
que me basta
uma lágrima.

A minha lágrima
contra a tua vidraça
amolece todas as trancas.

Também nunca te disse
que é inútil lágrima

quando as janelas
já foram levadas
pelo vento.

Alguém nos dirá um dia:
"no alto da montanha
o vento não existe
e quem ama vive
dentro das tocas
do abismo"

Enquanto esse dia não chega
continuo te vendo por dentro.

E o teu perfume
é bárbaro.

domingo, 21 de agosto de 2011

o amante pródigo

Darei a ti um poema sem vinho
e sem lucidez excessiva.

Um poema sem buscas,
sem transes e sem pensamentos.

Darei a ti um poema caído sobre o peito
na calada da noite quando faço
brilhar minha espada
diante do meu olho
de vidro.

Um poema que não explique a causa do silêncio.
Um poema que se cale ao som da primeira sílaba.

Darei a ti o que temo e o que creio
sem forçar de ti entendimento
ou cumplicidade.

Ainda não ando sobre as águas.
Mas já levito sobre as nuvens.

É um pulo criar chuva
saltando de nuvem
em nuvem

e encher o mar de sonhos
e encher de peixes
nossos corações.

Enquanto tu suspiras
o meu barco à deriva
contra rochedos
afunda.

soul

Perdi o traquejo em escrever versos românticos.
Os últimos enlouqueceram as andorinhas.

Muitas delas enforcaram-se usando
os cadarços dos meus tênis sujos.

Perdi o tato em conquistar mulheres
com a voz doce e os olhos míopes.

A maioria delas preferiu a loucura de uma balada
ao cântico do blues dentro da minha vitrola.

Pobre deu,
mísero de mim.

Perdi a veleidade, a quimera,
o sonho e a malícia: agora

sou um traste só,
um homem puro.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

elos

Às vezes confundo o mar
e todas as suas algas

com a sombra da nuvem 
e todas as suas faces.

É natural perder o juízo
sobretudo um poeta
que trabalha na rua
e mora num ovo.

Contudo, baby,
não é hora de fugires.

Pois aquilo que mais prezo
(costumo chamar de alma)
continua intacta sob mil
dobras.

A lamúria da cabocla na margem
lavando túnicas de imperadores

nada difere do meu canto torpe,
difuso, esperando o último dia
no meu quarto.

A cabocla vive presa aos devaneios.
Daí a sua melancolia e também a minha.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

luxúria

Veste aquele teu short jeans minúsculo
e vai até a praça. Estarei no banco
no terceiro atrás da banca
de jornal.

Não digas: "ui, menino"
Dize:  "ai, cavalão"

É isto que sou,
um cavalão.

Morderei teu braço
(não morderei outra coisa
porque é cedo e tem criança
brincando de skate e patins)

Tu não sabes da minha loucura de celibatário.
Dentro do meu baú guardo filhos órfãos.

Não esqueci o presente
que tu me impuseste:

um frasco de perfume
e duas rosas vermelhas.

Enquanto tu lanças o olhar sobre a minha oferenda
eu te mordo agora o que não podia há dois minutos.

A praça ficou deserta.
Pula ao meu colo.

Deixa-me trincar tuas orelhas
e beijar tua nuca: eu sou um cavalão
e cavalão que se preza come milho
lambuzando o pescoço da amada.

Nunca repitas "ui, menino" A partir de hoje,
somente: "ai, cavalão" É isto que sou,
um cavalão.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

fome e sede

Meu coração é o mesmo de sempre.
Sem um centímetro a mais de artéria
nem uma gota de sangue à toa.

Nada de multiplicidade, sombras, fantasmas,
mudas de pele entre rochas e gravetos.

Eu nunca fui outros.
Eu nunca cruzei pontes
e fiz fogo em outras margens.

Sempre, sempre, sempre os mesmos olhos
e os mesmos passos dentro da minha alma.

A minha alma é palpável.
Muito mais vertiginosa
que o tecido do corpo.

Desde criança quando os versos eram escritos
sem mãos e sem palavras naquelas tardes inteiras
no jardim, quintal, cozinha, salas, quarto, calçadas
esquecendo de comer e de beber
temia ser o que sou hoje.

E eu escrevia versos
em silêncio e no olhar.

Coisa alguma mudou em minha volta.
As coisas são as mesmas coisas.
Os ancestrais são os mesmos.

Nenhum pavor diferente
nem cor estranha
de arco-íris.

A minha alma não cresceu, não estreitou,
não chegou a verdades nem desvendou
o segredo do suspiro.

Ainda que sem mãos e sem palavras
minha alma se vale do vácuo
do pacote de café aberto.

Fecho os olhos ao ser atingido
e outras coisas revelam-se.

A alma, no entanto, é a mesma.
A minha alma é a mesma.

Sem um centímetro a mais de artéria
nem uma gota de sangue sem destino.

domingo, 14 de agosto de 2011

magia

Esqueci como se deita sobre o colo de quem se ama
e treme os olhos admirando o brilho das estrelas.

Creio que somente os sapos e suas sapinhas
ainda nutrem dentro da alma essa loucura.

Porque de fato é loucura.
Vai que desaba uma estrela
dentro do olho do apaixonado.

Como haverá de nascer o dia
(com suas batalhas e seus medos)
ora sombra e ora fresta
debaixo da porta.

O apaixonado para sempre será outro
a carregar um brilho falso de cadáver.

Porque as estrelas quando morrem
escrevem versos no espaço
e iludem.

Não esqueci esse clima de morte
e de festejo quando deitado

no colo de quem se ama
a cada intervalo de beijo

vem a terrível dúvida
do amor que se sonha
e do amor que já foge.

Os humanos são apenas tímidos arautos
de um sentimento nobre e exclusivo
dos sapos e das suas sapinhas.

Porque um dia esses sapos
e essas doces sapinhas
foram príncipes
e princesas.

Conheceram de perto os degraus do palácio
e agora, anfíbios, cantam enfeitiçados
boiando na água escura do pântano.

sábado, 13 de agosto de 2011

para meu filho Vinicius.


Filho, não precisas quebrar teu cofrinho.
Guarda teus centavos para tua mocidade
no dia em que teu coração arder
por uma menina.

Nesse dia, então, manda ver teu porquinho
contra a parede e junta cada moeda.

Leva tua garota para o cinema.
Beija-a e experimenta a pipoca da boca dela.

Teu velho pai não se importa com presentes:
cuecas, perfumes, camisas polos,
celular, radinho de pilha.

Os chocolates que ontem trouxeste
ainda agora adoçam minha alma,
e estamos conversados.

Deixa em paz teu porquinho
com aquele ar de falastrão.

Um dia, como já te disse,
não o poupes do destino.

Quebra-o, junta as moedas,
compra um buquê de rosas

e convida tua princesa
para o shopping.

Faze-o antes que pequenos gaviões
sempre à espreita o façam.

O teu velho pai estará por perto
pra saber dos detalhes: da euforia
e do encanto e da desilusão futura.

A solidão e o desengano
também são prazerosos.

Que pai sou eu.
Que tolices estou a dizer
a uma criança de nove anos.

Esquece tudo e comecemos do princípio:
filho, quebra teu cofrinho e estrangula teu porquinho.

Nem que seja pra gente gastar todo o tesouro
com refrigerantes e jogos de videogame.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

viajante

Hoje salvou-se uma alma.
Limpei o quarto como nunca:

computador, teclado, piso,
livros, ventilador,

mudei colcha
e fronhas.

A sensação é a mesma
quando se aprende a pescar

e em seguida tem nas mãos
um fabuloso peixe
dando pulos
e pernadas.

Sequer vi uma formiguinha pra contar estória.
E olha que sempre debaixo da cama
e atrás do guarda-roupa havia
uma aldeia delas em torno
da fogueira.

Somente a minha xícara sobre a estante
continua sorrindo com as suas fissuras
na circunferência.

Amo-a,
amo-a tanto.

o bom vento de agosto

No meu braço há um sinal.
Mudou de tamanho com o tempo.

Mas tenho a lembrança dele
desde que abri os olhos
no berçário.

E ao abrir o olho direito
surpreendi uma enfermeira
lavando esse sinal com éter e iodo.

Parece uma sombra de uma nuvem
sobre a água parada de um rio triste.

Quem não tentaria apagar tal sinal.
Primeiro a enfermeira, depois a madrinha,
todas as namoradas e por último eu próprio
após perceber a ilusão do presságio
de nascença.

Em breve farei uma tatuagem
encobrindo o que um dia
fora uma nuvem apática
sobre um rio turvo.

D. Quixote com sua lança
e aquele olhar de louco,
esta a tatuagem.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

topada

Ao tropeçar não olhe para trás:
calçada, pedra, graveto, chiclete,
tampinha de refrigerante,
uma baleia morta.

Continue firme e forte,
altivo e fulgurante

como se tivesse
dinheiro no bolso

e uma carta de amor
debaixo da manga.

domingo, 7 de agosto de 2011

êxtase

Há dias se amontoam roupas sujas
e eu só lavei as cuecas,
mas lavei-as com sabonete
e amaciante fofo.

De tão tenras e cheirosas
entraram pela janela do banheiro
duas borboletas e uma andorinha.

As borboletas (platônicas)
fecharam os olhos e viajaram no idílio
sobre o varal, enquanto a andorinha
beijou enlouquecida cada detalhe
dos fios de algodão.

sábado, 6 de agosto de 2011

a densa quimera

Eu sou um rato e os ratos não amam:
copulam dentro das suas tocas
em meio a queijos e vinhos.

Diga-me o que é o amor.
Antes que eu gaste todos os centavos
e me drogue até a alma e morra debaixo da ponte.

Os ratos como eu gostam de amanhecer
com o rosto na lama e um buraco no peito.

Não me venha com suspiros
e piedade dos meus olhos fundos.

É que dentro deles não existe um rio.
Mas um mar de salina e areia cortante.

Eu que fiz a minha toca e plantei as migalhas.
Eu que elevei a solidão ao posto de destaque
entre meus objetos e os meus delírios.

Diga-me o que é o amor.
Antes que eu vista meu jeans surrado
e bata a porta com força contra minhas formiguinhas.

(elas sempre me acompanham
embora ultimamente eu tenha matado
centenas delas) .

Diga-me o que é o amor.
Sou um rato mas ouço bem.

Não julgo os pesares das borboletas
tampouco das andorinhas.

A minha selva é vasta, sombria,
mas vejo que há cores
no jardim vizinho.

Diga-me o que é o amor.
Diga-me sem apelos.

Sem fúria
e sem que imagine
sê-lo maior que outros.

Diga-me o que é o amor.
Por favor, sem palavras.

Sem versos
e sem música.

Sou um rato e como tal é muito difícil,
diria até, impossível me enganarem.

Sou um rato e tenho um faro apurado.
Sinto que você está usando aquele perfume.

Não me responsabilizo pela mordida na sua nuca.
Esqueça. Não me diga coisa alguma.
Adentre na minha toca.

Sirva-se do meu queijo
e sirva-se do meu vinho.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

mimar uma mulher

Deixe-me entrar na sua casa,
conhecer sua cozinha,
sua sala, sua varanda;

por último,
no seu quarto,
deitar na sua cama
e ouvir suas músicas.

Apresente-me à sua coleção de esmaltes.
Aponte-me a sua cor preferida.

Aproveite meu ouvido tão perto
e sussurre seus versos.

Estou louco para ouvir da sua boca
os seus poemas. Não consigo
pensar noutra coisa:

você pintando as unhas
e dizendo seus versos.

Você vê estrelas?
Eu não consigo
olhar para o alto.

Seus olhos
encabulam-me.

O jeito é olhar pros seus pés
e notar que as unhas
estão azuis.

terça-feira, 26 de julho de 2011

dançarina

Se eu tivesse de escrever um poema
que não esquecesse facilmente
não escreveria para seus olhos
nem para sua bunda:

escreveria, meu bem,
para suas panturrilhas.

Eu não olhei para os seus cabelos
quando a vi na praia nem para
os seus belíssimos seios,

eu me encantei com suas panturrilhas
e antes que eu morra escrevo meu epitáfio:

"aqui jaz um atormentado poeta
que deixou lá fora
um par de panturrilhas
para alguns patifes"

Não permita, meu bem, que eles
chupem-lhe e mordam-lhe
as panturrilhas.

As suas panturrilhas
são as minhas doces
mangas rosas.

Só eu posso mordê-las
e chupá-las igual a criança.

Eu amo suas panturrilhas
como nunca amei uma alma.

A sua alma
são as suas
panturrilhas.

sábado, 23 de julho de 2011

rave

Fiz a barba e rezei um pai nosso
pois se aproxima o mês de agosto:

é por demais temerário o poeta
dormir e acordar de barba longa
e coração exposto.

A ventania já levou as portas
(trancas, trincos, ferrolhos)

só há como porto seguro
a sua toca atravessando a ponte

depois da margem esquerda
debaixo do último arco-íris.

Digam adeus ao poeta
apesar da estação vazia
e do trem que nunca chega.

Mas olhem lá, fumaça!
Ouçam o apito!

Embarquem logo esse louco
ajudem-no com suas malas,
cuias, alforjes, trouxas
e mochilas.

Vejam que lindo o bardo
sentado em cima do vagão
a tocar ora sua flauta doce,
ora a gaita de bob dylan.

Digam adeus ao poeta
e deem-lhe as costas
e não olhem
para o céu.

(só vejo pássaros
e nuvens perdidas)

sábado, 16 de julho de 2011

espantalho

Os meus livros fugiram
um a um enquanto
eu escrevia versos
acompanhado
das paredes.

Pode ser que amanhã
em breve suspiro
eles me ouçam

feito cães de caça
que ouvem o apito
do seu dono.

Deixarei a porta do quarto entreaberta
e apontarei com o olhar sério
que subam na estante
cada um ao seu degrau
de importância
e de loucura.

Decerto não retornarão os meus livros.
Eles são pródigos e bem mais orgulhosos.

De cabelo branco
e muito desejo na alma,

deixo-os em paz
ou em fúria
nas mãos
de outros.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

um moço estranho

Assim que nasci secou o leite materno.
A única alternativa foi mamar em uma golfinha.

Levaram-me a uma ilha deserta
e apresentaram-me à senhora golfinha.

Ela vivia sorrindo e além de me oferecer o deleite
do seu leite sabor de cavalo-marinho e ostras

também me ensinou a passar horas
no fundo do mar sentado sobre corais
pensando na vida e escrevendo versos.

Devo minha vida (a minha vida de louco)
a essa senhora golfinha que um dia
sussurrou aos meus ouvidos "vai, poeta
tudo que um náufrago precisa
tu já sabes"

Levantei-me da minha poltrona de corais
e beijei os amigos que fiz no fundo do mar.

domingo, 10 de julho de 2011

a essência do afeto

Fiz um samba
ontem de madrugada
enquanto tive uma crise

e chamei as vizinhas
e foi tanto absinto

que não consigo
parar de sorrir.

Você nem imagina
o samba que fiz
ontem de madrugada

enquanto pensava
em cortar os pulsos.

Chamei todas as formiguinhas
que encontrei no quarto
e foi tanto veneno
quase morri.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

beato

Sei que sou um bom homem agora
pelo simples fato de estar escrevendo
versos melhores.

Aproveito a clareza dentro da minha alma
e digo (para teu espanto) que deus

é aquele livro de D. Quixote cujas páginas
estão marcadas pelo suor dos meus dedos.

Aliás, deus é toda a estante:
remédios na cestinha,
fotografias, estatuetas,
cds, bilhetes.

Em outro tempo fui um homem mau
porque escrevia versos ruins.

[e como eu sofria
para ver deus
em algum
objeto]

fogo

Não me peças para te levar ao alto da montanha.
Existe um ponto no desfiladeiro que muitos pulam.

Alguns dizem ter ouvido deus tocando blues.
Outros que foi uma linda luz branca
saindo do abismo.

Eu acredito em todos eles,
por isso não levo ninguém comigo.

Não é da minha natureza passar toda uma vida
crucificado e atormentado pela loucura do próximo.

Fica na praça.
É um lugar tranquilo.

As crianças espantando pombos.
As velhinhas simpáticas.
As madames com seus
cachorrinhos poodles.

(não me segures pelo braço,
não tentes ir dentro do bolso
do meu bermudão)

Caso naquele temido ponto do desfiladeiro
eu ouça deus tocando blues ou veja
uma luz radiante,
eu pulo

e te mando notícia
em breve.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

saliva acre

Se vomitasse o céu e todas as suas gaivotas
entenderia esse desejo mórbido que tenho
pelas coisas no fundo do guarda-roupa,
debaixo da cama, dentro das paredes.

Cafezinho, cocaína, vinho,
livros, versos, solidão, fúria:
tudo é a mesma dor
sem diferença.

A minha tristeza
não se modifica.

O céu não vomito.
E as gaivotas voam alto.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

enquanto as sacerdotisas dançam

Sou cínico e cruel,
patife e egoísta,

mas tenho
uma alma doce
que atrai beija-flores,
borboletas e andorinhas.

Imaginem agora
que a barba cresce.

Terei mais pólen
e mais mel.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

cerâmicas rachadas

Passo a mão na minha testa
e me pergunto "até quando
esse suor frio?"

Perdi a lembrança do dia
em que jurei lealdade
aos versos.

Certamente era um dia chuvoso
e eu estava com febre.

Não tinha botas nem formiguinhas
nem uma xícara sempre sorrindo.

Eu era bem mais só
e bem mais jovem.

Cada verso é um sinal de loucura.
Uma imagem da minha morte.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

místico

Qual o destino de um homem
de rosto áspero e sem barbeador.

As coisas encantam-se
dentro do meu guarda-roupa
em questão de segundos.

Algum tempo atrás
eu jurava que eram
as formiguinhas
as ladras.

Depois passei a pôr a culpa
nos meus queridos duendes.

No fundo sempre soube
que é a minha alma
pregando peça:

rouba band-aid
para que o sinal
nunca sare

e foge com o barbeador
para que as minhas faces
amedrontem o espelho.

É a sua deliciosa vingança
contra a vaidade do corpo.

terça-feira, 28 de junho de 2011

cafeína

A verdade é que eu sou um pescador
encantado e perdido em alto mar.

Os versos que escrevo
às vezes sonho dentro de uma ostra
outras vezes deliro nas costas de um golfinho.

São versos sinceros como ontem
quase morri de dor de cabeça

e só havia as estrelas
únicas testemunhas
do meu transe.

Não é bom ter somente estrelas
por perto quando a cabeça explode.

Dá vontade da gente querer ser também estrela.
Deixar o mar e não se despedir da mãe nem do filho.

O que diria meu filho sem pai nesse mundão de mar
e como choraria minha mãe sozinha no seu quarto.

domingo, 26 de junho de 2011

velocidade da luz

Quantas escovas perdidas
pelo cano da pia
do banheiro.

Sob todos os vacilos
uma coisa ficou clara:

a mão de um homem lúcido
não deve tremer se a mente sonha.

Felizmente as baratas
agora terão um sorriso branco.

sábado, 25 de junho de 2011

sátiro não sabe tocar gaita

Antes que o sol chegasse à janela
fugi apressado me enfiando
dentro da bota.

Aquela meia há tempo sumida
sorriu com a minha presença.

E ficamos lá (eu e a meia podre)
dentro da bota vendo o sol atacar os objetos
enchafurdando cada canto do meu quarto
sem piedade e sem escrúpulos.

Por isso eu amo a lua.
A lua não invade minhas coisas.

Fica na varanda, se muito
cai na poncheira de vidro.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

sátiro não sabe tocar flauta

Os versos egoístas e tristes
não te mostrarei novamente,

queimo-os dentro de mim
sem cerimônia.

Sei que a cada fornalha e urro na fogueira
perco um pouco da essência de monstro.

Mas, diz-me, o que vale
um monstro inocente
só quando dorme?

Os versos tristes e egoístas
deixarão de te fazer sofrer
ou te alegrar por vingança,

queimo-os dentro de mim
sem altar e sem unguentos.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

riso

ri enquanto o mundo
tenta te conduzir
ao desespero
da posse alheia,

ri pois não tem jeito
o osso que morde a carne
a carne que modifica o espírito,

ri não da comédia
mas do pranto e da farsa

do vazio absurdo de todos os dias
das mulheres distantes de todos os sonhos,

ri, meu camarada, ri com o máximo de desdém
que ainda sobra na tua mente e se foge a mente,

ri da fuga dos teus pobres neurônios apagados,
cinzas, decrépitos, perdidos a cada fumaça

ri dos amigos que riem da tua loucura,
ri dos teus amores que te preparam
o cálice da solidão

ri da paciência que te perturba,
ri da maternidade que te protege

mas não rias da tua insignificante vida
cujo imenso tesouro é uma sílaba
é uma palavra, é um verso
é um poema,

ri, amigo, ri da tua sorte
das tuas noites afamadas
da tua ânsia e do teu vinho

mas não rias do fim,
do tropeço e da morte

pois sempre há mais mortes que supomos
e mais tropeços adiante e todo fim
é um esplêndido começo

uma alegria infinda
que ora se conserva
no que chamamos alma

e depois ferve na pele
causando torpor
e mais risos

ri, amigo,
sobretudo do teu anjo
que rejeitou a vida de outro
para te embalar em noites confusas

e nunca pensou duas vezes
em te defender de ti mesmo.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

o próximo vazio

Se a cada poema escrito explodisse
uma bomba de endorfina dentro do meu cérebro,
Buda trincaria os lábios. Ao invés dessa euforia
abate-se sobre meu corpo uma apatia desnecessária.

Um leve perfume de sabonete indo embora.
Pelas costas os últimos pingos do banho.

doação

Assim que eu partir desse mundo
ofereçam as minhas cobertas
aos desvalidos das calçadas.

Creio piamente na energia
em cada fio de tecido.

O sortudo pedinte
além de não sentir frio

ao dormir com meus lençóis
todos os dias amanhecerá
com uma vontade louca
de escrever versos.

Não será feliz por isso.
Mas se ele tiver um bico de pão
e um golinho de café quente

quem sabe eu não estarei presente
também na sua alma.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

experiência física

"deixa que eu estendo as suas calcinhas
no meu banheiro"

Deu-me vontade de dizer isso
ao ouvir a vizinha do andar de cima
lamentar-se por seu varal ter quebrado.

Subo a escada,
toco a campainha.

Os seus cabelos ainda estão molhados.
Os olhos dela são olhos de quem vive sozinha.
(porque quer)

"pois não, senhor?"

"desculpe-me, mas não pude
deixar de ouvir sobre o seu varal..."

"ah..."

"se a doce dama me permitir posso secar
na minha suíte ou na minha varanda
as suas peças íntimas."

"muito gentil,
qual o seu nome?"

"Senhor Solitário,
ao seu dispor."

Pego a mão da madame
beijo levemente as pontinhas
dos seus dedos.

"ui, tenho cócegas... (o celular dela toca)
um minutinho..."

A toalha a envolvê-la quase
escorrega do seu corpo,

tremo, suo, ela volta trazendo
uma cestinha artesanal
dentro várias joias:

lycra, algodão, seda
mil cores e feitios.

"pronto, aqui o meu tesouro (ela ri,
tem os dentes brancos de publicidade)
o senhor estará à noite em casa?"

"sim, pois não... (a toalha dessa vez
deixou-me aflito) "

"gosta de vinho?"

"adoro, senhora."

"às nove então, levarei uma garrafa
Quinta do Morgado suave,
está bem? agora licença,
era meu sócio
ao telefone..."

Antes que a vizinha do andar de cima
feche a porta ela pisca
e sussurra.

"o senhor é poeta?"

"sim... (respondo engasgado) "

"sempre ouço seus gemidos e urros
quando a lua está alta e cheia"

A dama sorri e me beija o ouvido.
Fecha a porta devagarinho mostrando
parte do encanto que a toalha encobria.

domingo, 12 de junho de 2011

o imoral

Se o teu homem foi comprar cigarros
e nunca mais voltou ou se a tua pequena
(manhosa) pediu um tempo
e já faz séculos

não cortes os pulsos
nem pules da ponte,

garanto que terrível
um inferno mesmo
é se o teu homem
ao voltar para casa
esquecer teu nome
ou a tua pequena
ficar bem velhinha
sem dentes.

"O mundo é bão, Sebastião"
afinal tem cafezinho quente na cafeteira
ótimo livro na estante e um sorvete
maravilhoso de sobremesa.

sábado, 11 de junho de 2011

a traição dos travesseiros

Só agora notei  na parede
encostada à minha cama

uma mancha escura
como se um sujeito carvoeiro
houvesse colado as costas.

Ah, então é isso, enquanto durmo
os meus travesseiros mantêm
um certo envolvimento
com a parede.

E eu que pensava o único amor
dos meus travesseiros
a minha nuca.

Confiava a eles os meus sonhos e a minha insônia.
Mas sabe-se lá o que planejavam os pérfidos
à cabeceira da cama.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

amante

Dia após dia
desço a escada do meu bloco
e vou ao jardim do prédio
para ver como está se saindo
a flor que plantei.

Sempre é um olhar diferente
dela dentro do meu peito.

Sempre é outra a brisa
que me causa frêmitos
e certamente a ela
também.

Na hora da despedida,
penso "Deus, não mereço
tanto êxtase e encanto
no meu pescoço"

Sim, no meu pescoço,
pois a flor que plantei
no jardim do prédio

naturalmente despede-se
encostando suas pétalas
e me fazendo cócegas
pertinho da orelha.

(ela não usa batom,
portanto não há problema
quando entro em casa
e sento para o jantar)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

o amor infinito do lenhador

Faz um tempinho que não ando contigo.
Lembro-me das calçadas molhadas,
das nuvens alaranjadas,
dos chicletes, das tampas
de refrigerantes,
das folhas
secas.

O tempo quando tem pressa
quando foge do controle  
torna-te cada dia jovial

e um ar de mistério exala-se
dos teus botões de aço.

Estranho ter ver sempre próxima
da tua irmã (ou seria tua namorada?)

e ao falar apenas contigo
e ao olhar apenas para teus olhos

é inevitável supor que no fundo
é uma só coisa a tua alma
e a alma dela.

Mas é engraçado, por exemplo, agora
conversar tão chegado aos teus ouvidos
sabendo que ela (tua irmã ou tua namorada)
também está me ouvindo em alto e bom som.

Então dize a ela
que o meu amor se estende
e se multiplica por dois.

Eu não amo o meu pé direito
mais do que o esquerdo.

E tanto um quanto o outro
precisam de vocês assim
coladas e inseparáveis.

Amanhã (loucura falar sobre um sonho iminente)
mas, enfim, amanhã nós subiremos a montanha.

Aquela montanha cuja imagem
passamos horas admirando
o cartão postal.

Dize para tua irmã e namorada
(se ela já não estiver dando pulinhos)
que subiremos a montanha encantada.

E lá em cima, bem no topo,
eu tirarei vocês dos pés
(minhas meninas)

e nunca nunca mais
voltaremos ao quarto,

a este quarto empoeirado cheio de livros imprestáveis
com marcas de bunda de xícara sobre suas capas.

Eu cavarei um lindo buraco
eu farei uma prece
e enterrarei emocionado
vocês duas.

Ninguém ouvirá falar desse lenhador
nem das suas meninas botas.